Seis mulheres estudantes e ativistas pelo clima levaram esta terça-feira um pedido bem claro a António Costa Silva: a sua demissão. A reunião terminou, no entanto, sem a saída do responsável pela pasta da Economia e cinco das seis jovens colaram as suas mãos ao chão no final do encontro. Foram levadas para a esquadra do Martim Moniz e, à porta, estavam dezenas de jovens em vigília, que esperavam pela sua saída.
Costa Silva depois da reunião com ativistas climáticos: “Estava à espera que houvesse propostas”
Perante a polícia, estas jovens nunca ofereceram resistência. E este ponto é importante para perceber o quão bem preparadas estavam para todos os cenários — desde as ocupações que fizeram na semana passada até à detenção feita esta terça-feira.
O coletivo Fermento e as formações em desobediência civil
Antes de ocuparem escolas e faculdades, Alice, Teresa, Clara, Raquel, Leonor e Francisca — jovens que têm entre 17 e 21 anos — tiveram formação em desobediência civil. E algumas já deram, aliás, estas formações. O objetivo é preparar os movimentos que querem ampliar a sua voz através das ocupações — seja na área do ativismo climático, justiça social, ou outra. “Nas formações em desobediência civil, nós ensinamos o que as pessoas e grupos devem fazer e falamos sobre os riscos legais de fazer ocupações“, explicou ao Observador Alice Gato, uma das seis jovens que esteve na reunião com o ministro da Economia, em representação do grupo da greve climática estudantil, e que foi detida.
Mas esta forma de ensinar o que pode ser feito nos protestos, manifestações e ocupações não é nova. O movimento ambientalista Climáximo já dava estas aulas nas suas ações, como aconteceu, por exemplo, quando invadiram a refinaria de Sines, no ano passado. Aliás, Francisca Duarte, outra das jovens detidas esta terça-feira, que tem 17 anos, esteve lá, em Sines, e, como contou ao Observador, teve a tal formação de desobediência civil com a Climáximo. Apesar de ainda ser menor e de não fazer parte de nenhum dos movimentos que se associaram às ocupações dos últimos dias, esta aluna do Liceu Camões começou a juntar-se às greves climáticas em 2019, quando as ações de protesto se realizavam à sexta-feira.
Primeiro, Francisca começou, sozinha, a tentar perceber de que forma conseguiria melhorar as políticas relacionadas com o clima. Mas só no ano passado, quando estava no tal protesto da Climáximo, em Sines, é que percebeu que “o conflito tinha de escalar” para que as sua mensagem fosse ouvida.
Foi então que chegou a segunda formação em desobediência civil de Francisca. Desta vez, já não diretamente com a Climáximo, mas com um coletivo que surgiu recentemente deste movimento ambientalista. Chama-se Fermento e “nasceu da necessidade de dar ferramentas e capacitar pessoas, e mesmo coletivos, para agir”, acrescenta Leonor Chicó, outra das jovens que foram recebidas pelo ministro da Economia e que começou a ensinar ativistas há pouco tempo.
Nos últimos dias, à boleia da presença de partidos como o Bloco de Esquerda nos protestos em defesa do clima, surgiu a dúvida sobre as ligações partidárias que poderiam ter estes movimentos que ocuparam escolas e faculdades. “O movimento é apartidário, não existe qualquer ligação com partidos políticos“, afirmou Alice Gato à Lusa, esta segunda-feira. Isto, apesar de muitos ativistas que estiveram agora nas ruas e que tiveram formações na Fermento pertencerem à Climáximo — coletivo que se apresenta como apartidário, mas que, como avançou o Observador já em 2019, tem ligações ao Bloco de Esquerda e que publica as suas ações no portal de notícias Esquerda.net. Questionada por email pelo Observador sobre alegadas ligações partidárias e formas de financiamento, a Fermento não respondeu até à hora de publicação deste artigo.
Mas, afinal, em que consiste a formação em desobediência civil que é ministrada pela Fermento? “Nesta formação extensiva, abordamos todos os aspetos de desobediência civil. Do conceito até aos exemplos históricos, das ferramentas práticas até assuntos legais, esta formação prepara qualquer pessoa interessada em ação direta não-violenta para participar numa ação”, lê-se no site do coletivo Fermento.
Antes das ocupações das escolas e faculdades, que aconteceram durante este mês de novembro em Lisboa, praticamente todos os manifestantes participaram nas quatro formações que o coletivo Fermento promoveu. A primeira, por exemplo, aconteceu na Fábrica Braço de Prata, em Marvila, no dia 20 de outubro.
“Eu dei várias destas formações”, explicou Alice Gato. A jovem de 20 anos, que ocupou a Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, diz ter feito várias ações de desobediência com a Climáximo, como as que aconteceram em Sines, e com outros grupos internacionais. E mais: “Fui detida numa ação de desobediência civil em Madrid, em 2020”.
Sempre que é feita uma ação, explicou a jovem estudante de mestrado em Ciências da Comunicação, é dada uma formação para que todos saibam o que podem fazer e, sobretudo, que riscos correm.
Mas o coletivo Fermento não tem só esta formação. “Há formações mais organizativas como, por exemplo, para facilitar reuniões. Depois há formações mais políticas e formações mais estratégicas. E há também formações de ação, como aquelas que nós fizemos para as ocupações”, explicou Alice.
Olhando para o site deste coletivo, que começa logo por dizer que “mudar o mundo é um ato deliberado”, encontram-se então quatro tipos de formação: em ação, em estratégia, em organização e em comunicação. No total, existem 15 formações. Na parte da ação, além da formação em desobediência civil, existe a introdução à desobediência civil, a introdução à ação direta não-violenta e a desobediência civil em massa.
Depois, na parte da estratégia, encontra-se, por exemplo, a formação em teorias da mudança e escalamento de conflito. “Discutimos as teorias de mudança que várias organizações têm sobre diversos assuntos e analisar as estratégias e táticas que as mesmas utilizam para atingir a mudança que pretendem. Depois, discutimos como e porque utilizamos estratégias de escalamento”, lê-se na página. No fundo, ajuda os movimentos sociais a encontrar estratégias para “atingir a mudança que pretendem”.
E também há quem ensine e quem aprenda os conceitos básicos de ativismo. Em duas horas, o coletivo Fermento responde a questões como: “Porque é que fazemos ações em vez de reunir com os partidos políticos e convencê-los, fazer palestras, organizar petições e publicar memes nas redes sociais?”
A organização é uma peça fundamental destes protestos e a Fermento pretende garantir que nenhum passo é dado em falso. Na página deste coletivo estão disponíveis vários guiões, que vão desde os pontos a abordar nenhuma reunião até à construção de um comunicado. Para a comunicação social, por exemplo, a Fermento disponibiliza um comunicado pré-definido, para ser preenchido por cada movimento e dá ainda uma check list, para que os ativistas saibam quando têm de mandar o e-mail para os jornalistas, saibam que têm de estar disponíveis para prestar declarações, ou ainda que têm de partilhar as notícias que são publicadas nas redes sociais.
O apoio jurídico e o manual de apoio legal
A detenção que aconteceu esta terça-feira foi a segunda em poucos dias. No sábado passado, quatro jovens do movimento “Fim ao Fóssil: Ocupa!” foram detidos na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa e, quando foram presentes a tribunal, esta segunda-feira, recusaram suspender provisoriamente o processo e preferiram ir a julgamento, que ficou marcado para o próximo dia 29 de novembro.
Detidos quatro ativistas climáticos que ocupavam Faculdade de Letras de Lisboa
Em qualquer que seja o cenário da detenção, o conselho é sempre o mesmo: nunca falar com a polícia e nunca dizer nada sem a presença de um advogado. Esta dica é dada durante as formações em desobediência civil, já que a detenção é uma possibilidade durante as ocupações e consta do manual de apoio legal que é frequentemente citado nestes encontros e que foi feito em 2019 pela Climáximo — o braço do Extinction Rebellion em Portugal. Este manual, não garante respostas “à prova d’água”, mas dá muitas pistas sobre como agir.
Um dos conselhos surge logo no início: “Se achares que isso (falar com a polícia) te acalmaria, podes ponderar limitar-te a repetir uma frase pré-definida durante a ação”, lê-se no mesmo manual, disponível no site da Fermento. E é também aconselhado “evitar comportamentos violentos ou comportamentos de resistência”.
Já na parte do “enquadramento legal e possíveis acusações” são descritos vários cenários e, à partida, quem ocupa saberá com o que contar. Por exemplo, todos ativistas que invadiram o edifício da Ordem dos Contabilistas no sábado passado saberiam que podiam ser acusados de “introdução em lugar vedado ao público”. Como refere o documento, “entrar em edifícios públicos ou privados e ocupar, seja por simplesmente se sentarem no chão ou de outra forma”, pode resultar numa pena de “prisão máxima até 3 meses ou com pena de multa até 60 dias”.
Se for um órgão de soberania — como, por exemplo, um ministério –, indica ainda o documento, “pode ser invocada ‘perturbação do funcionamento de órgão constitucional'”. E a pena de prisão pode variar entre os seis meses e os dois anos.
Também no passado sábado, enquanto alguns ativistas invadiam a Ordem dos Contabilistas, houve quem se sentasse na estrada, à frente do edifício. Quem faz formações em desobediência civil sabe que “ocupação de via pública, incluindo estrada ou outras vias de passagem — pode ser interpretado como desobediência à ordem de dispersão de reunião pública”.
Depois destes avisos, o manual de apoio legal prevê então o cenário da detenção em detalhe. “Em princípio, nunca deves prestar declarações, a não ser que estejas acompanhado por um advogado que o recomende. Na dúvida, deves declarar que não pretendes prestar declarações.”
“É muito provável que sejas constituído arguido. Se isso acontecer, ser-te-ão apresentados três documentos. Deves ler atentamente estes documentos, com especial atenção para os elementos de identificação, e deves assinar”, lê-se já muito perto de concluir as dez páginas do manual.
Em caso de detenção, o movimento pela justiça climática que ocupou escolas e faculdades nos últimas dias tem consigo a ajuda de dois juristas e três advogados, que estão com estes jovens, como indicou ao Observador Alice, uma das jovens que ocupou a Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa.
Foi também por orientação destes profissionais que os jovens detidos durante o fim de semana escolheram ir a julgamento. “Aceitar uma suspensão provisória de processo, embora reduza algumas consequências legais e imediatas, na realidade, é como considerarem-se culpados. E, se houver um outro processo, depois acumula no futuro”, explicou Alice.
“O que mudou? Temos menos tempo, as emissões continuam a aumentar e mudaram as nossas táticas e a nossa determinação”
Pelo menos três das seis alunas que foram recebidas esta terça-feira pelo ministro da Economia — Alice Gato, Francisca Duarte e Leonor Chicó — participam ativamente nos protestos pelo clima desde 2019, o ano em que começaram as greves climáticas e as manifestações ganharam maior dimensão. No entanto, nunca os protestos tinham atingido proporções semelhantes às conseguidas nos últimos dias.
“O que mudou? Temos menos tempo, as emissões continuam a aumentar e mudaram as nossas táticas e a nossa determinação“, explicou Alice. E basta olhar para o cenário internacional, para perceber que as táticas mudaram nos últimos meses. Exemplo é o vandalismo que tem sido feito a algumas das obras de arte mais famosas do mundo. Além disso, as formações da Fermento abriram também outras possibilidades de luta aos ativistas e ofereceram também outra preparação.
À medida que o tempo vai diminuindo, também a “paciência” destes ativistas se torna cada vez menor, sobretudo quando o tema é a utilização de combustíveis fósseis ou o crescimento do consumo de gás, defendem. E é enquanto coletivo que estas seis jovens encontraram a sua força.
“Percebi que, individualmente, não conseguia ir a lado nenhum e que tinha de canalizar esta frustração e esta força para algo coletivo e a única coisa sensata que conseguimos fazer neste momento é juntarmo-nos a coletivos para poder combater esta crise. Percebi também que eu poderia ter um papel dentro dos coletivos e qual é que poderia ser a minha contribuição enquanto indivíduo em algo maior”, acrescentou Leonor Chicó, de 17 anos, que faz parte da Greve Climática Estudantil e da Climáximo.
Professores promovem manifesto de apoio a ocupações pacíficas de escolas pelo clima
Esta terça-feira, durante a reunião que decorreu no ministério da Economia, as seis jovens pediram a demissão do ministro. À saída do encontro, o governante deixou uma nota sobre esse assunto: “Estava à espera que houvesse propostas”. E acrescentou que não foi apresentada “nenhuma” ideia de mudança.
Costa Silva disse ainda que a carta que lhe foi apresentada “tinha vários factos falsos”: “Nomeadamente que eu era contra os impostos excessivos às companhias petrolíferas, quando fui a primeira pessoa no Parlamento a avançar com isso.”