13h26 de dia 10 de setembro: o Ministério da Defesa ucraniano anuncia nas redes sociais a tomada da cidade de Balakliya, na região de Kharkiv. 9h55 de dia 11 de setembro: segue-se a divulgação da conquista de outra localidade, Chkalovske, 274 km a leste da primeira localidade reconquistada. E a reconquista de território continuou mais a sul. 14h45 de dia 12 de setembro: o governo divulga que Vysokopillya, Novovoznesenske, Bilohirka, Myrolyubivka e Sukhyj Stavok foram “libertadas” da ocupação russa. As vitórias militares em catadupa dos últimos dias permitiram a Kiev recuperar oito mil quilómetros quadrados de território e 30 cidades, muitas delas há seis meses sob controlo das forças russas.
À medida que os dias passam e que a ocupação ucraniana dos territórios se vai consolidando, vão sendo conhecidos mais detalhes sobre a contraofensiva que a Ucrânia levou a cabo em Kharkiv. Convém lembrar que, em primeira instância, era esperada uma operação de contra-ataque no sul do território ucraniano, mais concretamente em Kherson. Mas essa contraofensiva prossegue e, ainda esta segunda-feira, o Presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, anunciou a criação de novos comandos militares em diversas localidades do sul do país.
Sem que a Rússia desse por isso, a Ucrânia mobilizou tropas para Kharkiv, ao mesmo tempo que as forças russas mais bem treinadas se deslocavam para sul, confiantes de que estaria iminente uma grande batalha nos arredores de Kherson. O resultado? Uma derrota de Moscovo em toda a linha no norte, ao passo que a Ucrânia celebra aquela que está a ser considerada a maior vitória desde o fim do cerco de Kiev, no final de março.
A contraofensiva revelou uma rapidez e eficácia que surpreendeu até os próprios ucranianos. À revista Economist, Denys Yaroslavskiy, um oficial que participou nesta operação, recorda que as tropas de Kiev “não dormiram durante três dias”. “Alimentávamo-nos de adrenalina, entusiasmo e antecipação. Nenhum de nós esperava uma movimentação tão rápida”, numa operação que o militar descreveu como tendo o “efeito dominó”.
Por detrás desta contraofensiva no norte, Kiev concretizou um plano deliberado de contrainformação, destinado a enganar os russos. Ao mesmo tempo, foi posta em prática uma tática militar que se revelou vitoriosa. Os Estados Unidos e o Reino Unido ajudaram a planear esta vitória ucraniana — que deu um sinal de esperança a Kiev e provocou ondas de choque no núcleo duro Kremlin.
O apoio ocidental, a lista de armamento e o truque que enganou os russos
29 de agosto. Foi nessa data que a Ucrânia revelou à comunidade internacional que começara uma contraofensiva em Kherson. Os detalhes eram escassos. A porta-voz do comando operacional do sul das Forças Armadas ucranianas, Natalia Humeniuk, admitia apenas que Kiev “iniciaria ações ofensivas em diversas direções”, anunciando que o modus operandi passava por destruir infraestruturas, algo que já “tinha enfraquecido o inimigo”. E deixou bem claro: “Qualquer operação militar necessita de silêncio.”
No discurso que fez nessa mesma noite, também o Presidente ucraniano se fechou em copas, recusando conceder qualquer detalhe sobre a contraofensiva. “Alguém quer saber quais são os nossos planos? Não vão ouvir detalhes de qualquer pessoa verdadeiramente responsável. Porque isto é uma guerra. E isto é o que acontece durante uma guerra.”
Apesar do secretismo, a Ucrânia foi divulgando informações que pareciam confirmar as reconquistas de algumas aldeias no sul. Em contrapartida, a Rússia desvalorizava a operação de Kiev — o próprio ministro da Defesa russo, Sergei Shoigu, descreveu a contraofensiva como uma “ilusão”: “É para criar a ideia ao Ocidente de que a Ucrânia pode lançar um contra-ataque com sucesso”.
Se publicamente as informações escasseavam, nos bastidores acontecia o inverso. De acordo com uma investigação publicada no The New York Times, no início de verão assistiu-se a um fluxo de informação intenso entre os serviços de informações ucranianos, norte-americanos e britânicos — e isso terá sido decisivo para o sucesso da contraofensiva.
A Ucrânia, que sempre se mostrou relutante a divulgar informações consideradas secretas com os aliados ocidentais, decidiu abrir o jogo no verão, depois de o Presidente ucraniano ter decidido que era fundamental uma operação que mostrasse ao Ocidente que Kiev consegue ter sucesso no contra-ataque, transmitindo um sinal de que os sacrifícios que as populações estão a enfrentar — como o aumento de custo de vida — valem a pena e podem traduzir-se numa vitória.
O plano inicial de Zelensky consistia numa operação de larga escala no sul, mas os EUA consideravam a operação bastante arriscada — e que poderia ter efeitos bastante negativos para as forças de Kiev. Em vez disso, os serviços de informações de Washington sugeriram duas contraofensivas: no norte e no sul. “Nós vimos que os russos estavam a enviar as suas melhores forças para o sul, na sequência da contraofensiva que os ucranianos anunciaram”, comentou Colin Kahl, subsecretário das políticas do Pentágono ao The New York Times.
“Acreditávamos que, por causa dos desafios morais persistentes, e também pela pressão dos ucranianos, poderia haver falhas no exército russo”, prosseguiu Colin Kahl. Embora as perspetivas fossem vantajosas, os serviços de informações norte-americanos manifestavam alguma apreensão com o desfecho da contraofensiva do norte. Mesmo estando ciente dos riscos, Washington divulgou inúmeras informações sobre as debilidades das tropas russas — o que acabou por fazer com que a sorte sorrisse aos ucranianos.
O general Pat Ryder, porta-voz do Pentágono, também reconheceu, na passada sexta-feira que os EUA colaboraram de perto com os ucranianos “em vários níveis militares”. “Facilitamos-lhes informações que lhes permitem realizar operações” com impacto significativo nas linhas russas, disse o militar norte-americano, recusando-se a “dar grandes detalhes sobre o assunto”.
Mas esse não foi o único fator que acabou por dar superioridade às tropas de Zelensky — as armas entregues pelos parceiros ocidentais desempenharam um papel fundamental para o sucesso da Ucrânia. Aliás, como apurou o The New York Times, mesmo antes da contraofensiva se ter iniciado, as Forças Armadas ucranianas enviaram aos Estados Unidos uma lista com o armamento necessário para que a operação tivesse sucesso. Os HIMARS enviados pelos EUA, uma plataforma que permite lançar vários mísseis de médio alcance, por exemplo, revelaram-se essenciais para debilitar as tropas russas.
Aliás, nos últimos meses, os Estados Unidos aumentaram as entregas de HIMARS — capazes de alcançarem alvos localizados até 80 quilómetros de distância. São já 16 e possibilitaram uma mudança significativa no decorrer do conflito. Recentemente, o general Mark Milley, presidente do Estado Maior dos EUA, indicou, citado pelo El País, que os “ucranianos conseguiram atingir mais de 400 objetivos com os HIMARS”, provocando um “efeito devastador” junto aos russos.
Como a Ucrânia enganou russos (e não só) com um golpe de contrainformação para recuperar território
O próximo passo poderá consistir na entrega por parte dos Estados Unidos de mísseis ATACMS à Ucrânia — que têm um alcance de 300 quilómetros. Numa declaração que deixa claro o impacto que estes sistemas podem ter no decurso do conflito, Moscovo já veio assegurar que isso será cruzar uma “linha vermelha” e promete retaliar.
Como se desenrolou a contraofensiva em Kharkiv?
Com o armamento necessário, e juntamente com a ajuda do Ocidente em matéria de informações táticas, a Ucrânia começou a reforçar a presença militar na região Kharkiv, principalmente após 8 de setembro. Esse facto passou despercebido às tropas russas, que continuaram a deslocar tropas para os arredores de Kherson.
Sob a direção do coronel-general Oleksandr Syrskyi, o primeiro passo das tropas ucranianas, nessa primeira grande resposta à ofensiva russa desde o início da guerra, consistia em cercar a cidade de Balakliya, avançando depois para a sua reconquista total. Um plano considerado arriscado pelos parceiros ocidentais de Kiev. Syrskyi seguiu, de resto, uma estratégia cautelosa para evitar fugas de informação e uma eventual resposta do lado russo que deitasse por terra a ofensiva: na preparação desse contra-ataque, o comandante ucraniano dividiu por quatro batalhões as parcelas a conquistar aos homens de Moscovo — e nenhum dos seus comandantes comunicava com os restantes, não apenas pelo receio de que as informações pudessem chegar ao comando russo (em caso de captura e tortura), as comunicações pudessem ser intercetadas, mas também por temer que um dos grupos pudesse trair os restantes. O próprio comandante ucraniano seguia na frente da operação, para dar o exemplo. A única informação que todos conheciam era a de que o encontro final, em caso de vitória, seria em Izyum.
Oleksandr Syrskyi, o coronel-general que está a orquestrar a contraofensiva na Ucrânia
Apesar desses receios, o objetivo militar inicial foi concretizado com sucesso e com aparente rapidez logo a 10 de setembro.
Num vídeo publicado nas redes sociais do Ministério da Defesa da Ucrânia, foi o próprio coronel Syrskyi quem anunciou a tomada da localidade. “Completámos a libertação de Balakliya, a primeira grande cidade na nossa ofensiva”, disse, garantindo na altura que “não seria a última cidade” a ser reconquistada. “À nossa frente está Izyum e muitas outras.”
The town of Balakliya, Kharkiv region, is liberated by Ukrainian troops!
The Commander of Ukrainian Land Forces, Hero of Ukraine, Colonel General Oleksandr Syrskyi is leading the Ukrainian offensive in this sector.
The Ukrainian flag has been raised in the town centre. pic.twitter.com/zQ8ngDitZw— Defense of Ukraine (@DefenceU) September 10, 2022
Içada a bandeira ucraniana em Balakliya, as tropas ucranianas passaram para o segundo objetivo — a tomada de Kupiansk, 76km em direção à fronteira com a Rússia. Esta cidade tinha um importante valor estratégico, já que estava localizada junto às rotas de abastecimento de outras posições russas na linha da frente, através de caminhos de ferros que ligam a localidade a Uzlovoi. Além disso, cortando-se todas as ligações, Izium ficaria completamente isolada em termos logísticos e militares. Foi também a 10 de setembro que a Ucrânia conseguiu assumir o controlo de Kupiansk.
#Kupiansk is #Ukraine. our militaries are the best ????#UkraineWillWin #UkraineRussiaWar #russiaisateroriststate pic.twitter.com/vcrl7K9826
— ???????????????? (@anna_20_04) September 10, 2022
Com a debandada para a frente sul, as forças da Rússia estavam em inferioridade e Oleksandr Syrskyi tinha perceção disso. Adicionalmente, devido ao fator surpresa, o coronel-general também antecipou que as tropas de Moscovo não iriam saber como reagir a um contra-ataque tão intenso por parte da Ucrânia. No terreno, e depois da tomada de Kupiansk, Izium ficou completamente isolada e voltar a controlar a cidade no dia 11 de setembro revelou-se um objetivo relativamente simples de alcançar.
Изюм???????? pic.twitter.com/3tyPVH9fXH
— IgorGirkin (@GirkinGirkin) September 11, 2022
A fuga desorganizada das tropas russas, a par do controlo de outros pontos estratégicos (como Kupiansk e as autoestradas na região), abriu caminho para a conquista de todo o oblast de Kharkiv, incluindo a cidade que é a capital da região e a segunda maior na Ucrânia. Para mais, Lugansk (que integra, juntamente com Donetsk, à região de Donbass) fica agora numa posição mais vulnerável a um ataque ucraniano — principalmente após a tomada de Izium pelas forças de Kiev.
Ao Observador, Gwendolyn Sasse, analista política alemã do think tank Carnegie Europe, sinaliza que, com estas contraofensivas, “a Ucrânia está a tentar voltar a controlar os territórios ocupados”, reforçando que isso dará a Kiev uma “posição mais forte em negociações futuras” com Moscovo.
O desnorte das tropas russas — e como vão reagir ao desaire em Kherson
As tropas russas não antecipavam uma contraofensiva daquela dimensão por parte de Kiev. Pressionadas, as forças de Moscovo optaram simplesmente por se retirarem, deixando para trás material de guerra que poderá agora ser reaproveitado. “A ofensiva perto de Kharkiv foi uma surpresa para as tropas russas, que se retiraram em massa de uma parcela considerável do território”, concretiza Gwendolyn Sasse.
Soldados a fugirem de bicicleta, outros que largavam os uniformes e se vestiam de civis para não serem apanhados. Multiplicam-se as histórias sobre a retirada das tropas russas da região de Kharkiv que apontam para a sua aparente desorganização. Gwendolyn Sasse traça mesmo um cenário de “liderança militar fraca” e “moral em baixo” por parte das forças leais a Moscovo.
De acordo com uma investigação da revista Forbes, as forças russas que no momento da contraofensiva se encontravam a guardar Kharkiv estavam naquela frente da guerra apenas desde o final de agosto. O batalhão que ficou no norte do território ucraniano era composto principalmente por voluntários relativamente mais velhos que o habitual e pouco treinados para o combate. Alguns deles tinham mesmo uma adição às drogas ou ao álcool.
Kharkiv. População ucraniana “entusiasmada” com êxitos militares. Russos “até fugiram de bicicleta”
Adicionalmente, o batalhão russo de Kharkiv era composto apenas por 10 mil soldados, sendo que o objetivo inicial era que o de que essa força tivesse o dobro da dimensão. No entanto, devido a dificuldades no recrutamento de novos militares, as forças russas no local não conseguiram atingir os 20 mil homens no terreno.
“As forças russas carecem de soldados, liderança e logística”, afirma Gwendolyn Sasse, explicando que a Rússia está a ter dificuldades em recrutar novos soldados e também em adquirir material de guerra. O facto de “ter muitas frentes de guerra ao mesmo tempo” também não está a ajudar as tropas de Moscovo a obter sucesso no desenrolar do conflito.
Confrontado com as dificuldades em Kharkiv, o Kremlin começou por referir-se a uma “retirada estratégica” do flanco norte. Mas foi depois obrigado a admitir a derrota, desvalorizando-a. O Presidente russo disse, por exemplo, que não havia um prazo para acabar a “operação militar especial” e garantiu que os objetivos seriam concretizados. Ainda assim, Vladimir Putin não deu grandes pistas sobre como é que a guerra evoluirá, rejeitando, no entanto, uma mobilização geral, apesar de o coro de críticos que defende que se decrete a lei marcial na Rússia estar a aumentar.
“A ofensiva ucraniana e a aparente fraqueza do exército russo não levaram a uma mudança de relevo na abordagem ao conflito”, esclarece Gwendolyn Sasse, acrescentando que o Kremlin se focará em termos logísticos em Donbass e na região de Kherson. E a retórica fará o mesmo, dado que o objetivo será transmitir a ideia de que “o que aconteceu na região de Kharkiv foi uma fase irrelevante da guerra”.
No futuro, a analista prevê que as “forças russas se reagrupem”, focando-se em ataques selecionados a infraestruturas. “O exército russo ainda tem espaço para mais recrutamento e pode reagrupar ou ajustar a sua estratégia”, refere Gwendolyn Sasse, vaticinando que nos próximos tempos “é provável que o esforço de guerra russo se concentre em Donbass e na região de Kherson.”
Rússia estará a aprender com (má) experiência em Kharkiv
Depois da debandada em Kharkiv, a contraofensiva ucraniana no sul continua a exercer pressão nas tropas russas, apesar de estarem em maior número que no norte. Sem embargo, em caso de retirada, a lição do desaire de há duas semanas parece ter sido aprendida.
“As forças russas estarão provavelmente a conduzir uma retirada deliberada e controlada no oeste do oblast de Kherson para evitar a luta caótica que caracterizou o colapso das posição defensivas russas no oblast de Kharkiv no início deste mês”, esclarece o relatório do Instituto para o Estudo da Guerra publicado esta segunda-feira.
Além disso, as tropas no sul são compostas por “soldados mais profissionais e mais bem treinados”, estando “preparados para uma contraofensiva já esperada”. “Parecem estar a ter um desempenho significativamente melhor do que as forças russas em Kharkiv”, expõe o documento, que ressalva, no entanto, que “a contraofensiva ucraniana está a ter progressos”. “As forças russas parecem estar a tentar abrandar e recuar para posições em que se conseguem defender melhor.”
Assim sendo, é expectável que as “tropas ucranianas retomem o controlo de praticamente todo o oeste do oblast de Kherson nas próximas semanas, se conseguirem manter a pressão”. Nessa segunda fase da contraofensiva, Kiev deverá contar com forças russas mais bem preparadas para conter a sua estratégia de reconquista do território.