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Parafraseando o título “Será que o bater das asas de uma borboleta no Brasil pode desencadear um tornado no Texas?”, usado em 1972 para uma conferência de Edward Lorenz, o “pai” da teoria do caos, pode perguntar-se se uma tosse em Wuhan poderá fazer regredir o processo de desertificação na bacia mediterrânica ou a submersão do arquipélago de Tuvalu.
Há uns meses, a relação entre a causa e o efeito poderia parecer extremamente remota, completamente implausível até, mas isso decorria simplesmente de ter passado muito tempo – cerca de um século – desde que a humanidade tinha sido afectada por uma pandemia, pelo que esquecera quão influentes podem ser as doenças na marcha da civilização. Mas agora, que correram mundo as imagens de praças outrora fervilhantes de turistas sem vivalma, filas a perder de vista de aviões estacionados e céu azul sobre cidades chinesas usualmente envoltas em smog, percebemos que a relação é, afinal, muito próxima. Na verdade, há paleoclimatologistas que defendem que as pandemias têm sido um dos principais agentes a moldar a actividade humana e, através desta, a mudança climática e que esse poder começou a manifestar-se bem antes do século XX ou da Revolução Industrial.
Mas enquanto as pandemias anteriores tiveram, segundo esta teoria, efeitos no clima que se revelaram indesejáveis para a humanidade – perda de colheitas, naufrágios, inundações e avalanchas – houve quem visse na pandemia de covid-19 uma esperança para travar o iminente desastre climático de origem antropogénica anunciado por muitos climatologistas.
A síndrome das pernas inquietas
Se fosse vivo, Blaise Pascal veria talvez a pandemia de covid-19 como uma confirmação desta nota que registou nos seus Pensées: “Toda a infelicidade dos homens resulta de não saberem ficar pacatamente nos seus aposentos”. Pascal viveu no século XVII, numa altura em que apenas a elite aristocrática e os mercadores viajavam e a maioria das pessoas raramente se afastava mais de umas dezenas de quilómetros em torno do local onde nascera e, ainda assim, apenas em ocasiões pontuais. Era, portanto, uma época em que as doenças contagiosas se moviam muito lentamente, mas como a medicina era incipiente e impotente, não se conheciam os mecanismos de acção e difusão das doenças e as condições de higiene da população eram pavorosas (mesmo entre as classes altas), era inevitável que quando as epidemias chegavam, com um navio que zarpara de Trebizonda ou um almocreve vindo de Marselha, elas recuperassem rapidamente o tempo passado a viajar no lombo de um jerico indolente ou no porão de um veleiro retardado por persistentes ventos contrários, pelo que o mundo sofreu repetidas vezes os efeitos devastadores de doenças como a peste, o tifo, a varíola ou a cólera.
A bacia mediterrânica, que cedo ficou ligada por densas redes de comércio, que era frequentemente cruzado por expedições militares devido às incessantes quezílias entre nações e cidades-estado e que foi alvo frequente de invasões provenientes da Ásia, foi repetidamente assolado por surtos epidémicos de grande magnitude, como a “peste antonina” (165-180 d.C.) ou a “peste justiniana” (541-542 d.C.).
Japão, 735 d.C.
Em contraste com a encruzilhada movimentada que era o mundo mediterrânico, o Japão viveu durante muitos séculos em “confinamento”, mas nem por isso ficou a salvo de “pestes”, como atesta a epidemia de varíola que terá liquidado 1/3 da população do arquipélago nipónico em 735-737. A prática das autoridades de registar detalhadamente as circunstâncias dos surtos epidémicos permitiu identificar o “paciente zero”: terá sido um pescador japonês que foi empurrado pelos ventos até à península coreana e que, após aí contrair a doença, regressou à sua vila piscatória no norte da ilha japonesa de Kyushu.
A doença disseminou-se pelo que é hoje a prefeitura de Fukuoka, afectando mais fortemente Daizafu, então a capital administrativa da ilha de Kyushu, mas poderia ter ficado circunscrita a esta região, não fosse o acaso de uma missão diplomática que tinha a Coreia por destino ter passado por Fukuoka. Após ter perdido vários dos seus membros para a varíola, a embaixada abortou a missão e regressou à capital, Nara (na ilha de Honshu), disseminando a doença ao longo do seu trajecto.
Pode parecer surpreendente que se tenha identificado o “paciente zero” desta epidemia de há 13 séculos, enquanto (até agora) não foi possível fazê-lo em relação à pandemia de covid-19, mas o Japão do século VIII tinha tão poucos contactos com o exterior que era fácil rastrear as raras pessoas que neles estavam envolvidas. Não poderia ser mais diferente do mundo do século XXI, em que qualquer cidadão pode adquirir, através do smartphone, um bilhete de avião numa companhia low cost, escassas horas antes da partida do voo e, às vezes, por um preço inferior ao pago pelo táxi que nos leva ao aeroporto.
O aumento da facilidade e liberdade de movimentação, a crescente segurança, comodidade e conforto das viagens e a diminuição do custo de deslocações e estadias, tornando a deambulação por paragens exóticas acessível até à franja inferior da classe média, estão entre as vantagens mais apreciadas do mundo hipertecnológico e hiperconectado que criámos nas últimas décadas e propiciaram um desenvolvimento extraordinário dos sectores do transporte de passageiros e do lazer fora de portas. Mas este frenesim de movimentação humana também potencia formidavelmente a disseminação de doenças contagiosas, pelo que não é de estranhar que quando um surto local se converte em pandemia, se conclua que a melhor forma de tentar travá-la é paralisar indefinidamente os sectores do transporte de passageiros e do lazer fora de portas.
Japão, 2020 d.C.
Ao longo do passado mês de Fevereiro, o navio de cruzeiro Diamond Princess, da empresa Princess Cruises, teve a duvidosa honra de figurar nos lugares de topo da lista de “países e territórios” com maior número de infectados com a covid-19 – a 20 de Fevereiro a OMS reportava que o navio representava mais de metade das infecções fora da China.
A “saga” do Diamond Princess entrou nos noticiários do Ocidente a 4 de Fevereiro, quando o navio foi posto de quarentena, e alimentou-os enquanto a covid-19 foi um exotismo oriental, perdendo rapidamente protagonismo quando a pandemia chegou à Europa e estando já obliterada quando, a 1 de Março, todos os passageiros e tripulação deixaram o navio. Ainda assim, à data da escrita deste texto, a 17 de Abril, o Diamond Princess continua à frente de países como a Costa do Marfim, a Letónia, o Líbano ou a Costa Rica em termos de número de infecções e de mortes. E se atendermos a que entre as 3711 pessoas a bordo (1045 tripulantes e 2666 passageiros) houve 712 infectados e 12 mortes, o Diamond Princess é, por larga margem, o “país” com maior incidência da covid-19: 192 infectados e 3.2 mortos por cada 1000 “habitantes” (os surtos a bordo dos porta-aviões Charles de Gaule e Theodore Roosevelt têm taxas de infecção comparáveis, mas taxas de mortalidade bem mais baixas ou até nulas).
Pode argumentar-se que o alastramento da covid-19 no Diamond Princess foi potenciado pelas medidas impostas pelas autoridades sanitárias japonesas, determinando que o navio ficasse sob quarentena no porto de Yokohama e sem permitir desembarque de passageiros; pela impreparação da tripulação para lidar com este tipo de problemas; e por a empresa Princess Cruises ter sido negligente, não adoptando procedimentos de segurança adequados nem antes nem depois do início da quarentena. Mas a verdade é que o próprio conceito de “viagem de cruzeiro” é um caldo de cultura ideal para agentes patogénicos: os navios são desenhados para transportar o máximo de passageiros no mínimo de espaço, a vida a bordo é organizada de forma a proporcionar o máximo de “contactos sociais” e as rotas são planeadas para tocar num máximo de portos no menor período de tempo possível, para que os passageiros possam gabar-se aos amigos de ter visitado um grande número de sítios numa única viagem.
As empresas de cruzeiros estão a par dos riscos para a saúde que estas circunstâncias comportam, pois são regularmente atormentadas por surtos de gastroenterite – um dos quais tinha ocorrido no Diamond Princess em 2016, afectando 158 pessoas. Porém, enquanto a gastroenterite apenas causa uns dias de incómodo, outras doenças podem ser letais. Apesar de a lúgubre saga do Diamond Princess ter tido ampla cobertura a nível planetário, o seu exemplo não bastou para extinguir a asinina pulsão turística que acometeu as classes altas e médias de todo o mundo e milhares de pessoas continuaram a embarcar em cruzeiros, escudadas na sensação de impunidade que é conferido pelo dinheiro e por décadas de vida confortável e protegida.
Sem surpresa, muitos destes navios de cruzeiro também registaram infecções por covid-19 e, apesar de a desastrada experiência pioneira do Diamond Princess ter ajudado a que empresas de navegação e autoridades de saúde tomassem medidas de contenção mais eficazes, vários deles confrontaram-se com um número elevado de casos e tiveram de abortar as suas viagens, alguns vendo-se obrigados a vaguear em busca de um porto disposto a acolher o seu carregamento de “pestíferos” (como aconteceu com o MSC Fantasia, que aportou a Lisboa), ou, ao menos, a permitir o seu reabastecimento.
Os casos mais gravosos foram os de dois outros navios da Princess Cruises, o Grand Princess, com 103 infecções e 3 mortos, e o Ruby Princess, com 662 infecções e 19 mortos. Este último terá sido pouco claro no reporte de casos de covid-19 a bordo e desembarcou passageiros em Sydney antes de se terem apurado os resultados dos testes à infecção, o que terá contribuído para a difusão da pandemia na Austrália – as autoridades australianas têm em curso uma investigação para apurar se a Princess Cruises terá ocultado informação deliberadamente.
A indústria de cruzeiros merece que lhe atirem uma bóia?
Com o agravar da pandemia, os cancelamentos de reservas em cruzeiros sucederam-se, os governos desaconselharam os cidadãos de embarcar em cruzeiros e, a partir de certa altura, as empresas de navegação tiveram de enfrentar a realidade e suspender toda a actividade. As acções das empresas de cruzeiros afundaram-se a pique e todo o ramo de negócios enfrenta agora perspectivas sombrias. O que é irónico é que as três gigantes do ramo dos cruzeiros – a Carnival Corporation (proprietária da Princess Cruises), com sede em Doral, na Florida, e a Royal Caribbean, e a Norwegian, ambas com sede em Miami, representam 70% no mercado – não cumprem os requisitos dos programas de ajuda às empresas lançados pelo governo americano, que requerem que os destinatários tenham domicílio fiscal nos EUA ou que maioria dos seus trabalhadores sejam americanos. Ora a Carnival está domiciliada no Panamá, a Royal Caribbean na Libéria e a Norwegian nas Bermudas, o que é muito conveniente na altura de pagar impostos, e os tripulantes são uma manta de retalhos multinacional, com elevada percentagem de filipinos e caribenhos nos trabalhos mais sujos, penosos e humildes, o que é muito conveniente na altura de pagar salários. E agora estendem a mão ao Governo americano em busca de auxílio e Donald Trump já sugeriu que elas poderiam ser resgatadas, desde que relocalizassem a sua sede fiscal para os EUA.
É legítimo perguntar que papel têm estas empresas na economia e na sociedade para justificar que lhes seja atirada uma bóia de salvação. Um navio de cruzeiro não transporta pessoas de A para B – o que é indiscutivelmente um serviço útil –, é um parque de diversões flutuante que faz rotas circulares e despeja em sucessivas cidades costeiras, durante umas horas, uma turba de ignaros cujo principal fito é atestar, com dezenas de selfies, a sua passagem por um sítio exótico do qual nada sabem (nem querem saber).
Acontece que, a fim de cumprir este vão e frívolo desígnio, a indústria de cruzeiros dá significativo contributo para a poluição do ar e do mar:
1) Em 2017, só os navios da Carnival Corporation libertaram 10 vezes mais óxidos de enxofre do que todos os automóveis da Europa;
2) O navio de cruzeiro Queen Mary 2 emite 0.43 Kg de CO2 por passageiro e por Km percorrido (comparado com 0.26 Kg de CO2 por passageiro e por Km de um voo de longo curso);
3) Cada navio com 3000 passageiros + tripulação descarrega no mar 55-110 m3 de águas residuais por dia.
A indústria de cruzeiros nem sequer pode alegar que os danos ambientais que causa têm como contrapartida proporcionar serviços ou experiências de vida insubstituíveis: é a mais estulta e aberrante manifestação do turismo de massas, como tornou evidente, com ironia corrosiva, David Foster Wallace no ensaio “A supposedly fun thing I’ll never do again”, incluído na colectânea que recebeu o mesmo título (publicado originalmente como “Shipping out”, na revista Harper’s, em 1996).
Pestilência e clima
Em Fevereiro de 2020 o mundo deu-se conta de que a suspensão da laboração na Fábrica do Mundo, por causa da covid-19, fizera baixar os níveis de poluição atmosférica assustadoramente elevados das cidades chinesas. E quando o “vírus chinês” alastrou e no resto do mundo também as fábricas pararam, as auto-estradas se esvaziaram e os aviões ficaram em terra, começou a andar pelo ar um sentimento de Schadenfreude pela parte de alguns ambientalistas, logo amplificado pelos media. Aparentemente, o SARS-CoV-2 estava a conseguir aquilo que décadas de manifestações, relatórios ominosos elaborados por climatologistas e apelos à acção assinadas por centenas de cientistas não tinham logrado: inverter ou, pelo menos, suster a tendência de subida da temperatura do globo (ver “A Natureza nem sempre é amiga: Vírus, livros e metáforas”).
A acontecer, não seria a primeira vez que uma epidemia interferia no clima do planeta, pois, de acordo com William F. Ruddiman, professor do Departamento de Ciências do Ambiente da Universidade da Virginia, a Peste Negra terá sido responsável pelo fenómeno climático conhecido como “Pequena Idade do Gelo”, que pôs termo ao “Período Quente Medieval”.
O bacilo Yersinia pestis, que se supõe ter sido o agente da “peste justiniana” de 541-42, regressou em força 800 anos depois, varrendo a Eurásia, o Médio Oriente e o Norte de África, numa pandemia que matou cerca de 100 milhões de pessoas em todo o mundo, numa altura em que população mundial rondaria os 475 milhões. Na Europa, a “peste negra” teve o seu pico entre 1347 e 1351 e resultou na morte de 30-60% da população. O Yersinia pestis não desapareceu após este pico de mortandade: até ao século XVII foram ocorrendo surtos secundários, mais localizados, de forma que a população europeia só regressou aos níveis pré-peste passados mais de dois séculos. A peste aniquilou por vezes aldeias inteiras ou deixou tão poucas pessoas que estas tiveram de procurar refúgio noutros povoados – só em França 3000 povoações terão sido abandonadas.
A peste contribuiu também indirectamente para o êxodo rural, por criar instabilidade política, que favoreceu um clima de conflitos militares permanentes e que, ao enfraquecer a autoridade do Estado, fomentou o banditismo e as prepotências dos senhores locais. Tudo isto levou os camponeses a concluir que estariam mais seguros atrás dos muros de uma cidade, do que resultou que muitos campos agrícolas deixaram de ser cultivados, dando oportunidade às florestas para os reconquistar. De acordo com os modelos ecológicos, nos climas temperados da Europa bastam 50 anos de abandono para que os campos agrícolas e pastagens dêem lugar a uma floresta, que fixa na sua biomassa uma quantidade de carbono muito superior. Assim, a reflorestação da Europa terá removido da atmosfera grandes quantidades de CO2, com a concomitante diminuição do efeito de estufa, o que, na Europa, teve o efeito de tornar os Invernos mais rigorosos e as Primaveras e os Verões mais chuvosos, contribuindo para a perda de colheitas e fome generalizada.
A progressiva retoma das actividades agrícolas e o recuo das florestas poderá explicar o regresso de um clima mais ameno à Europa entre 1450 e 1500, mas a partir de meados do século XVI, as temperaturas voltaram a descer, desta feita de forma ainda mais pronunciada, promovendo o avanço dos glaciares e o congelamento de rios que dantes se mantinham sem gelo durante todo o Inverno. No Tamisa, junto a Londres, a partir do início do século XVII o gelo tornou-se suficientemente sólido e duradouro para que, nos anos mais frios, fosse montada sobre ele uma feira, a que foi dado o nome de “frost fair” e que incluía actividades lúdicas tão diversas quanto jogos de futebol, caça à raposa e patinagem, em cuja órbita se instalaram barbeiros, sapateiros e vendedores de fruta e bebidas.
Nos anos mais frios, o congelamento de planos de água estendeu-se para sul, chegando, em 1622, a afectar o Bósforo e o Corno de Ouro (braço do Bósforo junto a Istambul). Nos Alpes, os glaciares desceram pelos vales e pelas encostas, atropelando terrenos agrícolas e aldeias e atingindo um máximo de expansão na viragem dos séculos XVI/XVII.
Uma vez que, apesar da recorrência de surtos de peste localizados, a população europeia estava em recuperação e a agricultura retomara parte do espaço conquistado pelas florestas, a explicação para as baixas temperaturas dos séculos XVI-XVII terá de ser procurada noutro lado. O que Ruddiman sugere é que, com a chegada dos europeus ao Novo Mundo e a subsequente disseminação de doenças “europeias” para as quais os nativos americanos não possuíam qualquer tipo de imunidade (como difteria, gripe, sarampo, tifo e varíola), e que terão matado, até ao final do século XVII, 50-90% da população indígena americana, vastas áreas de terrenos de cultivo no continente americano foram abandonadas e a sua reocupação por florestas terá levado à remoção da atmosfera de grandes quantidades de CO2 – e, com efeito, os registos de concentração deste gás na atmosfera registam um mínimo de 275 ppm por volta de 1650 (é hoje de 415 ppm).
No artigo “The anthropogenic greenhouse era began thousands of years ago”, publicado em 2003, Ruddiman analisa a evolução das temperaturas e da concentração de CO2 na atmosfera nos últimos 1000 anos e conclui que as quebras nestes dois parâmetros acompanham, com um desfasamento de algumas décadas, os episódios pandémicos, enquanto a actividade solar e as erupções vulcânicas apresentam fraca correlação com as variações na temperatura. Como o título do artigo indica, Ruddiman defende que as actividades humanas têm sido o principal agente na evolução do clima do planeta e que essa influência remonta aos primórdios da agricultura, quer através da desflorestação para instalação de cultivos (com consequente libertação para a atmosfera do carbono armazenado nas árvores), que começou a tornar-se significativa há cerca de 8000 anos, quer através da difusão, na Ásia, da técnica de cultivo de arroz em campos inundados (que promove a libertação de CH4, cujo potencial de aquecimento global (GWP) é 84 vezes mais poderoso do que o do CO2), que ganhou relevância há cerca de 5000 anos.
É de realçar que a teoria de Ruddiman de que Pequena Idade do Gelo teve origem indirecta na Peste Negra convive com outras hipóteses explicativas que não são mutuamente exclusivas, até porque os paleoclimatologistas não estão de acordo sobre as balizas cronológicas da Pequena Idade do Gelo e diferentes mecanismos poderão ter sido preponderantes em diferentes períodos.
Há autores que fazem o início da Pequena Idade do Gelo coincidir com a Grande Fome de 1315-17, que resultou de três anos consecutivos extremamente chuvosos, que arruinaram os cultivos agrícolas em toda a Europa e que terá causado uma mortalidade de 10-20% nas cidades do continente. Uma das causa possíveis para esta sucessão de anos chuvosos e frios poderá ser a Oscilação do Atlântico Norte (NOA, na sigla inglesa), uma flutuação do diferencial da pressão atmosférica entre a depressão da Islândia e o anticiclone dos Açores, que condiciona fortemente a migração para leste das depressões provenientes do Atlântico.
Há quem situe o início da Pequena Idade do Gelo em meados do século XIII, baseando-se no começo do avanço para sul dos gelos árcticos e apontando como causa a erupção do vulcão indonésio de Samalas, por volta de 1257, que lançou na atmosfera colossais quantidades de poeiras e aerossóis lançados na atmosfera, bloqueando a radiação solar.
Brian Fagan, em The Little Ice Age: How climate made human history 1300-1850, recua ainda mais no tempo e sugere que o arrefecimento terá começado logo no início do século XIII, fazendo como primeiras vítimas as colónias vikings na Gronelândia – este povo tinha aproveitado as temperaturas amenas do Período Quente Medieval para, na viragem dos séculos X/XI, se estabelecer na Gronelândia e explorar a costa nordeste da América do Norte. Porém, a partir do início do século XIII, os vikings começaram a defrontar-se com mares cada vez mais tempestuosos, Verões cada vez mais curtos e Invernos cada vez mais rigorosos, que fizeram as colónias gronelandesas passar por um declínio penoso, até se extinguirem completamente no início do século XV.
Um sobressalto passageiro
A correlação estabelecida por Ruddiman entre pandemias e períodos de diminuição da temperatura do planeta é convincente, mas é duvidoso que a pandemia de covid-19 tenha efeito significativo e duradouro sobre o fenómeno de aquecimento global em curso ou sobre outros efeitos negativos da actividade humana sobre o ambiente.
A covid-19 está longe de ter a letalidade da peste e a organização das sociedades humanas e relação entre estas e o planeta é muito diversa da que vigorou nos séculos anteriores. A reacção da maioria dos países à doença passou pelo “lockdown”, que fez reduzir drasticamente, durante algumas semanas, as emissões de gases de efeitos de estufa associados aos transportes e às indústrias, mas não irá causar o abandono dos campos agrícolas nem diminuir a capacidade industrial ou reduzir de forma significativa as frotas de aviões, navios, camiões e automóveis. A diminuição abrupta da poluição suscitada pelo “lockdown” levou alguns ambientalistas e opinadores a advogar que a pandemia é uma oportunidade de ouro para um New Green Deal, ou seja, para descartar os modelos de desenvolvimento ortodoxos (que presumem que é possível crescer indefinidamente num planeta limitado) e procurar num novo equilíbrio entre a civilização e os recurso da Terra. Repensar a forma como estamos no mundo passaria por “deixar cair” – isto é, não resgatar, não subsidiar, taxar desfavoravelmente e impor regras restritivas – actividades não-essenciais e com elevado impacte sobre o ambiente, como por exemplo os navios de cruzeiro.
Greta Thunberg, entrevistada no final de Março para a Thomson Reuters Foundation, não alinhou na onda de Schadenfreude e disse, sensatamente, que “o coronavirus é um acontecimento terrível […] e nada de bom resultará dele”; e acrescentou “Mas mostra também uma coisa: que quando enfrentamos uma crise podemos agir muito rapidamente”.
Acontece que, se estamos de acordo na urgência de combater o vírus e se estamos dispostos a tomar as medidas necessárias para erradicar ou controlar algo percebido unânime e indubitavelmente como negativo (uma doença), já não há consenso na necessidade de travar a espiral de consumo que faz mover a espiral da destruição do ambiente e da perturbação dos equilíbrios naturais. Na verdade, esse consenso não existe sequer dentro da mente da maioria das pessoas, já que toda a problemática do ambiente é assombrada por uma insanável dissonância cognitiva: as declarações de amor ao planeta, à “biodiversidade”, às baleias e aos ursos-polares são proferidas por pessoas que não têm a mais pequena intenção de sacrificar os seus prazeres e confortos de forma a que a pegada ecológica da humanidade seja efectivamente reduzida.
O regozijo de alguns sectores por o SARS-Cov-2 ter conseguido parar as “dark satanic mills” e manter em terra as frotas de aviões irá dissipar-se quando se perceber que as previsíveis restrições orçamentais decorrentes do “lockdown” e que perdurarão durante os próximos anos um pouco por todo o mundo irão limitar seriamente os pesados investimentos necessários para criar um desenvolvimento mais sustentável (ver Não a pandemia não é boa para o ambiente). No que toca em particular à “transição energética”, isto é a substituição progressiva dos combustíveis fósseis em favor de energias renováveis, acresce que a forte diminuição do consumo dos primeiros fez despenhar o seu preço (só não caiu mais porque os países produtores conseguiram concertar-se para reduzir a produção) e é previsível que assim se mantenha, levando a que, durante os próximos tempos – até a actividade económica retomar os níveis pré-pandemia –, as fontes de energia alternativas percam competitividade para o “velho” petróleo.
E é claro que mal se descubra uma forma de erradicar ou controlar o SARS-CoV-2, a civilização retomará o business as usual. É possível que, nos gráficos que representam a evolução das emissões de CO2 para a atmosfera e a pegada ecológica da civilização em função do tempo, a tendência de subida conheça uma quebra momentânea, como aconteceu por alturas da crise do subprime de 2007 e da subsequente crise das dívidas soberanas europeias, mas bastarão alguns anos para que retome a sua inexorável escalada, uma vez que a aspiração humana a desfrutar de cada vez mais (e mais sofisticados) bens, serviços e confortos é inextinguível.
Também o tenebroso episódio do Diamond Princess (e dos seus menos mediáticos congéneres) será rapidamente esquecido e os turistas voltarão a encher os navios de cruzeiro, sejam eles operados pelas actuais companhias ou pelas que forem criadas para preencher o espaço aberto pela sua falência.