A crise dos abusos sexuais de menores entre o clero católico está longe de ser uma novidade no seio da Igreja global. Na verdade, as suas raízes mais profundas podem ser encontradas nos primeiros séculos do Cristianismo — e a crise que a Igreja atravessa atualmente estalou no início da década de 1980, com a eclosão dos primeiros casos de abusos no sul dos Estados Unidos. Desde então, o escândalo cruzou fronteiras e alargou-se gradualmente a todo o mundo, atravessando continentes e percorrendo já três pontificados. A resposta da Igreja também mudou. João Paulo II foi o primeiro a ser confrontado com o escândalo do encobrimento dos abusos (e sabe-se hoje que ele próprio foi conivente com algumas situações); Bento XVI era Papa quando o escândalo conheceu um agravamento sem precedentes (basta pensar no caso irlandês); e foi já com o Papa Francisco que a Igreja deu um decisivo murro na mesa, mudando radicalmente regras e procedimentos e implementando uma política de tolerância zero.
Durante as últimas quatro décadas, à medida que os escândalos se sucediam por todo o universo católico, Portugal parecia manter-se imune à crise dos abusos. A meia dúzia de casos que surgiram nos últimos anos foi sempre caracterizada como um conjunto situações pontuais, anómalas e prontamente resolvidas por uma hierarquia eclesiástica que insistia que a crise dos abusos era um problema endémico de outros países e que não tinha tradução em Portugal. Casos como o do padre Luís Mendes, condenado a 10 anos de cadeia por abusar sexualmente de vários seminaristas no Fundão, absorveram praticamente toda a atenção mediática numa crise quase sempre tratada como uma questão judicial — e quase nunca como uma situação com origens teológicas, doutrinárias e eclesiológicas dentro da poderosa instituição em que a Igreja Católica se transformou ao longo de quase dois milénios.
Foi o Papa Francisco que mudou o discurso quando denunciou, numa carta publicada no verão de 2018, o clericalismo — a subversão da lógica de serviço dos ministros da Igreja e a sua transformação numa lógica de poder e autoridade inquestionáveis atribuídos aos mediadores entre os homens e o divino — como a grande causa da crise dos abusos e da ocultação dos crimes dentro da Igreja Católica. Nesse mesmo ano, depois dos escândalos no Chile e nos EUA, o Papa chamou a Roma os presidentes das conferências episcopais de todo o mundo para uma cimeira destinada a mudar a abordagem da Igreja à crise. Durante a reunião, o Papa Francisco obrigou os bispos a ouvirem horas e horas de testemunhos de vítimas do abuso e da indiferença da Igreja e forçou a hierarquia da Igreja a discutir e a aprovar novas formas de agir.
Foi já neste novo contexto criado pelos acontecimentos de 2018 e 2019 que a crise dos abusos chegou finalmente aos países que pareciam ter ficado imunes aos escândalos dos anos anteriores. Em Portugal, tudo se precipitou com relativa rapidez, após anos de inércia: entre 2019 e 2020, as dioceses portuguesas criaram comissões de proteção de menores em resposta ao pedido do Papa Francisco; em 2021, na ressaca do escândalo que assolava a Igreja francesa, a Conferência Episcopal Portuguesa anunciou a criação de uma comissão independente para investigar a história dos abusos na Igreja em Portugal desde a década de 1950 até aos dias de hoje. A comissão, liderada pelo pedopsiquiatra Pedro Strecht, está em funções desde janeiro deste ano e deverá apresentar um relatório final em dezembro. Para já, as conclusões preliminares da comissão já desfizeram por completo a ideia repetida pelos bispos portugueses ao longo dos últimos anos: já chegaram pelo menos 362 testemunhos válidos à comissão e os elementos do grupo de trabalho estimam que esta seja só a ponta de um icebergue que poderá ser composto por mais de 1.500 vítimas em Portugal.
Por trás destas estatísticas volumosas estão casos concretos de abuso e de ocultação por parte do clero católico português. Na semana passada, o Observador revelou uma dessas histórias, abrindo um intenso debate público sobre a crise dos abusos que ainda se prolonga e que chegou esta sexta-feira ao gabinete do Papa Francisco. Segundo os dados recolhidos pelo Observador e confirmados pelo próprio Patriarcado de Lisboa, o atual patriarca, D. Manuel Clemente, encontrou-se em 2019 com uma vítima de abusos sexuais de menores alegadamente cometidos por um sacerdote do Patriarcado. A família da vítima já tinha denunciado o caso em 1999 ao anterior patriarca, D. José Policarpo, mas a resposta da Igreja foi a ocultação: o padre foi mudado de lugar e o caso nunca comunicado à polícia. Vinte anos depois, o novo patriarca ouviu a história da vítima e voltou a guardar segredo sobre o caso, mantendo o padre em funções e não comunicando a situação às autoridades. A justificação foi a de que a própria vítima não pretendia que o caso fosse conhecido (o que não é equivalente a opor-se à denúncia do suspeito às autoridades). Quando D. Manuel Clemente se encontrou com aquela vítima, já tinha voltado da cimeira de Roma, onde representou a Igreja portuguesa.
A notícia do Observador gerou grande contestação contra D. Manuel Clemente (incluindo pedidos de demissão do cardeal-patriarca) e a polémica arrastou-se durante mais de uma semana, com o caso a manter-se nas páginas dos jornais durante vários dias a fio. Esta sexta-feira, o Patriarcado de Lisboa emitiu um breve comunicado dando conta de que D. Manuel Clemente tinha pedido uma reunião ao Papa Francisco. “O Cardeal-Patriarca de Lisboa, D. Manuel Clemente, foi recebido, esta manhã, pelo Papa Francisco, em audiência privada, no Vaticano. O encontro, pedido pelo Cardeal-Patriarca de Lisboa, realizou-se num clima de comunhão fraterna e num diálogo transparente sobre os acontecimentos das últimas semanas que marcaram a vida da Igreja em Portugal”, disse o Patriarcado.
O comunicado, lacónico, deixa algumas perguntas por responder. É, por exemplo, incerto se a reunião já estava pedida há mais tempo e foi aproveitada por D. Manuel Clemente para debater estes assuntos ou se foi pedida já depois da eclosão da polémica. O comunicado também não é explícito sobre o que são “os acontecimentos das últimas semanas”, mas fonte do Patriarcado de Lisboa clarificou ao Observador que a referência diz respeito à situação dos abusos sexuais de menores e ao modo como as denúncias foram tratadas pela Igreja. Já depois das notícias do Observador, vieram a público dados sobre outras situações referentes ao Patriarcado de Lisboa, que se somaram à polémica. À semelhança do que aconteceu com situações de crise noutros países, os escândalos de abuso sexual na Igreja chegaram diretamente à mesa de trabalho do Papa — e a história mostra-nos que, quando o mesmo aconteceu noutras geografias, a intervenção do Papa foi um momento de viragem.
A primeira reunião com o Papa para debater crise de abusos em Portugal
Efetivamente, uma reunião entre um bispo ou um cardeal e o Papa não é habitualmente digna de notícia. O Papa recebe diariamente vários bispos e cardeais (basta olhar para a agenda pública do líder da Igreja Católica) e esta união próxima entre o bispo de Roma e os bispos de todo o mundo é um dos pilares do governo da Igreja Católica contemporânea. Esse foi, aliás, um dos grandes tópicos de discussão no Concílio Vaticano II, a reunião magna que nos anos 60 reformou a Igreja para a adaptar aos tempos modernos. A ideia do Papa enquanto monarca absoluto, consolidada ao longo dos séculos, foi substituída no Vaticano II por uma mais próxima dos primeiros tempos do Cristianismo: a de uma liderança eclesiástica composta pelo corpo coletivo dos bispos (os sucessores dos apóstolos) com o Papa (sucessor direto de Pedro e bispo da diocese de Roma) a servir de garante da unidade desse corpo coletivo.
Por isso, é habitual a existência de reuniões frequentes entre o Papa e os bispos — sobretudo com os bispos que têm maiores responsabilidades, como é o caso dos cardeais, dos presidentes das conferências episcopais ou dos responsáveis por eventos, peregrinações, santuários, e por aí fora. Os bispos portugueses não são exceção. Por exemplo, em janeiro do ano passado os bispos portugueses D. José Ornelas e D. Virgílio Antunes tiveram uma audiência privada com o Papa Francisco para se apresentarem como presidente e vice-presidente da Conferência Episcopal. Antes, o próprio D. Manuel Clemente, na qualidade de presidente da CEP, tinha mantido várias reuniões formais de rotina com o Papa. Mais recentemente, em março deste ano, o bispo-auxiliar de Lisboa D. Américo Aguiar teve uma audiência privada com o Papa para discutir a organização da Jornada Mundial da Juventude de 2023, cujo comité organizador aquele bispo lidera.
Menos comum é a necessidade de uma reunião entre um bispo e o Papa para lidar com uma situação de crise num determinado país.
No caso português, de acordo com os dados recolhidos pelo Observador, esta terá sido a primeira vez em que foi necessária a intervenção do Papa na crise dos abusos sexuais de menores na Igreja Católica em Portugal. Isto não significa, naturalmente, que o tema da proteção dos menores nunca tenha sido discutido antes entre o Papa e os bispos portugueses. Mas é a primeira vez que o escândalo dos abusos na Igreja — que em Portugal nunca tinha atingido uma dimensão comparável à atual, em grande parte devido à histórica recusa dos bispos em reconhecer a existência de casos de abuso e ocultação — se abate com tal estrondo sobre Portugal que obriga à discussão do tema ao mais alto nível, no gabinete do Papa Francisco.
De facto, olhando para o histórico de visitas de D. Manuel Clemente ao Vaticano, percebe-se rapidamente que, apesar de ser o patriarca de Lisboa e de ter exercido durante vários anos o cargo de presidente da Conferência Episcopal Portuguesa, o cardeal Clemente não é um dos que mais frequentemente requisitam reuniões privadas com o Papa Francisco.
A viagem de urgência ao Vaticano para se debater abertura de arquivos
Em junho deste ano, D. Manuel Clemente esteve em Roma com alguns padres do Patriarcado de Lisboa, e o grupo encontrou-se brevemente com o Papa Francisco na Praça de São Pedro, após uma audiência geral, para trocar umas curtas palavras com o líder católico sobre a Jornada Mundial da Juventude do próximo ano. D. Manuel Clemente também participou numa audiência papal em novembro de 2017, quando acompanhou uma delegação da Universidade Católica Portuguesa ao Vaticano para se reunir com o Papa. Antes ainda, em setembro de 2015, D. Manuel Clemente, que já era o presidente da CEP, liderou a visita ad limina de todos os bispos portugueses ao Vaticano, para uma série de encontros com o Papa e com outros organismos da Santa Sé.
Uma pesquisa pelo histórico da agenda pública do Papa Francisco só dá conta de mais uma audiência privada do cardeal D. Manuel Clemente com o líder da Igreja Católica. Aconteceu a 28 de fevereiro de 2019, apenas quatro dias depois de ter terminado no Vaticano a cimeira convocada pelo Papa Francisco para debater a crise dos abusos sexuais de menores na Igreja. Dificilmente se saberá o que aconteceu nessa reunião, mas a nomeação do então padre Américo Aguiar, antigo chefe de gabinete de D. Manuel Clemente no Porto, para o cargo de bispo-auxiliar de Lisboa, que foi tornada pública no dia seguinte, deverá ter sido um dos tópicos centrais do encontro. Além disso, é plausível que a situação da proteção dos menores e das pessoas vulneráveis na Igreja tenha sido um dos assuntos debatidos nessa audiência, não só porque a cimeira tinha terminado apenas quatro dias antes, mas também porque D. Manuel Clemente já tinha a ideia de criar em Lisboa uma comissão de proteção de menores — que seria anunciada cerca de mês e meio depois e que viria a ser coordenada, justamente, pelo bispo D. Américo Aguiar. Na altura, contudo, nada indica que a reunião com o Papa Francisco tenha sido motivada por qualquer tipo de crise relacionada com os abusos em Portugal. O único tema era, à época, a prevenção.
Por outro lado, não é a primeira vez que a situação dos abusos de menores na Igreja em Portugal é discutida formalmente nos corredores do Vaticano. Em janeiro de 2021, na audiência que os novos líderes da CEP, D. José Ornelas e D. Virgílio Antunes, tiveram com o Papa Francisco, o assunto parece não ter sido discutido: pelo menos, não há qualquer referência a ele no resumo feito, na altura, pelo secretário da CEP, padre Manuel Barbosa. Contudo, pouco mais de um ano depois, a cúpula da CEP — desta vez uma delegação composta não só por Ornelas e Antunes, mas também por D. Manuel Clemente, D. Francisco Senra Coelho (Évora) e D. José Cordeiro (Braga) — teve de voltar ao Vaticano de urgência. Aí, sim, o tema foram os abusos sexuais, mas a reunião não foi com o Papa Francisco.
Entre abril e maio deste ano, numa altura em que a comissão independente liderada por Pedro Strecht já estava a trabalhar na investigação dos casos de abuso que terão ocorrido na Igreja nas últimas décadas, um dos grandes temas em debate era o acesso da comissão aos arquivos da Igreja Católica — documentos considerados essenciais para estudar o modo como a instituição lidou com denúncias e suspeitas de abuso ao longo das décadas. Apesar do compromisso inicial por parte da Igreja em relação à abertura dos arquivos, a situação complicou-se depois de uma interferência do embaixador do Vaticano — cujos detalhes pode ler aqui — e a solução só foi alcançada com a deslocação, de urgência, daquela comitiva de bispos portugueses ao Vaticano. Os bispos foram debater os procedimentos para a abertura dos arquivos com dois dos mais importantes membros da cúpula do Vaticano: o cardeal Marc Ouellet, prefeito da Congregação para os Bispos, e o cardeal Luis Ladaria, prefeito para a Congregação para a Doutrina da Fé. Mas a discussão, que se manteve no plano meramente dos procedimentos técnicos, não subiu até ao gabinete do Papa.
Com a entrada em funcionamento da comissão independente, que já recebeu mais de 300 testemunhos de vítimas, e com a sucessão de notícias sobre casos que a hierarquia da Igreja nunca comunicou às autoridades civis (mesmo sendo o abuso de menores um crime público), a crise que em Portugal os bispos sempre haviam rejeitado intensificou-se nos últimos dias a um nível sem precedentes. As notícias da semana passada envolvendo o patriarca de Lisboa aprofundaram ainda mais a crise na Igreja portuguesa e lançaram o debate público sobre o assunto — ao ponto de o cardeal-patriarca de Lisboa ter entendido que era necessário expor a situação ao Papa Francisco.
O Patriarcado de Lisboa não deu ao Observador mais detalhes sobre o que foi discutido entre D. Manuel Clemente e o Papa Francisco na manhã desta sexta-feira.
Três momentos em que a intervenção do Papa foi um momento de viragem
Desde que a crise dos abusos de menores na Igreja Católica eclodiu, nos anos 80, os escândalos em diferentes países chegaram em vários momentos ao gabinete de diferentes papas, que se viram obrigados a demitir bispos, escrever documentos e convocar cimeiras. As primeiras reações de João Paulo II foram tímidas (basta pensar em casos como o do infame pedófilo Marcial Maciel, o do arcebispo de Viena Hans Hermann Groër ou o do cardeal norte-americano Theodore McCarrick, nos quais a conduta de João Paulo II é hoje amplamente considerada pela Igreja como uma forma de ocultação), mas é evidente que há um antes e um depois de 2002 no que respeita à crise dos abusos na Igreja.
Foi nesse ano que o jornal norte-americano Boston Globe publicou uma série de reportagens sobre o modo como a arquidiocese de Boston havia encoberto centenas de crimes de abuso sexual, comprando o silêncio de vítimas e protegendo padres através de transferências geográficas. As reportagens viriam mais tarde a ser imortalizadas no cinema, no filme O Caso Spotlight (2015), em homenagem ao nome da equipa de jornalistas que investigou os abusos e o encobrimento. As reportagens representaram uma bomba atómica para a Igreja Católica a nível global e João Paulo II, que antes tinha reagido timidamente a outros casos de abuso, reconheceu a gravidade da situação.
Três meses depois da publicação da primeira reportagem do Boston Globe, e numa altura em que o assunto continuava a dominar o debate público nos EUA, o Papa polaco chamou ao Vaticano todos os cardeais norte-americanos para lhes passar uma reprimenda. Contudo, os tempos ainda eram outros — e João Paulo II não só não visou diretamente o cardeal Bernard Law, que tinha ocultado os casos, como se focou essencialmente no modo como o escândalo tinha prejudicado a imagem da Igreja, em vez de nas vítimas.
“Como vós, também eu fiquei profundamente magoado com o facto de que alguns sacerdotes e pessoas religiosas, cuja vocação consiste em ajudar os indivíduos a levar uma vida santa aos olhos de Deus, tenham causado tanto sofrimento e escândalo aos jovens. Em virtude do grande prejuízo causado por determinados sacerdotes e pessoas religiosas, a própria Igreja é olhada com desconfiança, e muitas pessoas ficaram ofendidas com o comportamento assumido pelos líderes da Igreja a respeito deste tema”, disse na altura o Papa João Paulo II aos cardeais americanos convocados a Roma.
Sobre o encobrimento, o Papa polaco preferiu buscar justificações: “É verdade que uma falta generalizada de conhecimento acerca da natureza deste problema e, às vezes, inclusivamente o conselho de especialistas clínicos levaram os bispos a tomar decisões que, mais tarde, os acontecimentos mostraram que eram erróneas. Atualmente, estais a empenhar-vos em definir critérios de maior confiança de modo a assegurar que estes mal-entendidos não se repitam.”
Ainda assim, o puxão de orelhas do Papa João Paulo II fez os bispos norte-americanos darem início a um processo de revisão dos procedimentos internos da Igreja. Foi nesse ano que foi produzida a célebre Carta de Dallas, um documento que se tornou num verdadeiro manual de instruções sobre como a Igreja deve lidar com casos de abuso sexual — um documento que foi múltiplas vezes revisitado ao longo dos anos, em vários países, e que inspirou decisões semelhantes em todo o mundo.
Os escândalos de 2002 motivaram também o fim da carreira eclesiástica do cardeal Bernard Law, que renunciou no final desse ano, após um grupo de padres da diocese terem exigido a sua demissão, e foi enviado para um cargo cerimonial no Vaticano. No ano seguinte, o Vaticano escolheu o cardeal norte-americano Seán Patrick O’Malley, um frade franciscano, para suceder a Bernard Law. O’Malley ainda é hoje o arcebispo de Boston e, ao longo das últimas décadas, consolidou a sua posição como principal figura da Igreja Católica a nível global na luta contra os abusos de menores. Atualmente, é o presidente da Comissão Pontifícia para a Proteção de Menores, organismo que aconselha o Papa Francisco nestas matérias.
Sete anos depois, em 2009, o escândalo repetia-se, mas agora na Europa. Depois da publicação de um conjunto de relatórios dramáticos na Irlanda, um dos países mais católicos da Europa, a Igreja Católica viu-se novamente mergulhada no escândalo e o Papa Bento XVI chamou os pesos pesados da Igreja irlandesa de urgência ao Vaticano. Dois importantes bispos irlandeses — o arcebispo de Dublin, Diarmuid Martin, e o presidente da conferência episcopal, cardeal Seán Brady — foram ao Vaticano no dia 11 de dezembro de 2009 para uma reunião tensa em que Bento XVI se mostrou muito preocupado com o facto de a Igreja ter “traído” a confiança da sociedade e das famílias que lhe confiaram as suas crianças.
O resultado mais visível daquela reunião seria uma carta pastoral do Papa Bento XVI destinada aos católicos irlandeses e publicada em março de 2010. Na carta, Bento XVI usou palavras duras para os padres abusadores: “Traístes a confiança que os jovens inocentes e os seus pais tinham em vós. Por isto deveis responder diante de Deus omnipotente, assim como diante de tribunais devidamente constituídos. Perdestes a estima do povo da Irlanda e lançastes vergonha e desonra sobre os vossos irmãos.” O longo documento, que tem mensagens dirigidas aos bispos encobridores, às vítimas, às famílias e à sociedade, ainda é atualmente considerado um dos mais importantes posicionamentos da Igreja em relação à crise dos abusos.
Uma década depois, em 2018, um novo escândalo abateu-se sobre a Igreja Católica. Em janeiro desse ano, o Papa Francisco viajou para o Chile, para uma viagem apostólica que já estava agendada para aquele país da América Latina — e já sabia que, quando aterrasse, haveria o risco de enfrentar manifestações populares contra a Igreja por causa dos abusos. Isto porque, no Chile, ainda estavam largamente por sarar as feridas em torno do histórico encobrimento dos crimes do padre Fernando Karadima, sobretudo por parte do bispo Juan Barros, que em 2015 foi nomeado pelo Papa Francisco para liderar a diocese de Osorno. Os fiéis chilenos não perdoavam ao Papa a nomeação daquele bispo que consideravam encobridor. Na viagem, questionado por uma jornalista sobre o caso, Francisco considerou que o que se dizia sobre Juan Barros eram “calúnias” e que não havia provas. As palavras de Francisco foram de tal modo graves que o Papa se viu forçado a pedir desculpa publicamente. Perante o surgimento de novos dados que sustentavam a tese do encobrimento, Francisco enviou ao Chile um emissário para investigar o caso.
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O relatório final dessa investigação tinha mais de 2.300 páginas e as conclusões eram arrasadoras para a Igreja chilena. Na sequência do relatório, o Papa convocou todos os bispos chilenos a Roma para um debate sobre a crise no país. No dia seguinte, todos os bispos do país colocaram os seus lugares à disposição.
Mas os impactos daquele escândalo do Chile não se ficaram por ali. A polémica chilena somou-se ao relatório da Pensilvânia (que levou o Papa a escrever uma carta aberta a todos os católicos do mundo) e ao escândalo em torno do cardeal McCarrick, expulso do sacerdócio — e o Papa Francisco convocou, no final do verão de 2018, a cimeira decisiva que decorreu no Vaticano em fevereiro de 2019 e cujos resultados têm vindo a ser gradualmente implementados ao longo dos últimos três anos.