O Presidente da República definiu as balizas — até onde o Governo pode ir neste período de exceção do estado de emergência — e o primeiro-ministro tem agora de concretizar os remates, ou seja, as medidas que caibam entre estes postes. Num par de horas, o decreto presidencial saiu do Conselho de Estado e apareceu no Parlamento, nas mãos dos deputados que tinham de o autorizar. O debate fez-se com Rui Rio praticamente a suspender a oposição nesta fase e com António Costa a jurar que não tem intenções de “suspender a democracia” com a abertura que lhe é conferida pelo decreto presidencial que saiu dali aprovado (com a abstenção do PCP, Verdes, Iniciativa Liberal e a deputada Joacine Katar Moreira).

O que muda com o estado de emergência. Que direitos vão poder ser suspensos e quais são intocáveis?

As garantias de Costa sobre os direitos, liberdades e garantias de todos

O primeiro-ministro veio do Palácio da Ajuda, onde foi o Conselho de Ministros, em direção ao Parlamento para estar presente no debate sobre o estado de emergência. Um inédito democrático onde António Costa quis estar para garantir que a proposta de decreto presidencial que ali estava em debate abria muitas portas, mas que nada daquilo “se trata de suspender a democracia, limitar ou condicionar” os seus preceitos. É o primeiro chefe de Governo, em tempo de democracia, a executar um decreto de estado de emergência e terá agora (esta quinta-feira no Conselho de Ministros extraordinário) de definir as medidas que lhe darão corpo na rua. Aos deputados (no PCP foi onde foram expressas mais preocupações) assegurou que “continuaremos a ser uma sociedade aberta, de cidadãos livres e num estado de direito democrático”.

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Na intervenção, Costa não aproveitou só para tentar acalmar eventuais receios com excessos para lá dos limites da Constituição, garantindo que estará cá a Procuradoria-geral da República e a Provedoria da Justiça para os defender. Mas também quis marcar o momento com um alerta sobre o que o estado de emergência não significa: “Uma declaração salvífica”. É preciso, disse perante os deputados, “prudência e bom senso” até porque  “esta curva epidemiológica não acabará nos próximos 15 dias e de acordo com os melhores estudos, terá o pico em meados de abril e só poderá ter o seu termo, no melhor do cenários, no final do mês de maio”.

Ou seja, este estado de emergência que entra agora em vigor vai durar bem além dos 15 dias da lei. Este período é renovável e essa hipótese ficou logo colocada em cima da mesa por Costa ao dizer que “cada medida que adotarmos não é uma medida que nos restrinja os direitos ou a capacidade durante uma ou duas semanas”. Pode ir mais longe, de acordo com os previsões com que o Governo trabalha neste momento.

Deixou ainda ali uma vénia à oposição, pelo “sentido de unidade nacional”, e outra aos portugueses que acataram normas de proteção de forma voluntária quando os constitucionalistas “ainda debatiam apaixonadamente a necessidade de uma revisão constitucional para o confinamento obrigatório”.

Oposição está suspensa. “Sr. primeiro-ministro, a sua sorte é a nossa sorte”

Agora, está tudo nas mãos de António Costa que tem caminho livre, sem obstáculos, para agir. O debate no Parlamento serviu para deixar claro isso mesmo: a oposição está suspensa e segue dentro de momentos. Rui Rio, o líder da oposição foi quem o disse de forma mais clara — “ Sr. primeiro-ministro conte com a colaboração do PSD; desejo-lhe coragem, nervos de aço e muita sorte, porque a sua sorte é a nossa sorte” —, mas, no final do dia, ao aprovarem a declaração de estado de emergência que dá ao Governo um conjunto muito amplo de poderes para agir, todos deram um voto de confiança a António Costa. Não houve votos contra, só abstenções do PCP, Verdes, IL e Joacine Katar Moreira.

“O PSD apoia o governo neste combate. Estamos numa emergência nacional, temos uma ameaça a combater, e o que se exige é unidade, solidariedade entre todos, e sentido de responsabilidade em nome do interesse nacional. Este não é um governo de um partido só, é o governo de Portugal que todos temos de ajudar neste momento. O PSD não é oposição, é colaboração; temos de ser todos soldados na disponibilidade para ajudar Portugal a vencer com o menor número de baixas possível”, disse Rui Rio numa declaração aplaudida de pé pela sua bancada.

À direita, caminho livre, já que o CDS também se mostrou disponível para colaborar, apesar de ter deixado claro que estas medidas de emergência já deviam ter sido tomadas há mais tempo para evitar o desastre. “Não devia ter havido hesitações, perdemos tempo”, disse Telmo Correia, que, em todo o caso, disse que “cabe ao governo governar”, e, portanto, também o CDS vai deixar o caminho livre, sem obstáculos.

A tarefa dos partidos, neste momento, é apenas “fiscalizar” e “escrutinar” o Governo para que aja em conformidade e não abuse dos poderes alargados que agora lhe são conferidos. Foi o PS, de resto, o primeiro partido a garantir isso mesmo: que vai ficar atento para que não haja abusos perante a suspensão de direitos e liberdades da população, ainda que Ana Catarina Mendes tenha afirmando que “confia que o governo usará plenamente da ponderação e proporcionalidade” que se lhe exige.

Costa tem carta branca, mas também tem caderno de encargos

Se à direita, foi dada a garantia de que não haveria obstáculos, à esquerda houve um caderno de encargos para a atuação do Governo. Da parte do Bloco de Esquerda, nada contra a decretação do estado de emergência e o consequente aumento dos poderes constitucionais do Governo, desde que o Governo use esses poderes extra para proteger os direitos dos trabalhadores e das famílias que vão ser prejudicados com esta crise.

Todos estão cientes de que à crise de saúde pública se vai seguir uma crise económica, pelo que os cuidados têm de ser tomados já. Para o BE, o Governo deve proibir proibir despedimentos, despejos e cortes de luz, gás, água e comunicações. Suspender prestações de crédito à habitação e rendas de casa às pessoas que tenham os seus rendimentos gravemente diminuídos. Deve, acima de tudo, agir contra aqueles que “se estão a aproveitar da crise” para pôr em prática “despedimentos ilegais”. Para isso, o Governo precisa de “instrumentos” e é nessa base que o Bloco aceita a suspensão temporária de alguns direitos e liberdades dos cidadãos. Um mal menor para um bem maior. Mas com avisos: “Cá estaremos, daqui a duas semanas, para avaliar o estado da sua aplicação”, disse Catarina Martins, alertando que o estado de emergência não deve servir para “suspender a democracia”.

Já o PCP e os Verdes optaram por outra abordagem: não vão ser obstáculo, isso não, mas também não vão ser cúmplices da suspensão dos direitos e liberdades dos cidadãos — uma medida extrema que consideram ainda não ser necessária. Daí terem-se abstido na votação. Para João Oliveira e José Luís Ferreira, a lei de bases da Proteção Civil que permitia decretar estado de calamidade já fornecia ao Governo mecanismos suficientes para agir, aliados ao respeito cívico voluntário que se tem verificado na comunidade.

Na verdade, era também esse o entendimento inicial de António Costa que, em todo o caso, sempre disse que iria dar seguimento ao estado de emergência se o Presidente da República optasse por essa via. Esta terça-feira ao final do dia, Costa ainda aprovou a requisição civil no porto de Lisboa e um conjunto de medidas de apoio à economia para mostrar que conseguia agir sem recurso à suspensão de direitos e liberdades. “Temos um quadro jurídico que nos permite ir escalando as medidas”, tinha dito na entrevista à SIC, lembrando que o estado de emergência podia durar longos meses.