Capítulo de um artigo originalmente publicado a 12 de janeiro de 2018 intitulado “Como Rui Rio governou o Porto. 12 histórias para conhecer melhor o novo líder do PSD“
22 de julho de 2002. A tarde de festa ia ainda no início. O Bairro das Campinas, no Porto, tem tudo pronto para receber o cantor Emanuel, a estrela da música “pimba” portuguesa. Rui Rio chegou acompanhado pelo ministro da Cultura, Pedro Roseta. Depois de subir ao palco para prometer ajuda aos moradores de um dos bairros mais degradados da cidade, o autarca lançou-se para os braços da primeira sortuda. Pedro Roseta seguiu-lhe os passos e os dois ensaiaram um pé de dança ao som dos artistas convidados pela Rádio Festival.
Com os primeiros cortes de verbas à Fundação Ciência e Desenvolvimento já anunciados pela câmara, os jornalistas não resistem em perguntar: o estilo “pimba” podia ser um meio de democratizar a cultura? E Rio não hesita: “Em vez de apoios monstruosos, devemos juntar o útil ao agradável. A câmara deve dar à população momentos de alegria, porque são pessoas que ganham pouco e têm uma vida difícil”, explica-se. Ao lado, Pedro Roseta não esconde o embaraço. “A democratização passa pela escola, para que as pessoas tenham espírito aberto. Devemos aproveitar estes momentos para chamar a atenção dos adultos que não vão à escola para os grandes nomes da literatura, da música“, tenta corrigir.
Seria demasiado tarde. No dia seguinte, o jornal Público dedicou um longo artigo à visita de Rio ao Bairro das Campinas. O título era sugestivo: “Rui Rio rivaliza com rei da música ‘pimba’“. A fotografia que ilustrava a chamada de capa retratava um sorridente Rui Rio ao lado de um embaraçado Pedro Roseta. Por estes e outros episódios, os adversários de Rui Rio nunca lhe perdoaram aquilo que diziam ser a notória falta de sensibilidade cultural do autarca.
A herança que Rio deixou na Cultura da cidade do Porto foi um dos pontos mais contestados no currículo do ex-presidente da câmara. Ao longo de 12 anos, o novo líder do PSD travou uma batalha contra aquilo que dizia ser a cultura de subsídio-dependência instalada entre os agentes culturais da cidade. Por isso, foi acusado de hostilizar abertamente o setor, que nunca se cansou de responder: além das muitas manifestações contra a política cultural da autarquia, houve mesmo ações judiciais interpostas contra a câmara. As vaias a Rio na inauguração do Fantasporto, que a autarquia subsidiava apesar dos cortes impostos, foram talvez um momento de viragem para o presidente da câmara.
O autarca nunca esqueceu a afronta. Em 2005, Rio impôs uma cláusula para este tipo de apoios: as instituições apoiadas pela câmara deviam abster-se de fazer críticas à autarquia que colocassem em causa o bom nome e a imagem do município enquanto entidade co-financiadora do evento. A oposição viu ali uma imposição anti-democrática e censória; as instituições que se candidatavam a apoios consideraram-na uma tentativa de silenciamento; o provedor de Justiça apontou-lhe o caráter “ilegítimo“; mas Rio chamou-lhe uma questão “elementar” de “boa educação” e “cívica”.
Mas foi a concessão do Teatro Rivoli a privados que mais dores de cabeça deu a Rui Rio. A 15 de outubro de 2006, um grupo de quase 30 pessoas decidiu barricar-se no teatro contra a privatização do teatro municipal. O braço de ferro manteve-se durante mais de três dias, com Rui Rio a recusar qualquer tipo de diálogo com os manifestantes. Isabel Pires de Lima, a mesma ministra da Cultura que manteve um diferendo com o autarca a propósito do Túnel de Ceuta, foi chamada a intervir e ainda admitiu mediar o conflito. De nada valeu. À medida que os dias passavam, a câmara aumentou a pressão: cortou a eletricidade, a água e barrou a porta lateral que permitia as comunicações dos ocupantes com o exterior.
Os relatos desses momentos são quase bizarros à luz dos dias de hoje: assim que a entrada lateral foi fechada, os mantimentos passaram a ser habilmente introduzidos por uma estreita fresta, fossem maços de tabaco, pão, café ou chocolates. Se a PSP desligava o amplificador colocado à porta do Rivoli de onde saíam as palavras de ordem contra Rio, os manifestantes ligavam outro. No exterior, eram muitos os que se juntavam à causa dos ocupantes. O autarca mantinha-se em silêncio; já a câmara avançava com uma queixa-crime por ocupação indevida.
Depois de 79 horas da ocupação, a PSP interveio finalmente. Cerca de 100 polícias, transportados por oito carrinhas, chegaram ao local às 5h50. Afastaram os manifestantes que dormiam no exterior, vedaram o perímetro exterior, cortaram o trânsito e entraram depois no teatro onde já só permaneciam 13 pessoas. Seriam retiradas sem apresentarem resistência. Um ano depois, a queixa-crime apresentada contra o grupo seria arquivada pelo Tribunal de Instrução do Porto.
O Rivoli acabaria mesmo por ser concessionado a Filipe La Feria, como temiam os manifestantes. Mas nem assim as dores de cabeça terminaram para Rui Rio. O encenador explorou o teatro municipal entre 2007 e 2010, ano em que saiu, assumindo que as “dívidas” que tinha acumulado não davam para mais. As notícias sobre os pagamentos em atraso a atores e da degradação do teatro continuaram a dominar a agenda mediática.
Rui Rio pôs-se sempre à margem destas polémicas. Ainda sobre La Feria, o presidente chegou a justificar: “Ele esteve lá quatro anos e o montante [da poupança] não terá chegado aos 10 milhões. [Cerca] de nove milhões, que estão investidos nos bairros sociais“. Para o autarca, foi sempre uma questão de prioridades: se não havia dinheiro para tudo, os apoios à cultura tinham de ser racionalizados. “Não se pode gastar em teatro o dobro do que em ação social“, ia justificando o autarca.
Para Rio, a questão tornou-se quase pessoal: “Havia uma certa elite cultural no Porto que não o suportava; e Rio não estava disposto a quebrar“, nota uma fonte que trabalhou de perto com o autarca. Em 2009, quando foi ao programa dos Gato Fedorento, o Esmiúça os Sufrágios, na SIC, Rio respondeu com sarcasmo às provocações de Ricardo Araújo Pereira. “Há um conjunto de agentes culturais que atuavam e que não tinham público, que dependiam dos subsídios da câmara e que me estão imensamente gratos porque eu acabei com os subsídios e eles ganharam a sua independência. Sabe que a cultura é de esquerda. Uma pessoa de direita, quase fascista como eu não tem ideias culturais nenhumas”, ironizou.
A verdade é que o homem que não lia romances porque preferia os “livros técnicos na área da Economia” ou “os de história”, marcou uma época na cultura da cidade. Depois dele, Rui Moreira apostou tudo em reforçar a aposta cultural ao Porto, facto que lhe mereceu elogios até da oposição.
Como Rui Rio governou o Porto. 12 histórias para conhecer melhor o novo líder do PSD