Não foi um discurso presidencial a deixar muita margem para interpretações. Marcelo foi direto na mensagem e claro no elenco de razões que o levaram a ser o primeiro Presidente do Portugal democrático a declarar o estado de emergência. Explicou os motivos para avançar, assumiu os riscos e as críticas associados à decisão, chamou a atenção dos portugueses e deixou o caminho aberto a António Costa.
[Reveja aqui a mensagem do Presidente da República:]
É, ao mesmo tempo, um sinal de confiança e uma exigência de responsabilidade ao Governo que o Presidente diz que tem o caminho livre — até de oposição — para levar adiante uma “tarefa hercúlea”. Toda a segurança e caminho aberto para agir, mas agora sem grande margem para desculpas. Olhámos para os pontos mais relevantes que este discurso deixou:
Um declaração em várias camadas (da solidariedade à responsabilização)
“Este sinal político, dado agora, e dado não apenas pelo Governo, mas por Presidente da República, Assembleia da República e Governo é uma afirmação de solidariedade institucional, de confiança e determinação, para o que tiver de ser feito nos dias, nas semanas, nos meses que estão pela frente”
Foram os cinco motivos que levaram o Presidente a declarar o estado de emergência e nestas razões misturou questões políticas, jurídicas e sociais. A primeira foi mesmo a do “sinal político” que diz estar nas entrelinhas desta decisão, alinhou três poderes: o Presidente, o Governo e a Assembleia da República.
Todos num acordo que há umas semanas era impensável. Basta recordar que imediatamente antes da pandemia entrar pelo país adentro, na política nacional se discutia o deficiente apoio parlamentar do Governo e a postura de confronto permanente do PSD de Rui Rio. Sobre o Orçamento, sobre o aeroporto do Montijo, em nada surgia um entendimento simples, o que levou o Presidente a vir a público travar eventuais ambições de antecipar legislativas. Mas em poucos dias os tempos políticos deram uma volta e em poucas horas a proposta de decreto presidencial para o estado de emergência saiu do Conselho de Estado e entrou no Paramento saindo imediatamente aprovada, sem sobressaltos e com Rui Rio praticamente a suspender a oposição neste momento.
Mas Marcelo não quis que este “sinal político” ficasse apenas por Belém e São Bento, estendeu-o ao “Povo”, “exemplar”. O Presidente vê aqui a quadratura impensável há umas semanas, para fazer crer que há um elo de solidariedade que sai reforçado e que os poderes políticos estão a ouvir o povo, a responder às suas necessidades: “É uma afirmação de solidariedade institucional, de confiança e determinação, para o que tiver de ser feito nos dias, nas semanas, nos meses que estão pela frente”. E isto, sem esperar para ver, como fizeram outros países com quem Marcelo garantiu que o país aprendeu.
Foi este sinal de “forte unidade” que permitiu o recurso a uma medida que permite a prevenção. E isto porque o Presidente acredita que o decreto que foi aprovado no Parlamento abre margens de ação ao Governo. Permite medidas com “rapidez” e em “patamares ajustados”, concedeu ao mesmo tempo que vinculou a estes propósitos o Executivo. António Costa só definirá as medidas esta quinta-feira e o Presidente dá-lhe carta branca para agir, quase a avisar que não há espaço para o Governo vir depois dizer que não chegou a via aberta que lhe foi posta à frente.
E pelo caminho (terceira razão) este estado de exceção também protege o Governo de futuros problemas jurídicos, a ação já esta respaldada pelo amplo raio de ação que lhe dá o decreto presidencial. Foi um dado que o Conselho de Estado debateu e que António Costa fez também questão de referir na declaração da tarde. Só não permite é abusos nos “direito fundamentais (a quarta razão), esses ficam sempre protegidos por esta figura constitucional escolhida. Por fim, a razão da flexibilidade da duração do estado de exceção. São 15 dias renováveis e essa renovação é já quase dada como garantida, tanto por Marcelo Rebelo de Sousa como por António Costa.
É um voto de confiança, de alguma forma, a António Costa, mas acima de tudo uma passagem de responsabilidade para o Governo na gestão da resposta a esta crise.
Os riscos calculados
“Sabia e sei que os Portugueses estão divididos. Há quem o reclame para anteontem. Há quem considere dispensável, prematuro ou perigoso”
Mas Marcelo está também ciente que a sua própria capacidade política está em jogo neste momento. É um recurso inédito na história da democracia e ele o Presidente que avançou nesse sentido. Sabe que a decisão traz riscos, sobretudo porque sabe que “os portugueses estão divididos” na necessidade desta declaração. Ouviu, na reunião do Conselho de Estado, a oposição do comunista Domingos Abrantes e voltou a ouvi-la na Assembleia da República, nas bancadas do mesmo partido. Na hora do voto o PCP absteve-se, acompanhado dos Verdes, do Iniciativa Liberal e da deputada Joacine Katar Moreira. E depois também há os que queriam que tivesse aparecido antes.
Mas o risco da crítica não é o único que Marcelo sabe que corre, o outro é que tenha aberto uma caixa da Pandora e que a partir daqui venham sempre alguém reclamar maior intervenção “à medida que as preocupações ou temores se avolumam”. E ainda outro: que a partir de agora as pessoas comecem a reclamar efeitos imediatos, como de o estado de emergência significasse que a crise se resolve num passe de mágica. Pesadas as vantagens e riscos, Marcelo avançou e direção à emergência.
E se há também que aponte os riscos à própria democracia, o Presidente mostrou estar atento às críticas e responde que a própria declaração do estado de emergência é democrática “pela convergência dos vários poderes do Estado”, mas também “porque é a Democracia a usar os meios excecionais que ela própria prevê para tempos de gravidade excecional”. Mais uma vez tocando no mesmo argumentário de Costa (que disse não estar em causa a suspensão da democracia), Marcelo reafirma que “não é uma interrupção da Democracia” que está aqui em causa, é pelo contrário “a Democracia a tentar impedir uma interrupção irreparável na vida das pessoas”.
Um cordão de solidariedade à volta do Governo
” O Governo – que tem entre mãos uma tarefa hercúlea – adotou medidas, tentando equilibrar contenção no espaço público e nas fronteiras e não paragem da vida económica e social”
Aqui o Presidente tenta fechar um cordão de solidariedade à volta do Governo, contendo eventuais desequilíbrios políticos que possam surgir no caminho. A tarefa que tem em mãos é “hercúlea”, classifica já à partida, num aviso a António Costa — para o que tem entre mãos –, mas sem se esquecer de todos quantos o rodeiam: “Presidente, Parlamento, partidos e parceiros”. Todos eles, recordou nesta fase do discurso, apoiaram “conscientes que só a unidade permite travar e depois vencer guerras”.
Há quem critique as medidas (ver ponto acima), mas elas tiveram amplo apoio político e social, recorda quando fala na tentativa do Governo de “contenção no espaço público e nas fronteiras e não paragem da vida económica e social”. Vincula todos: o Governo que tem de manter os pés na terra porque não o conseguiu sozinho e a oposição que não deve agora cair na tentação de desequilibrar o apoio político à ação, na tal instabilidade que fez Marcelo intervir com rispidez ainda há duas semanas, num evento social.
Economia, um enorme desafio
“Assim é em tempo de guerra, as economias não podem morrer”.
Em plena pandemia, o que mais impressiona no imediato é o drama sanitário e sobre isso, Marcelo alongou-se bastante. Mas há outro papão à espreita, que é quase inevitável que apareça quando um país (ou o mundo) fica parado: a recessão económica. O Presidente da República faz o alerta logo no início do discurso, quando define a economia como um dos previsíveis destroços desta “guerra”: “Está a ser e vai ser um desafio enorme para a nossa maneira de viver e para a nossa economia. Basta pensar na saúde, na educação, no comportamento nas famílias, no trabalho, nos efeitos no turismo, nas exportações, no investimento, na fragilização de famílias e empresas, nomeadamente de pequena e média dimensão”.
O Presidente está preocupado com “os efeitos, a prazo, no emprego, nos rendimentos, nas famílias, nas empresas” e avisa que se não se cuidar deste lado, a própria Saúde fica em risco: “Só se salvam vidas e saúde se, entretanto, a economia não morrer”, diz. Marcelo reconhece que o Governo já tem medidas em marcha para tentar conter os danos nestes “longos meses mais agudos”, apresentadas na manhã desta quarta-feira. E pede ao Executivo que faça “o que possa para proteger o emprego, as famílias e as empresas”, não emitindo opinião sobre se as medidas anunciadas são ou não suficientes — as críticas de diferentes setores fizeram-se ouvir ao longo do dia e esta tarde, no Parlamento, Costa enfrentou críticas do BE, que pede mais proteção contra despedimentos e lembra que o pacote financeiro espanhol foi mais amplo que o português.
Mas o Presidente não fala apenas para o Governo e lança um apelo à população para que não se repitam os casos de prateleiras vazias e açambarcamento, e aos empresários que mantenham dentro do possível o negócio à tona: “Temos de fazer a nossa parte. Não parar a produção, não entrar em pânicos de fornecimentos como se o País fechasse, perceber que limitar contágio e tratar de contagiados em casa é e tem de ser compatível com manter viva a nossa economia”.
Os alertas aos portugueses: o caminho ainda é longo, é difícil e é ingrato
“Tudo o que nos enfraquecer nesta guerra alongará a luta e torná-la-á mais custosa e dolorosa”.
Se em vários pontos, o discurso que Marcelo Rebelo de Sousa proferiu na noite desta quarta-feira coincide com as declarações que António Costa foi também fazendo ao longo dos dias — o que mostra que apesar de não terem a mesma opinião sobre a declaração do estado de emergência, estão articulados –, há um em especial que foi repetido pelos dois neste dia: o estado de emergência não é uma vacina. Presidente e primeiro-ministro estão preocupados com a perceção pública desta decisão, para que não seja vista pelos portugueses como uma medida extrema que vai solucionar o problema e os desobrigar assim do um longo sacrifício.
Marcelo começa por fazer o primeiro aviso, não vale a pena ilusões, isto vai ser mesmo a doer: “Não é uma vacina, nem uma solução milagrosa, que dispense o nosso combate diário, o apoio reforçado ao Serviço Nacional de Saúde, a capacidade de pessoas e as famílias continuarem a tentar limitar o contágio, para que os números a crescer cresçam menos do que os piores cenários e para que o tratamento possa ser, cada vez mais, em casa”. A responsabilidade é de todos, pelas vidas uns dos outros, e o esforço de prevenção vai ser duro, avisa o Presidente, mas necessário, até para evitar males maiores: “Tudo mais cedo do que mais tarde. Até porque, num ponto, os especialistas são claros – depende da contenção nestas próximas semanas o conseguirmos encurtar prazos, poupar pacientes e, sobretudo, salvar vidas”.
Marcelo refere-se ao combate à pandemia de Covid-19 como “uma luta desigual” e mais à frente carrega na metáfora bélica, ao dizer que “nesta guerra, como em todas as guerras, só há um efetivo inimigo, invisível, insidioso e, por isso, perigoso”. E aqui faz o segundo aviso: isto vai ser longo e poderá vir a parecer insuportável. E este é um receio também comum quer a Costa, quer a Marcelo – que a comunidade dê sinais de fadiga e com a fadiga chegue a indiferença, ou o laxismo, ou a frustração ou qualquer outro sentimento coletivo que possa desestruturar a sociedade. Um inimigo que é assim “invisível”, mas “perigoso”, e “que tem vários nomes. Desânimo. Cansaço. Fadiga do tempo que nunca mais chega ao fim”. O Presidente pede que se lute “todos os dias”, “contra o desânimo pelo que corre mal ou menos bem, contra o cansaço de as batalhas serem ainda muitas e parecerem difíceis de ganhar, contra a fadiga que tolhe a vontade, aumenta as dúvidas, alimenta indignações e revoltas”.
A importância da confiança nas instituições
“Nesta guerra, ninguém mente nem vai mentir a ninguém”.
Por fim, um problema que tem minado as sociedades democráticas na época das fake news e que se sente de forma particular no caso extremo de uma pandemia: a falta de confiança nas instituições. Ora, quando está em curso uma intervenção social desta dimensão – com apelos a que a população adote novos comportamentos ou limite os seus comportamentos rotineiros -, é crucial que haja uma relação de confiança inabalável entre o Estado que dá as instruções (pouco habituais numa democracia), e o povo que as acata.
O Presidente da República nunca verbaliza diretamente a questão nestes termos, mas começa por clarificar que o Governo não está sozinho. Esta é uma decisão coletiva, das três principais instituições do poder, Presidência, Governo e Parlamento: “Este sinal político (…), é uma afirmação de solidariedade institucional, de confiança e determinação, para o que tiver de ser feito nos dias, nas semanas, nos meses que estão pela frente”.
Apresentada a frente unida, Marcelo mostra estar atento ao problema da desinformação que circula nas redes sociais, e ao nível de desconfiança que se tem gerado, sobretudo, através da partilha de documentos falsos, audios anónimos, imagens truncadas e outras técnicas que servem para criar a impressão de que não há transparência na divulgação da informação e de que há factos que estão a ser (propositadamente) escondidos dos portugueses pelos políticos ou pelos media. Para responder a isto, o Presidente diz que a verdade é uma das palavras de ordem nesta guerra: “Resistência, solidariedade e coragem são as palavras de ordem. E verdade, porque nesta guerra, ninguém mente nem vai mentir a ninguém”. Para reforçar a mensagem, Marcelo dá uma garantia “pessoal”, puxando da autoridade de Presidente de todos os portugueses: “Isto vos diz e vos garante o Presidente da República. Por vós diretamente eleito para ser, em todos os instantes, os bons e os maus, o primeiro e não o último dos responsáveis perante os Portugueses”.