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Patriarch Kirill of Moscow and all Russia visits Cuba
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Encontro histórico de 2016 entre o Papa e o Patriarca de Moscovo pode repetir-se em 2022, numa altura de grande tensão entre Rússia e Ucrânia

TASS via Getty Images

Encontro histórico de 2016 entre o Papa e o Patriarca de Moscovo pode repetir-se em 2022, numa altura de grande tensão entre Rússia e Ucrânia

TASS via Getty Images

A crise Rússia-Ucrânia também se joga nas igrejas. Pode a intervenção do Papa ajudar?

O ano termina com tensão na fronteira Rússia-Ucrânia e o medo da guerra. Em 2022, além de cimeiras políticas, há uma reunião do Papa com o Patriarca de Moscovo — um homem forte de Putin. Pode ajudar?

Quando, no dia 18 de março de 2014, a Rússia formalizou a controversa anexação territorial da Crimeia, a península ucraniana na costa norte do Mar Negro, o Presidente russo, Vladimir Putin, usou um argumento curioso para justificar a inevitabilidade da decisão: “Tudo na Crimeia fala da nossa história partilhada e orgulho. É o lugar da antiga Quersoneso, onde o príncipe Vladimir foi batizado. O seu feito espiritual de adotar a Ortodoxia predeterminou a base geral da cultura, civilização e valores humanos que unem os povos da Rússia, Ucrânia e Bielorrússia.”

Para o líder de um país que herdou o peso de quase um século de comunismo e ateísmo oficial, o recurso a um argumento de piedade religiosa para justificar uma manobra geopolítica pode parecer inusitado. Porém, a verdade é que, ao longo das últimas duas décadas, o cristianismo tradicional, e em particular a Igreja Ortodoxa Russa, se tornou numa das principais ferramentas do poder na Rússia de Putin — especialmente no que toca ao dossiê particularmente sensível da Ucrânia, que voltou a aquecer nos últimos meses.

A recente intensificação das movimentações militares russas nas proximidades da fronteira com a Ucrânia deixa antever um clima de guerra iminente. O Ocidente teme que uma invasão possa ocorrer nos primeiros meses de 2022, acusação que a Rússia nega — ao mesmo tempo que Putin vai insistindo nas suas linhas vermelhas: a certeza de que a Ucrânia não adere à NATO e que a aliança ocidental não se instala militarmente às portas da Rússia. No início de dezembro, Putin e o Presidente dos EUA, Joe Biden, reuniram-se à distância para discutir o tema. Biden garantiu que o Ocidente responderia em força no caso de uma invasão militar, Putin reiterou que não era da Rússia que viria qualquer ameaça, mas do avanço da NATO na direção do leste europeu.

Putin e Biden voltam a falar sobre a Ucrânia. Mas os tanques russos continuam na fronteira

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O conflito está, por isso, longe de sanado — e o ano novo começa com a ameaça de um violento confronto militar no horizonte. Para os primeiros dias de 2022 está já marcada uma reunião bilateral entre responsáveis dos EUA e da Rússia — e a NATO quer reunir-se com Moscovo dois dias depois para discutir o mesmo assunto. Mas o novo ano começa também com a perspetiva de um outro encontro de alto nível entre figuras de proa da Rússia e do Ocidente: uma reunião entre o Papa Francisco e o Patriarca Cirilo I, atual líder máximo do Patriarcado Ortodoxo de Moscovo, cujos detalhes ainda não são conhecidos. Poderá este encontro entre líderes religiosos, conhecidos pelos incessantes apelos à paz, ter um papel na pacificação de um conflito militar com potencial para provocar milhares de mortes?

Rencontre du pape François et du patriarche orthodoxe Kirill - Cuba Russian President Vladimir Putin marks the National Unity Day in Moscow

Em mil anos de história, só houve um encontro entre um Papa e um Patriarca de Moscovo: aconteceu em 2016 em Cuba. O Patriarca de Moscovo não é só um líder religioso, é também um homem forte de Putin

Gamma-Rapho via Getty Images

É cedo para dizer. O que é certo é que, “neste momento, falar de religião na Rússia sem falar da geopolítica é praticamente impossível“. Quem o diz é o jornalista José Milhazes, durante várias décadas correspondente de diversos órgãos de comunicação portugueses em Moscovo e um dos maiores conhecedores da história política russa em Portugal. É praticamente certo que o conflito humano iminente na fronteira entre a Rússia e a Ucrânia estará em cima da mesa — mas é mais incerto antever o real impacto do diálogo religioso na resolução de um conflito em que a dimensão religiosa tem, na verdade, intensificado as tensões.

Ortodoxia, pilar da identidade nacional russa

Nada neste conflito é verdadeiramente novo e é preciso recuar várias décadas (até séculos) para conhecer as raízes históricas do problema.

Durante séculos, a área que hoje corresponde à Ucrânia pertenceu a várias formações territoriais do leste da Europa, incluindo, mais notavelmente, à Rússia dos czares (a partir do século XVI) e ao Império Russo (a partir do século XVIII). Depois da revolução comunista de 1917, a Ucrânia tornou-se numa das várias repúblicas socialistas soviéticas que compuseram a URSS até à sua queda, em 1991. Desde então, a política ucraniana tem vivido na tensão entre os pró-russos, que pretendem manter a Ucrânia na esfera de influência de Moscovo, e os pró-ocidente, que desejam que o país se volte definitivamente para a Europa e para o mundo ocidental, incluindo, por exemplo, através da adesão à NATO.

A questão ucraniana tornou-se, portanto, um dos pontos de tensão mais prementes entre a Rússia e o Ocidente desde o final da Guerra Fria. Para a Rússia, a ocidentalização da Ucrânia significa uma ameaça evidente: a NATO às suas portas e a perda de controlo de uma das suas principais áreas de influência às portas da Europa. Em 2013, essa tensão intensificou-se a níveis históricos, quando a Ucrânia se preparava para assinar um acordo de associação com a União Europeia que lhe daria acesso a um espaço comercial partilhado com os países da UE, o que significaria um primeiro passo para uma futura adesão ao bloco. A Rússia posicionou-se duramente contra essa possibilidade — e o então presidente ucraniano, Víktor Yanukóvytch, acabou por não assinar o acordo. Isto valeu a Yanukóvytch três meses de protestos violentos nas ruas, por parte de manifestantes pró-ocidente, que culminariam com a sua deposição e exílio na Rússia.

"Neste momento, falar de religião na Rússia sem falar da geopolítica é praticamente impossível."
José Milhazes, jornalista e ex-correspondente em Moscovo

No ano seguinte, a Rússia anexou a península da Crimeia e apoiou militarmente os separatistas pró-russos que abundam na região oriental da Ucrânia, intensificando um conflito armado que deixou milhares de mortos. A anexação não foi reconhecida pela maioria dos países do mundo. Em 2015, os dois países assinaram o Protocolo de Minsk para um cessar-fogo na região, um acordo que acabaria por fracassar. Mais recentemente, em 2019, numa altura em que já tinham morrido cerca de 13 mil pessoas, Ucrânia e Rússia concordaram com um cessar-fogo mais vigoroso, num acordo facilitado pela intervenção da Alemanha e da França.

Apesar de o acordo para o cessar-fogo ter conseguido reduzir significativamente a violência física do conflito, a tensão na fronteira manteve-se. No início de 2021, após ambos os lados lançarem acusações de violação dos protocolos de paz, uma série de manobras militares russas próximas da fronteira aumentaram a tensão na região, que se dissipou com a desmobilização das tropas após uma cimeira Putin-Biden. A controvérsia voltou, contudo, já no final de 2021, com novas mobilizações militares na região fronteiriça e a discussão subiu de tom, com o ministro da Defesa ucraniano a não poupar nas palavras: em caso de invasão, vai haver um “massacre sangrento” e os soldados russos vão regressar “em caixões”.

Um aliviar da tensão, mas sem grandes convergências. A cimeira entre Joe Biden e Vladimir Putin em 5 pontos

A Rússia, que entretanto desmobilizou parte do seu contingente, continua a negar ter qualquer intenção de guerra e atira, por seu turno, as culpas ao Ocidente, salientando que Moscovo está sob ameaça de uma expansão da NATO a leste.

Ao longo de toda esta história, a presença da Igreja Ortodoxa gravitou em torno da política externa da Rússia. Hoje, não é exceção.

As origens históricas da Igreja Ortodoxa situam-se no século XI, quando o Grande Cisma dividiu o mundo do Cristianismo original em dois grandes ramos: o catolicismo romano, fiel ao Papa, patriarca de Roma, e a ortodoxia, fiel aos princípios originais das igrejas autónomas, tal como fundadas pelos apóstolos de Jesus Cristo e seus sucessores, unidas sob a autoridade dos vários patriarcas. Às divisões políticas entre Oriente e Ocidente (que já advinham da desagregação do Império Romano no século IV e da mudança da capital imperial para Constantinopla) somaram-se alguns pontos de discórdia teológica, incluindo, por exemplo, a natureza do Espírito Santo.

Por essa altura, o Cristianismo já tinha chegado em força ao território então conhecido como a Rússia de Kiev (uma união de tribos eslavas que habitavam uma grande faixa do leste europeu que hoje corresponde a partes da Rússia, Ucrânia e Bielorrússia). O batismo do príncipe Vladimir, então líder do bloco, no século X, teve um papel determinante na cristianização da região e valeu-lhe as honras de santidade. Depois do seu próprio batismo, Vladimir realizou um batismo em massa na capital ucraniana, que ficaria conhecido como o “Batismo de Kiev” — um acontecimento que é apontado como o grande início do Cristianismo na Rússia.

Os cristãos na Rússia começaram por ser liderados por um bispo metropolita que dependia hierarquicamente do Patriarca de Constantinopla. Mas, no século XVI, a grande relevância da Igreja russa levou ao reconhecimento da sua independência (ou autocefalia, nos termos ortodoxos). Desde então, e também devido à própria natureza das Igrejas Ortodoxas — que habitualmente são também igrejas nacionais, com algum tipo de relação com a nacionalidade e, por isso, com os governos —, a relação entre as autoridades religiosas e os regimes políticos russos tem sofrido profundas mudanças.

Até ao reinado de Pedro, o Grande, no início do século XVIII, a Igreja Ortodoxa Russa era dirigida por um patriarca, que tinha uma grande influência em termos políticos e religiosos na Rússia“, explica o jornalista José Milhazes, lembrando que a Rússia “é o maior país ortodoxo do mundo em termos de números”, o que a torna numa das maiores potências religiosas do planeta. “Pedro I, para acabar com a autonomia da Igreja em relação ao poder, substituiu o patriarca pelo Santo Sínodo. Na prática, era um ministério dirigido por um laico”, salienta José Milhazes. O organismo colegial tomou o lugar do patriarcado e transformou a Igreja Ortodoxa numa espécie de departamento oficial do Império Russo, dando lugar a um clima de “promiscuidade e total ausência de separação entre Igreja e Estado”.

Moscow on lockdown amid COVID-19 pandemic

A Catedral de Cristo Salvador, nas margens do rio Moscovo e nas proximidades do Kremlin, é um dos maiores templos ortodoxos do mundo e um símbolo da Igreja Ortodoxa Russa

Valery Sharifulin/TASS

Este sistema durou até ao ano da revolução russa, em 1917, altura em que a Igreja Ortodoxa procurou restaurar o patriarcado, elegendo Tikhon como patriarca de Moscovo. A recusa de Tikhon em cooperar com o governo comunista e as suas condenações explícitas de ações dos bolcheviques (incluindo a nacionalização da Igreja) levaram-no a tornar-se num alvo do poder soviético, que confiscou igrejas e outras propriedades eclesiásticas. Tikhon acabaria por ser afastado e morrer em 1925. “Não se sabe se morreu de morte morrida ou de morte matada“, comenta José Milhazes, sublinhando que, desde então, passou a haver uma Igreja permitida e oficial. “Era preciso ter Igreja para inglês ver, para parecer que havia liberdade religiosa. Mas era dirigida por um patriarca totalmente controlado pelo Partido Comunista.

O controlo da Igreja pelo Estado manteve-se durante todo o período da União Soviética e continua hoje a ser, em grande medida, usada pela Rússia de Putin como ferramenta geopolítica, como aponta Alexis Mrachek, investigadora especializada em política russa no think-tank conservador norte-americano Heritage. Desde que assumiu a presidência da Rússia, Vladimir Putin “transformou a Rússia novamente num poder imperial com ambições globais“, escreve Mrachek, acrescentando que “uma das suas ferramentas-chave nessa transformação tem sido a Igreja Ortodoxa Russa”.

Com efeito, nas últimas décadas, os países da Europa central e de leste têm protagonizado um forte revivalismo religioso após um século de ateísmo forçado imposto pelo comunismo. Dados do Pew Research Center recolhidos em 18 países da Europa central e de leste, que correspondem historicamente à área de influência comunista e soviética do século XX, mostram grandes percentagens da população a identificar-se como religiosa (com a conhecida exceção da República Checa). Na grande maioria das antigas repúblicas da União Soviética, mais de 70% da população identifica-se atualmente como cristã ortodoxa — uma expressão comparável, por exemplo, à do catolicismo em Portugal.

Somando a isto a natureza nacional da ortodoxia, fica clara a grande relevância da Igreja Ortodoxa Russa como ferramenta de poder para Moscovo. O mesmo estudo do Pew Research Center cruzou as identidades religiosas dos países da esfera de influência russa com o sentimento pró-Rússia e as conclusões são evidentes: na maioria dos países do leste (mas não na Ucrânia), a fé ortodoxa coincide, em grande parte, com a ideia de que a Rússia é uma força necessária para equilibrar o poder do Ocidente.

Como explica o Pew Research Center, “o regresso da religião, depois da queda do Muro de Berlim e da dissolução da União Soviética, ocorreu de modos diferentes nos países predominantemente ortodoxos da Europa de leste e nos países católicos e mistos”. Particularmente, “nos países ortodoxos, houve um ressurgimento da identidade religiosa, mas os níveis de prática religiosa são comparativamente mais baixos”. Ou seja, a ortodoxia assumiu-se como parte fundamental da identidade nacional nos países da esfera de influência da Rússia — e menos como identidade espiritual.

O cisma Rússia-Ucrânia

Vladimir Putin soube perceber esta realidade e usá-la em seu favor. “Putin invoca frequentemente a Igreja Ortodoxa Russa nos seus discursos públicos, dando à igreja um lugar muito mais proeminente na vida política russa do que os seus antecessores“, escreve Alexis Mrachek. Também não foi difícil para o Presidente da Rússia encontrar pontos de contacto entre o regime e a Igreja. “Putin posicionou-se como um defensor da moralidade tradicional, por exemplo, opondo-se à homossexualidade, penalizando o divórcio e apoiando a ‘família tradicional’. Ele adora posar em fotografias com o patriarca russo, Cirilo, e até já publicou calendários que o mostram em celebrações litúrgicas tradicionais.”

José Milhazes aponta outro ponto de confluência entre a Igreja Ortodoxa e o regime: a luta contra o proselitismo católico no país — importa lembrar que, em paralelo à tensão entre Rússia e Ocidente, também a Igreja Ortodoxa Russa está há um milénio de costas voltadas para o catolicismo romano. “A Igreja Ortodoxa encostou-se ao Estado para que o Estado defendesse as religiões tradicionais, que são a Ortodoxia russa, o Judaísmo, o Budismo e o Islão. A religião ortodoxa veio, com as outras, encostar-se e fazer a vontade ao Estado. Quem não faz a vontade ao Estado desaparece do mapa, como é o caso das Testemunhas de Jeová”, que em 2017 foram classificadas pelo regime russo como organização extremista e obrigadas a desmantelar a sua presença no país.

Russian President Putin visits New Jerusalem Monastery in Moscow Region

Vladimir Putin abraçou uma grande proximidade à Igreja Ortodoxa Russa e participa com frequência nas celebrações religiosas

Valery Sharifulin/TASS

“Há um campo de aproximação, que se manifesta na aposta do poder religioso em apoiar o poder político na sua política conservadora”, sintetiza José Milhazes, incluindo a Igreja Ortodoxa Russa “no coro dos valores tradicionais” e classificando-a como instituição com grande capacidade de moldar a sociedade russa, servindo por isso de ferramenta propagandística para o regime de Putin. Basta lembrar, por exemplo, quando em 2012 o Patriarca Cirilo declarou publicamente que os 12 anos de liderança de Vladimir Putin na Rússia eram “um milagre de Deus”.

O conflito com a Ucrânia é, provavelmente, a dimensão em que o alinhamento da Igreja com o regime transparece de modo mais evidente.

A nível global, a Igreja Ortodoxa organiza-se através de uma série de “igrejas autocéfalas” regionais, que têm autonomia, mas que se congregam na comunhão ortodoxa em torno do Patriarca de Constantinopla — um primus inter pares entre os vários patriarcas, mas sem uma jurisdição universal comparável à do Papa para os católicos. Com mais de 90 milhões de fiéis, o Patriarcado de Moscovo é a maior denominação eclesiástica do mundo e, além dos fiéis na Rússia, tem jurisdição sobre comunidades ortodoxas fora das fronteiras nacionais. Uma das mais importantes foi, até 2018, a comunidade ortodoxa ucraniana.

Desde o século XVII, os ortodoxos da Ucrânia formaram uma comunidade sob jurisdição do Patriarcado de Moscovo (como, aliás, em vários dos territórios de influência russa). Todavia, durante o conturbado século XX, a ortodoxia na Ucrânia sofreu divisões à medida que parte do país começou um caminho de aproximação ao Ocidente. Até há bem pouco tempo, existiam três Igrejas Ortodoxas rivais na Ucrânia: a Igreja Ortodoxa da Ucrânia, sob a alçada do Patriarcado de Moscovo e maioritária; o Patriarcado de Kiev (minoritário e não reconhecido por nenhuma igreja oficial); e ainda a Igreja Ortodoxa Autocéfala da Ucrânia (autoproclamada em 1921 e sem reconhecimento internacional).

Em 2018, já num contexto de enorme instabilidade geopolítica entre a Rússia e a Ucrânia, a tensão aprofundou-se também no domínio religioso. Durante um concílio realizado nesse ano, todos os membros do Patriarcado de Kiev e da Igreja Ortodoxa Autocéfala da Ucrânia, bem como dois elementos da Igreja Ortodoxa da Ucrânia, votaram favoravelmente a fusão das denominações religiosas e a criação de uma única Igreja Ortodoxa Ucraniana, totalmente independente de qualquer outro Patriarcado e com sede em Kiev. A decisão desagradou ao Patriarca de Moscovo, que perdeu soberania religiosa sobre a Ucrânia, mas foi aceite pelo Patriarca de Constantinopla, Bartolomeu — o tal primus inter pares da comunhão ortodoxa —, que no início de 2019 assinou o decreto e legitimou a Igreja Ortodoxa Ucraniana com sede em Kiev.

Cisma do século XXI. Igreja Ortodoxa Russa rompe relações com patriarca de Constantinopla

Atualmente, a Igreja Ortodoxa Ucraniana é reconhecida como autocéfala por vários Patriarcados ortodoxos, incluindo, naturalmente, o de Constantinopla — mas não é reconhecida pelo de Moscovo, que continua a considerar a Ucrânia como um território seu e, por isso, continua a manter uma Igreja Ortodoxa fiel a Moscovo na Ucrânia. Como resultado deste conflito, o Patriarcado de Moscovo rompeu as relações com o Patriarcado de Constantinopla, dando origem a um cisma que partiu o mundo ortodoxo ao meio, em 2018. Hoje, as duas Igrejas Ortodoxas coexistem na Ucrânia: uma é seguida pelos fiéis pró-Rússia, outra pelos fiéis pró-Ocidente. E tudo por questões puramente políticas — nunca religiosas ou teológicas.

A Igreja Ortodoxa Russa, porém, acabaria por inverter o discurso em torno do conflito e por acusar a Ucrânia de politizar a religião, incentivando à criação de uma Igreja independente por motivos políticos. “Não é o Patriarcado de Moscovo que recusa aceitar a independência da Igreja na Ucrânia. É a Igreja na Ucrânia que não quer independência e que não está a pedir a autocefalia“, disse em 2018 o número dois da Igreja Ortodoxa Russa, o arcebispo metropolita Hilarion Alfeyev, numa entrevista ao Observador. “Estamos a falar de política. Consegue imaginar o Presidente de Portugal chamar todos os bispos ortodoxos ao seu gabinete e dizer: agora, têm de ser uma igreja independente, têm de quebrar as relações com Moscovo, com Constantinopla, com Antioquia, e têm de se tornar numa igreja independente porque nós somos um país independente. Consegue imaginar isto?”, acrescentou o homem apontado como o próximo Patriarca de Moscovo. “Isto é inimaginável neste contexto político e é inimaginável na Rússia, onde a Igreja é acusada de ser muito próxima do Estado. Mas é imaginável na Ucrânia atual. O presidente decide quem deve ir a cada igreja.”

O metropolita Hilarion Alfeyev, número dois da hierarquia ortodoxa russa, fotografado pelo Observador numa passagem por Portugal em 2018

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

O discurso de Hilarion refletia a posição do próprio Kremlin. Na sequência do cisma religioso, Vladimir Putin veio a público classificar a independência da Igreja ucraniana como “uma flagrante interferência na vida da Igreja” e uma ação política que “não tem nada a ver com a fé”. Putin aproveitou ainda para deixar no ar que a Rússia poderia responder: “O governo russo acredita que qualquer interferência na vida da Igreja está fora dos seus limites. Respeitámos e respeitaremos a independência da vida da Igreja, especialmente num país soberano vizinho. Porém, reservamo-nos o direito de reagir e de fazer todos os possíveis para proteger os direitos humanos, incluindo a liberdade de religião.”

Na mesma entrevista ao Observador, Hilarion rejeitou as acusações de promiscuidade entre Igreja e Estado na Rússia e deu o exemplo de uma lei, aprovada em 2017, que descriminalizou várias formas de violência doméstica na Rússia. “Não apoiámos esta lei. No geral, não houve muito apoio, e a Igreja falou abertamente contra a adoção desta lei”, disse Hilarion. “Neste caso, a posição da Igreja não foi ouvida. E isto, já agora, é uma indicação de que a posição da Igreja não é sempre ouvida pelo Estado.

Ministro da Defesa ucraniano avisa Rússia: em caso de invasão vai haver um “massacre sangrento” e russos vão voltar “em caixões”

Na perspetiva de José Milhazes, o cisma de 2018 é uma “guerra no campo religioso que reflete uma guerra em termos políticos” e que se resume no “receio de Moscovo de perder crentes a favor das igrejas nacionais, que vêem na Igreja Ortodoxa Russa um símbolo do poder russo”. Com efeito, continua o jornalista, “a Igreja Ortodoxa Russa é uma das correntes de transmissão da política externa russa”. Alexis Mrachek concorda: “Como Putin procura ter mais influência sobre estas nações [de leste], enfatizar a religião tradicional serve dois dos seus objetivos. Estabelece um terreno comum entre a Rússia e a Europa de leste e, mais importante, amplifica as diferenças que a Europa de leste pode ter com o Ocidente, especialmente numa altura em que o mundo ocidental se afasta cada vez mais dos valores tradicionais e da religião.”

Atendendo à relevância política do Patriarca de Moscovo, restam poucas dúvidas de que o encontro de Cirilo com o Papa Francisco, considerado uma das figuras de proa do mundo ocidental, terá uma dimensão política que transcenderá seguramente a sua dimensão espiritual. Tratando-se de dois homens cujos discursos públicos têm sido marcados por reiterados apelos à paz, resta saber que impacto poderá ter o encontro prometido na acalmia dos ânimos na fronteira entre a Rússia e a Ucrânia.

Pode o Papa ser um emissário do Ocidente no diálogo com a Rússia?

Durante um milénio, Igreja Ortodoxa Russa e Igreja Católica estiveram de costas voltadas. Mesmo quando os esforços do diálogo ecuménico permitiram uma aproximação entre o mundo católico e o mundo ortodoxo, através de encontros entre os Papas e os Patriarcas de Constantinopla, a comunicação com Moscovo manteve-se sempre cortada. O corte de relações só terminou em 2016, quando Francisco e Cirilo se encontraram numa sala do aeroporto de Havana, em Cuba — as viagens dos dois líderes foram ajustadas para aquela escala coincidir e permitir o primeiro encontro entre um Patriarca de Moscovo e um Papa em mil anos de história.

Desse encontro inédito resultou uma declaração conjunta que abordou o tópico da Ucrânia com pinças. “Deploramos o conflito na Ucrânia, que já causou muitas vítimas, provocou inúmeras tribulações a gente pacífica e lançou a sociedade numa grave crise económica e humanitária. Convidamos todas as partes do conflito à prudência, à solidariedade social e à atividade de construir a paz. Convidamos as nossas Igrejas na Ucrânia a trabalhar por se chegar à harmonia social, abster-se de participar no conflito e não apoiar ulteriores desenvolvimentos do mesmo“, lê-se na declaração, que apelou ainda a que “todos os cristãos ortodoxos da Ucrânia vivam em paz e harmonia” e pediu que as comunidades católicas ajudassem nesse processo num espírito de “fraternidade cristã”.

Rencontre du pape François et du patriarche orthodoxe Kirill - Cuba Rencontre du pape François et du patriarche orthodoxe Kirill - Cuba

Em fevereiro de 2016, o Papa Francisco e o Patriarca Cirilo I protagonizaram um encontro inédito em Cuba e assinaram uma declaração conjunta

Gamma-Rapho via Getty Images

Na altura, parte do universo católico manifestou desilusão com o Papa Francisco por não ter ido mais longe na declaração e não ter ficado explícito o papel da Rússia no conflito armado. “O Papa acabou de beijar o anel a Putin?”, perguntava a Economist depois do encontro, num artigo em que classificou a reunião como “uma vitória diplomática” para Moscovo. “A Igreja Ortodoxa Russa e o Kremlin costumam operar em conjunto e o Patriarca Cirilo não poderia ter aceitado reunir-se com o Papa sem a bênção do Presidente da Rússia, Vladimir Putin.”

“Putin tem enfatizado que o Cristianismo Ortodoxo é um pilar da identidade nacional russa, apelando aos valores religiosos conservadores para sustentar o seu governo. Quando fala sobre assuntos internacionais, a Igreja não é uma instituição independente, mas, até certo ponto, uma extensão do Estado russo”, elaborava o artigo.

Consciente da sensibilidade do tópico, o Papa Francisco usou de grande cautela nas várias vezes que se pronunciou sobre o conflito entre a Rússia e a Ucrânia. Em junho de 2015, quando recebeu Vladimir Putin no Vaticano, o Papa argentino aproveitou a costumeira troca de presentes para oferecer ao Presidente russo um medalhão com o anjo da paz — o mesmo presente que tinha gerado controvérsia quando Francisco o ofereceu ao presidente palestiniano, Mahmoud Abbas. Nessa ocasião, o Papa apelou a Putin que embarcasse num “grande e necessário esforço para forjar a paz” na Ucrânia. Já em dezembro de 2021, a meio das novas tensões, o Papa Francisco voltou a pedir à comunidade internacional que seja capaz de resolver o conflito “através do diálogo sério e não com armas“.

Para o Papa Francisco, o assunto é particularmente controverso, uma vez que envolve simultaneamente um conflito armado internacional e uma discórdia religiosa. No jornal especializado Crux, o analista John Allen Jr. resumia, em 2015, a dificuldade de Francisco. “Quando um conflito emerge em qualquer lugar do mundo, os Papas esforçam-se habitualmente por se manter neutros, de modo a poderem atuar como potenciais mediadores. Por outro lado, também é expectável que os Papas apoiem o seu próprio rebanho se forem eles a estar sob fogo. Encontrar o equilíbrio certo entre a neutralidade e a lealdade pode ser complicado, como o ilustra a retórica de Francisco sobre a Ucrânia“, escreveu Allen.

“Muitos católicos ucranianos acreditam que o pontífice foi longe demais esta semana nos seus esforços de provar à Rússia, e especialmente à Igreja Ortodoxa Russa, que não quer começar uma guerra. (…) Francisco descreveu a violência atual no leste da Ucrânia como ‘fratricida’, enquanto a maioria dos ucranianos diriam que é, na verdade, o produto de uma agressão estrangeira da parte de Moscovo”, acrescentou o analista especializado na política vaticana. “Como resultado, muitos ucranianos sentem que Francisco (talvez inadvertidamente) atirou o país para debaixo do autocarro para ser ‘ecumenicamente correto’, ou seja, para não irritar a Igreja Ortodoxa Russa.

Da parte do Patriarca de Moscovo, também são frequentes os apelos à paz em conflitos armados na região de influência territorial da Rússia. Fê-lo no verão de 2020 relativamente aos conflitos na Arménia e no Azerbaijão — e também já o tinha feito em 2015, a propósito da questão ucraniana. Na altura, o Patriarca Cirilo enviou mensagens idênticas a Putin e ao Presidente da Ucrânia, Petr Poroshenko, apelando ao diálogo entre as partes e enfatizando o sofrimento dos mais vulneráveis no meio do conflito.

"Muitos católicos ucranianos acreditam que o pontífice foi longe demais esta semana nos seus esforços de provar à Rússia, e especialmente à Igreja Ortodoxa Russa, que não quer começar uma guerra. (...) Francisco descreveu a violência atual no leste da Ucrânia como ‘fratricida’, enquanto a maioria dos ucranianos diriam que é, na verdade, o produto de uma agressão estrangeira da parte de Moscovo."
John Allen Jr.

Cinco anos depois do encontro histórico em Cuba, e num momento em que a tensão na fronteira entre a Rússia e a Ucrânia atinge proporções que fazem antever a possibilidade de uma guerra de grandes dimensões, parecem estar reunidas as condições para um novo encontro entre o Papa Francisco e o Patriarca Cirilo I. Francisco admitiu-o no início de dezembro, quando falou aos jornalistas a bordo do avião que o transportou entre Atenas e Roma. “Eu estou sempre disponível para ir a Moscovo dialogar com um irmão. Para dialogar com um irmão, não há protocolos“, disse Francisco.

Os planos para o encontro ganharam forma poucos dias antes do Natal, quando o Papa Francisco recebeu no Vaticano o metropolita Hilarion para uma audiência que durou quase uma hora. À saída do encontro, o Vaticano publicou um comunicado sublinhando a necessidade de os cristãos percorrerem juntos um “caminho de fraternidade”. Mais específico foi o comunicado divulgado por Hilarion, que admitiu que entre os tópicos discutidos com o Papa se incluiu “um possível encontro entre o Papa Francisco e o Patriarca Cirilo“.

Nesse comunicado, o número dois da Igreja Ortodoxa Russa explicou que, desde o último encontro entre os dois líderes, “muita água correu” e o universo cristão já não se encontra nas mesmas circunstâncias: “A situação inter-Ortodoxa mudou [uma referência ao cisma de 2018] e começou uma pandemia.”

O encontro deverá acontecer já nos primeiros meses de 2022 e, embora Francisco tenha mostrado disponibilidade para se deslocar a Moscovo, o mais provável é que a reunião aconteça em terreno neutro: uma das possibilidades já ventiladas é a Finlândia, país que o Patriarca Cirilo vai visitar no próximo ano.

Para José Milhazes, parece certo que “o Papa não vai à Rússia“, apesar de Francisco se ter mostrado disponível. “Essa disponibilidade já vem desde o tempo do Papa João Paulo II. Tiveram sempre o sim do poder político, mas o não da Igreja Ortodoxa Russa, porque para eles a Igreja Católica é herética”, explica o ex-correspondente em Moscovo. Admitindo que o encontro do Cuba, em 2016, permitiu o início de uma “aproximação muito lenta”, José Milhazes antevê que os dois líderes religiosos vão focar-se essencialmente nos tópicos comuns que constituem “as bases de diálogo” entre as duas Igrejas. Destacam-se “os fundamentos das religiões cristãs, ou seja, a luta contra o aborto, os homossexuais“, entre outros temas, sublinha o ex-correspondente, lembrando que a recente abertura do Papa Francisco à aceitação dos homossexuais na Igreja tem tido um “impacto tenebroso na Rússia”.

Ucrânia. Putin acredita em diálogo eficaz com Biden

“É verdade que o Papa Francisco, de vez em quando, vai falando sobre a Ucrânia. Mas penso que, em termos do conflito, o encontro do Papa com o Patriarca não vai ter grande resultado. Por uma razão: para o Patriarcado de Moscovo, a Ucrânia é um território seu. Um território tradicional, que em geopolítica se traduz como zona de influência. Não vão deixar entrar uma raposa dentro do galinheiro, não vão dar à Igreja Católica um papel na resolução do problema entre ortodoxos“, considera o jornalista.

“O encontro irá concentrar-se na defesa dos direitos tradicionais judaico-cristãos. A Rússia não quer que alguém meta ali o nariz e não vai ser o Papa a entrar lá. A imagem transmitida na Igreja Ortodoxa Russa é a de que o Papa é o Ocidente, é um herético. Para a fotografia, vão de braços abertos. Mas o que saiu de Cuba? Uma aproximação entre Igrejas poderá acontecer apenas nos valores tradicionais, mas não o Papa como intermediário no conflito com a Ucrânia”, estima José Milhazes, sintetizando a narrativa russa sobre o Ocidente: “Tenta-se transmitir que a Rússia é um país estável e em desenvolvimento, e que toda a gente à sua volta lhe quer fazer mal.”

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