Se nas últimas semanas Marcelo Rebelo de Sousa andava resguardado do frenesim político, esta quinta-feira regressou ao palco e fê-lo sem aviso prévio e com estrondo. Num discurso onde atirou em várias direções, o Presidente da República apontou especificamente ao clima de crispação entre oposição e Governo e exigiu entendimentos que permitam “baixar a temperatura” e definir “rumos minimamente estáveis”. A “geometria variável” não está a resultar e até Costa parece estar a reconhecer isso mesmo ao colocar o seu número dois a apelar a um “entendimento estável” à esquerda. Mas mesmo este cenário, que para todos os atores políticos, incluindo o Presidente, parece ser o mais viável, comporta riscos e incertezas e um nível de desconfiança instalado que ninguém sabe se pode ser superado. Sobretudo quando se mantém a guerra sobre quem é o responsável pela ausência de um acordo escrito. O Observador teve acesso a documento de outubro em que BE limita ao máximo hipótese de nova geringonça.

Para já, Marcelo quis fazer a sua parte. Estamos a meio de uma crise de saúde pública mundial, vem aí um ano decisivo, com a presidência portuguesa da União Europeia e logo a seguir há autárquicas, pelo que o Presidente já fez saber que não admite um cenário de eleições antecipadas. Ou seja, quis carregar na pressão enquanto é tempo, admitindo-se em Belém que já não resta assim tanto.

Costa e Rio sem margem para entendimentos

Em São Bento, os avisos de Marcelo foram entendidos sobretudo como recados a Rui Rio, que tem assumido uma posição de confronto com o PS. Sempre que a esquerda entra em choque com as pretensões do Governo, o líder social-democrata não se apresenta como desbloqueador, acabando por unir-se na frente contra o Executivo. Foi assim no IVA da energia, na linha circular do Metro de Lisboa, no aeroporto do Montijo e também no travão à nova lei das Parcerias Público-Privadas, aprovada em novembro passado no Conselho de Ministros — e onde o Governo tinha o conforto do Presidente da República, sobretudo depois de resolvida a questão das autarquias locais, com a norma interpretativa introduzida na lei a esclarecer que o novo regime legal das PPP não se aplicaria “aos municípios e às regiões autónomas, bem como às entidades por estes criadas”.

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Salvavam-se, assim, os projetos de habitação acessível Fernando Medina (Lisboa) e o projeto de reconversão do antigo Matadouro da Campanhã, de Rui Moreira (Porto), que foram mesmo recusados pelo Tribunal de Contas porque as transações não cumpririam as regras das PPP — um dos bicos de obra desta nova legislação que tinha ficado ultrapassado quando a lei foi publicada, em dezembro, com esta clarificação. Mas o PSD acabou por deitar toda a alteração por terra, querendo agora apenas proteger do novo regime as regiões autónomas (o que é entendido como uma guerra de Rio a Rui Moreira).

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Tudo isto tem sido acompanhado a partir de Belém, e a equipa do Presidente reconhece que, apesar das proclamações de entendimentos pontuais, na prática o PSD não tem votado nenhuma questão essencial com o Governo. Se durante muito tempo o partido liderado por Rui Rio pareceu não ter um posicionamento definido, agora está claro para Marcelo que o PSD optou de vez pela oposição sistemática ao executivo: “Não parece exatamente querer fazer cair o governo, mas apostar antes numa estratégia de mantê-lo na corda bamba”, confirma ao Observador um dos conselheiros do Presidente.

Os analistas políticos de Belém acreditam que esta estratégia tem a ver com o facto de haver uma direita à direita do PSD com mais força do que se poderia antecipar e, por outro lado, porque o líder do PSD vive com a ameaça do regresso de Passos Coelho. Por outras palavras, Rio tem pouca margem para negociar. E esse foi, na análise que Marcelo tem feito entre a sua equipa, o maior erro de António Costa: achar que no novo quadro parlamentar tinha força suficiente para negociar à esquerda, mas também à direita, conforme as necessidades. “Costa achou que podia negociar com o PSD de Rio e enganou-se. Não pode”, ouviu um dos assessores do Presidente.

Mas em São Bento a leitura é mais crua: “Rio só quer criar problemas”, aponta fonte do Executivo que lê nestas últimas posições do líder do PSD a vontade de “desgastar o Governo” pouco a pouco até às autárquicas de 2021. Depois disso virá o Orçamento para 2022, onde a mesma fonte confia que é onde Rio coloca todas as fichas para derrubar António Costa. Antes disso, ou seja, no Orçamento para 2021 (o próximo grande momento que pode fazer vacilar o Governo), confia-se que a proximidade da Presidência portuguesa da União Europeia (no primeiro semestre de 2021) possa dissuadir Rio de criar casos nesse Orçamento.

Já o Presidente da República teme que, tal como as coisas estão, nem aí se consiga chegar. No entender de Marcelo, a situação aproxima-se da insustentabilidade: “Nem nos nomes para o Constitucional os dois partidos se conseguiram entender”, ouviu-se nos corredores do Palácio de Belém. Terá sido por isso que o Presidente decidiu aproveitar a conferência de comemoração dos 30 anos do jornal Público para acender os alertas vermelhos. Um aviso com vários destinatários no Parlamento, mas especialmente dedicado ao Governo a quem pediu que faça “um esforço em todos os azimutes, num quadro parlamentar mais fragmentado e com menos pontes, para que a governação seja mais estável nas opções e na base de sustentação, e também mais virada para mais do que a mera gestão do dia a dia”. Caso contrário, “teremos a aventura, orçamento a orçamento e lei a lei, de coexistir com uma geometria variável levada a pontos quase impossíveis”.

Pode a geringonça voltar a funcionar?

Suposições que poucas certezas dão sobre os próximos tempos, sobretudo quando à esquerda António Costa já não tem parceiros prontos a estender-lhe a mão em caso de maior risco. O passa culpas sobre o fim da geringonça tem sido outra marca destes primeiros meses da nova legislatura, mas o primeiro-ministro parece estar disposto a restabelecer pontes. Não é por acaso que, este sábado, numa entrevista ao Expresso (artigo exclusivo para assinantes), o ministro da Economia e número dois do Executivo apela a uma “reflexão sobre a forma como os partidos da chamada ‘geringonça’ mais o PAN devem criar condições de trabalho nesta nova legislatura“. Sem admitir que possa haver aqui uma inversão da estratégia do Governo, Pedro Siza Vieira aponta as culpas para outro lado: “Este comportamento do PSD deve obrigar-nos a todos a pensar”.

Em Belém, este cenário é visto com bons olhos. Por ali não se acredita que BE e PCP estejam interessados em eleições antecipadas e por isso ainda há margem para formalizar entendimentos. Mas também há um prazo. A análise que é feita pelo gabinete do Presidente é a de que o PS não optou em devido tempo sobre se devia convergir com o PSD ou repetir a geringonça. E o risco é de que a janela de oportunidade se feche, ou seja, aquilo que ainda é possível hoje, pode já não ser amanhã. Terá sido por isso que Marcelo quis falar agora. Vem aí o congresso do PS, e antes que se entre na agitação eleitoral, há tempo para refletir e, se necessário, como explica uma fonte de Belém: mudar de rumo”.

Mas e a desconfiança que se instalou entre os antigos parceiros? A insistência de Catarina Martins em acusar o PS de ter desistido de um acordo escrito que poderia dar mais estabilidade ao Executivo incomoda o chefe do Executivo e pesa mais quando o próprio Presidente da República vem apontar os riscos de uma legislatura já estafada que, na verdade, só começou há quatro meses.

A líder do Bloco de Esquerda insiste que, nas negociações para a formação do atual Governo, “o Bloco de Esquerda propôs ao PS começar a trabalhar num acordo com dois eixos fundamentais: um para melhorar as condições de trabalho e outro para melhorar o investimento. O PS não quis sequer começar a trabalhar sobre esses eixos. Portanto, nunca tivemos alguma contraposta de outros eixos negociais”, disse em fevereiro. E isto em resposta a Costa que acusava a líder do BE de contar mal a história desse acordo falhado.

Afinal, por culpa de quem não houve acordo escrito?

O Observador teve acesso ao “Memorando negocial entre Bloco de Esquerda e Partido Socialista” que Catarina Martins levou a António Costa na segunda reunião que tiveram para tentarem o acordo, logo depois das legislativas. De acordo com o texto, o BE assumia a pretensão de “dar início a um processo negocial”, mas antes os dois partido tinham de assumir “compromisso” em três pontos da legislação laboral (repor 25 dias de férias, repor valores das horas extra e as compensações por despedimento), a “definição no programa de Governo de uma garantia de aumento do Salário Mínimo”, com valores anuais definidos, deixar de aplicar o período experimental a jovens à procura do primeiro emprego e um conjunto de salvaguardas políticas (onde se incluíam leis eleitorais, privatizações ou TSU).

Ora, de acordo com o documento entregue em São Bento nessa altura, só “reunidas as condições anteriores” é que a negociação prosseguiria, o PS teria de aceder para se avançar em negociações mais concretas. A 10 de outubro, António Costa ligou a Catarina Martins, no final de uma reunião da Comissão Política do PS, a dizer que não podiam aceitar as condições relativas à lei laboral e acordaram em discordar dali para a frente. Ou seja, não haveria acordo escrito e negociar-se-ia caso a caso a partir dali. As culpas, no Executivo, são deitadas para o lado de lá.

Aliás, fonte do Governo garante ao Observador que a líder do BE começou a vacilar nas sua pretensões iniciais de um acordo escrito quando viu o PCP a colocar-se fora desse quadro. “Ficava mais difícil” a posição do BE, terá argumentado Catarina Martins perante os socialistas na altura.

Mesmo afastado o entendimento mais largo, ficou, no entanto, definido o acordo para incluir alguém do BE no Conselho de Estado pela quota do PS (Francisco Louçã), e também que desta vez, os socialistas não cederiam qualquer lugar ao Bloco nas nomeações para o Tribunal Constitucional, depois da renúncia de Clara Sottomayor, que tinha sido indicada pelo BE em 2016. Meses depois, esta parte do acordo era criticada pelo BE, que via nisso o fim da “geringonça”.

Marcelo preocupado com a estabilidade do sistema

E é aqui que entra o PSD e mais uma guerrilha de Rio que, de acordo com os socialistas, terá considerado o nome de Vitalino Canas “difícil” quando Costa lhe falou nele, mas que acabou por dizer que o acordo que tinham era para cumprir, e o mesmo para Correia de Campos para o Conselho Económico e Social. O PS precisava do PSD para estas nomeações, que exigem uma maioria de dois terços. O social-democrata terá até pedido que estas eleições fossem apenas depois do congresso do partido, para evitar sobressaltos antes desse arranque da sua nova era no PSD e assim foi. Ao Observador, os sociais-democratas garantem que “não houve negociação”. E na hora h, os nomes foram chumbados.

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Os dois líderes, Costa e Rio, têm falado com frequência, a linha de contacto mantém-se aberta, embora sem produzir grandes efeitos, como se vê. A verdade é que Costa tem feito gala em dizer que não quer uma governação de mão dada com o PSD, pretendendo que fiquem bem balizadas as duas alternativas, sem misturas. A sua preferência — é isso que tem dito até agora — é o entendimento com a esquerda, e depois dos desaires que têm saído do Parlamento, esse entendimento parece estar a tornar-se mais necessário.

Mas o caminho não tem sido mais fácil por aí tendo em conta que existe um desentendimento logo de base: se na legislatura passada esse desacordo era sobre de quem foi a ideia afinal de se entenderem numa geringonça (com ambos a reclamarem a paternidade), agora atiram ao outro a responsabilidade de não existir um acordo escrito que permita uma estabilidade mais duradoura. E sem estabilidade, pode acontecer aquilo que o Presidente quer evitar a todo o custo: “O caminho não é esse, o caminho é outro: baixar a temperatura do ambiente vivido; resistir à tentação sistemática, venha de onde vier, poder e oposições, do aceno a crises políticas; e definir rumos minimamente estáveis e agir no quadro parlamentar que os portugueses escolheram”, disse Marcelo no discurso desta quinta-feira.

Ao que o Observador apurou, o Presidente está preocupado com o risco que eleições nos próximos tempos podiam trazer: fragmentar ainda mais o Parlamento e favorecer o crescimento das forças mais radicais em detrimento dos partidos tradicionais. Como explica um dos elementos da equipa de Marcelo Rebelo de Sousa, “é preciso segurar o sistema. Se o sistema continua a mostrar aos eleitores que não funciona, que está em bloqueamentos consecutivos, que ninguém quer fazer cair o Governo, mas também ninguém quer que ele governe (tirando o PS), está a abrir-se espaço às forças anti-sistema”. Ou seja, aos tais que estão prontos a “ocupar os vazios”, como referiu o Presidente no discurso feito nos 30 anos do jornal Público.

E portanto, a pressão fica do lado do Governo: de Belém o recado é o de que não vale a pena falar em bloqueios institucionais, como fez Ana Catarina Mendes, ou acenar de situações de pântano porque o Presidente não vai ceder. Disse-o no discurso: “Não se julgue que alguém de meridiano bom senso possa recorrer, num intervalo de tempo em que isso será possível, ao voto popular antecipado a pretexto de indefinições estratégicas decorrentes de imprevisibilidade política num país que acabou de sair de eleições”. E já antes havia dito de forma ainda mais clara entre a sua equipa mais próxima, segundo relatos feitos ao Observador: “É melhor não passar pela cabecinha de ninguém que o Presidente possa dissolver o Parlamento”.