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Na segunda metade do século XX gozaram de grande popularidade os livros sensacionalistas sobre as crenças esotéricas subjacentes ao nazismo, as práticas ocultistas dos seus líderes e as ligações subterrâneas do nazismo a antigas civilizações e até a extra-terrestres, atingindo alguns livros vendas de milhões de exemplares. No século XXI, apesar de os thrillers esotéricos de Dan Brown e seus émulos terem conquistado o mercado de massas, os “ensaios” de cripto-história que examinavam, em tom “científico”, os vínculos secretos dos nazis com o Santo Graal, os cátaros, a Atlântida, as pirâmides egípcias e tecnologias extra-terrestres deixaram de ser bestsellers, não porque se tenham extinguido os estultos que crêem neste tipo de atoardas, mas simplesmente porque deixaram de ler livros e se mudaram para as redes (ditas) sociais, onde, em vez de serem meros receptores de teorias conspirativas alheias, podem também comentá-las e ventilar as suas próprias elucubrações e logorreias.

O título O delírio nazi: Os académicos de Himmler e o Holocausto poderá fazer pensar numa revisitação deste antigo filão do mercado livreiro, mas a sua autora, Heather Pringle, é uma divulgadora de história e arqueologia com obra publicada em revistas respeitáveis, como Science, Scientific American, National Geographic Magazine e Discover Magazine, e The master plan: Himmler’s scholars and the Holocaust, publicado originalmente em 2006 e que chega agora a Portugal pela mão da Casa das Letras, com tradução de Isabel Pedrome, assenta numa laboriosa e fundamentada investigação (como atestam as 105 páginas de notas e as 28 páginas de fontes e bibliografia), nada tem de sensacionalista e ajuda a iluminar uma faceta obscura do nazismo (só é de lamentar que a edição portuguesa tenha suprimido o índice remissivo).

A capa de “O Delírio Nazi”, de Heather Pringle (Casa das Letras)

A verdade é que, embora não existam indícios de que Hitler fosse controlado por “superiores desconhecidos” ou que tivesse empenhado as suas tropas de elite na demanda do Santo Graal, alguns elementos da hierarquia nazi – sobretudo Himmler – deram realmente crédito a crenças assaz disparatadas.

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Devaneios de um criador de galinhas falhado

O livro de Pringle centra-se na Ahnenerbe, um “instituto nazi de investigação de elite fundado pelo Reichsführer SS Heinrich Himmler em 1935”, cujo nome aludia a “algo herdado dos antepassados” e que tinha por missão “reunir novos indícios e provas dos feitos e triunfos dos antepassados dos alemães” e “divulgar estas descobertas entre o público alemão, através de artigos em revistas, livros, exposições em museus e conferências científicas”. Em 1939, no seu auge, a Ahnenerbe contava com 137 cientistas e académicos, “além de dar trabalho a mais 82 pessoas que faziam trabalho de apoio […]: cineastas, fotógrafos, artistas, escultores, bibliotecários, técnicos de laboratório, contabilistas e secretárias”.

Símbolo da Ahnenerbe

Uma vez que a Ahnenerbe dependia directamente de Himmler e as suas linhas de investigação reflectiam as crenças e obsessões do Reichsführer SS, Pringle providencia também os elementos biográficos mais relevantes sobre este líder nazi.

Um aspecto pouco conhecido da juventude de Himmler é o facto de, após concluir o curso de agronomia e casar com Margarete Boden, em 1928, se ter dedicado à criação de galinhas, pois o seu salário como funcionário do NSDAP era, então, exíguo. Na prática, foi Margarete quem teve de arcar com a maior parte do trabalho, já que Himmler andava assoberbado com as suas crescentes responsabilidades no NSDAP, e, em parte devido à pouca preparação de Margarete no ramo da produção animal (tinha sido sócia de uma clínica de tratamentos homeopáticos), o empreendimento nunca correu bem. O fracasso na criação de galinhas angustiava Margarete, que se via aflita para equilibrar as finanças do casal, mas não perturbou Himmler, que, por volta de 1930, já tinha a cabeça num projecto mais ambicioso: a criação de super-homens. De qualquer modo, em 1933, com a tomada do poder pelos nazis, a vida financeira de Himmler ganhou desafogo.

Himmler, com a esposa, Margarete, e a filha, Gudrun

Um dos instrumentos concebidos por Himmler para encher o mundo com arianos atléticos, de cabelos louros e olhos azuis foi a RuSHA (Rasse und Siedlungshauptamt der SS, Departamento de Raça e Povoamento das SS), criada em 1931. O principal propósito desta era conferir uma aura científica ao recrutamento para as SS, que deveriam aceitar apenas candidatos com “sangue nórdico”, tendo Himmler comparado a missão dos examinadores à de “jardineiros de uma estufa que tentassem reproduzir uma variante antiga de qualidade que tivesse sido adulterada e degradada”.

Os examinadores da RuSHA a quem cabia a tarefa de classificar os candidatos numa escala de 1 a 5, de “nórdico puro” (a única classificação que dava direito à carta verde de admissão nas SS) a “suspeito de componentes não europeias”, tinham “consciência de que o próprio Reichsführer-SS não merecia propriamente uma carta verde, com o seu corpo mal feito, rosto redondo, pele amarelada, cabelo preto e queixo recuado”. O paradoxo era tão óbvio que, num evento social, a esposa de um oficial das SS terá mesmo tido a coragem – ou a inconsciência – de fazer notar a Himmler que “se os princípios da selecção racial fossem aplicados com rigor, o partido perderia imediatamente toda a sua liderança”, e não hesitou em nomear os que não cumpriam os requisitos: “o Führer, o senhor, Herr Himmler, o Dr. Goebbels”. Poderia ter acrescentado Hermann Göring, cujo perfil não poderia estar mais longe dos esbeltos guerreiros arianos.

A flacidez física dos próceres do nazismo contrasta com a exaltação que a propaganda nazis fazia do exercício físico – Pringle refere que Himmler “estava convencido, como Hitler, que os desportos competitivos fortaleciam o corpo humano, tornando-o mais apto para a guerra”, mas há que clarificar que, enquanto Himmler tentava aplicar essa disciplina a si mesmo (sem grande sucesso, pois sempre teve figura franzina e desajeitada), Hitler abominava praticar exercício físico.

A grandeza dos antepassados nórdicos

Escreve Peter Longerich, na sua monumental biografia de Himmler (ver Himmler: Um homem bom com má imprensa?), que “a mitologia germânica, enriquecida com uma boa dose de ocultismo, tornou-se […] para Himmler uma espécie de substituto da religião”. E foi esta obsessão com a mitologia germânica que levou a que a Ahnenerbe financiasse expedições por todo o mundo, a fim de encontrar provas da existência de uma civilização nórdica superior da qual os alemães descenderiam.

Raças da Terra: Europa e regiões limítrofes: Cartaz de identificação racial, Alemanha, 1933; provavelmente destinado ao público escolar. Da esquerda para a direita e de cima para baixo, temos o tipo nórdico “puro”, quatro outros tipos germânicos, o tipo oriental, o tipo dinárico ou albanês (montanhas da Europa Central e do Sul) e o tipo do Próximo Oriente

Para desgosto de Himmler, Hitler não só não dava mostras de interesse pelas actividades da Ahnenerbe como se queixava “do entusiasmo apaixonado de Himmler pela pré-história nórdica”: “Para quê chamarmos a atenção do mundo inteiro para o facto de não termos passado? Como se não bastasse os romanos já estarem a erigir edifícios imensos quando os nossos avôs ainda viviam em cabanas de terra, Himmler começou a escavar essas aldeias de terra e a enaltecer qualquer caco ou machado de pedra que encontra”, desabafou um dia com Albert Speer. Reiterou a ideia numa das suas maçadoras prelecções pós-prandiais: “na altura em que os povos germânicos faziam esses recipientes de pedra e barro que tantas alegrias dão aos nossos arqueólogos, os gregos já tinham construído a Acrópole”. Hitler não se limitava a expressar este desagrado em privado: num discurso em 1936, afirmou que “não temos nada a ver com elementos que apenas percebem o nacional-socialismo em termos de ouvir dizer e de sagas, e que por isso o confundem com demasiada facilidade com vagas expressões e que estão a começar investigações com base em motivos de uma cultura mítica qualquer da Atlântida”.

Estas posições contradizem, aparentemente, o trecho de Mein Kampf que proclama que “toda a cultura humana, todos os produtos da arte, da ciência e da tecnologia que hoje vemos perante nós, são quase exclusivamente o produto criativo da raça ariana”. Ora, Hitler não duvidava da superioridade inata dos povos nórdicos, tinha era fortes dúvidas de que ela tivesse desabrochado no Norte da Europa, que, a seu ver, era “demasiado desagradável e pantanoso”. A sua arrebicada teoria – partilhada por alguns historiadores nazis – era que tinha sido “na Grécia e em Itália que o espírito germânico encontrou o primeiro terreno favorável ao seu florescimento”. O que Pringle deixa por explicar é como conciliava Hitler esta visão das civilizações mediterrânicas como resultado da migração dos povos germânicos para sul com o desprezo que manifestava pelos povos mediterrânicos do seu tempo e com a natureza brutal da ocupação nazi da Grécia. Acontece que os nazis acreditavam que os gregos e romanos se tinham deixado infiltrar e corromper por povos semíticos e asiáticos, causando o declínio da Civilização Germânica do Mediterrâneo. Em coerência com esta visão, após a ocupação da Grécia, os antropólogos das SS buscaram vestígios do sangue germânico primordial entre os habitantes locais, sobretudo na região da Lacónia, onde se erguera a belicosa cidade de Esparta, mas acabaram por concluir que o sangue grego estava completamente degenerado pela miscigenação com semitas e africanos – um revelador episódio de investigação científica que o livro não menciona.

“O rosto revela a alma da raça”: Quadro comparativo da “Juventude alemã” e da “Juventude judia”, incluído em Herança e higiene racial, de Alfred Vogel, 1938

Na peugada da raça dos senhores

Entre as diligências empreendidas pela Ahnenerbe para comprovar a ideia de que os povos nórdicos de que os alemães (supostamente) descenderiam tinham sido a fonte de toda a civilização está a expedição ao Tibete de 1938-39. Esta nasceu do apreço de Himmler pelas teorias de Hans F.K. Günther, “um dos especialistas em raça mais famosos do Reich”, que defendia que um ramo da “raça superior primordial” teria migrado até à China e ao Japão, onde se tinha convertido na classe aristocrática. O desvario racista de Günther ia ao ponto de discernir nesta classe “traços nitidamente nórdicos”, como “um crânio claramente alongado e uma pele clara quase branca, muitas vezes combinada com elegantes feições europeias”. Segundo Günther, outro ramo da “raça superior primordial” teria chegado à Índia e dado origem à classe dos brâmanes, que teriam criado o sistema de castas para preservar a pureza do seu sangue. Na mundividência alucinada de Günther, até Buda era filho de aristocratas nórdicos…

Quando o zoólogo alemão Ernst Schäfer regressou de uma missão ao Tibete e, graças a um notável sentido de auto-promoção, se arvorou em herói e conseguiu ser recebido por Himmler, logo seduziu este com a revelação de que no Tibete encontrara tibetanos com “características faciais puramente arianas” e “olhos de um cinzento-azulado”, sobretudo “entre a classe feudal nobre”. A expedição da Ahnenerbe ao Tibete, comandada por Schäfer (entretanto promovido a oficial das SS), recolheu uma formidável quantidade de artefactos, espécimes animais e vegetais e dados antropométricos, mas não encontrou qualquer vestígio concreto da “raça superior primordial”, o que não impediu Bruno Beger, o especialista da expedição em Rassenkunde (Estudos Raciais) de confirmar as “descobertas” de Schäfer, ao discernir características nórdicas nos nobres tibetanos: “estatura elevada a par de uma cabeça alongada”, “rosto estreito”, “maçãs do rosto pouco salientes”, “narizes fortemente protuberantes”, “cabelo macio” e “sentido de domínio”.

Expedição alemã ao Tibete de 1938-39: O chefe da expedição, Ernst Schäfer, é o 4.º a contar da esquerda; outros cientistas de relevo ligados à Ahnenerbe são Bruno Beger (3.º a contar da esquerda) e Edmund Geer (3.º a contar da direita)

Uma vez que as teorias racistas nazis eram completamente impermeáveis à realidade, apenas a imaginação lhes servia de limite. E não faltavam “cientistas” dispostos a encontrar vestígios da raça nórdica superior em qualquer recanto do planeta. Por exemplo, o arquitecto Edmund Kiss localizou “ruínas de construções de pedra de uma antiga colónia nórdica” em Tiahuanaco (Tiwanaku), nos Andes bolivianos e associou-as a uma catástrofe cósmica, envolvendo estrelas envoltas em gelo e formidáveis colisões entre planetas, que tinham destruído a vida na Terra, com excepção dos Andes bolivianos, dos Himalaias tibetanos e os planaltos da Etiópia. Numa viagem a Tiahuanaco que empreendeu por conta própria, em 1928, Kiss ficou impressionado com uma estátua de um “homem que não é índio nem tem traços mongóis, mas sim puramente nórdicos” e com elementos arquitectónicos “que podemos identificar facilmente como gregos”. E claro quer não lhe passou pela cabeça que aquelas construções imponentes pudessem ter sido obra de índios. Em 1939, Kiss convenceu a Ahnenerbe a financiar uma expedição com 20 elementos a Tiahuanaco, mas a eclosão da II Guerra Mundial fez abortar o projecto.

Templo de Kalasaya, em Tiahuanaco

A guerra também obrigou a cancelar uma expedição da Ahnenerbe às Ilhas Canárias, que o filólogo Hermann Wirth (o primeiro director da instituição, em 1935-37) e o seu discípulo Otto Huth, um especialista em “ciência da religião”, criam ser os restos do continente desaparecido de Thule (uma Atlântida nórdica), que teria sido o berço da raça ariana. Parte dessa crença assentava em relatos (vagos e de credibilidade duvidosa) da existência de gente com “caracóis louros, rosto rosado e pele branca” entre os guanches, os habitantes originais das Canárias, que se tinham extinguido no início do século XVI, pouco depois do término da conquista espanhola do arquipélago.

Reconstituição moderna de um povoado guanche: A realidade não poderia estar mais longe das fantasias nazis

Ver descendentes de uma civilização ariana avançada num povo berbere, proveniente do Norte de África e em estádio de desenvolvimento neolítico requer extraordinária capacidade de contorcionismo mental – comparados com Wirth e Huth, os especialistas da Ahnenerbe que buscavam vestígios da civilização superior nórdica na região nórdica até podem parecer sensatos. Porém, as expedições da Ahnenerbe à Suécia e Finlândia também foram incapazes de descobrir sinais de uma antiga civilização avançada.

Bruno Beger fazendo medições antropométricas num habitante do reino de Sikkim, durante a expedição alemã ao Tibete de 1938-39

Fantasias góticas

A geografia da Ucrânia explica, em parte, que, ao longo da sua história, tenha sido sujeita a sucessivas invasões e migrações e que povos das mais diversas origens ali se tenham instalado (ver De Kharkiv a Mariupol: Como foram formadas as cidades que contam a história da Ucrânia). Se, em 2022, é Vladimir Putin que recorre a uma colecção de elementos históricos seleccionados, descontextualizados e adulterados para negar à Ucrânia o direito a uma existência autónoma e reclamar o território para a Rússia, há mais de 80 anos outro tirano com apetites expansionistas invocava uma colecção de “factos” ainda mais fantasiosos para justificar a criação de uma colónia germânica no sudeste da Ucrânia: para Adolf Hitler (e para Himmler), esta seria uma recriação do antigo Império Godo de Leste.

Este devaneio continha um pequeno núcleo de verdade: os ostrogodos – de “ost” (“leste” em proto-germânico) + “gothi” (“godos”, em latim) – eram um povo germânico que ocupara as planícies da Europa de Leste, entre o Mar Báltico e o Mar Negro e que surge mencionado pela primeira vez em documentos romanos no século III. A partir de c.375, por pressão dos invasores hunos, os ostrogodos cindiram-se em grupos que iriam tomar diversas rotas e espalhar-se pelo Império Romano e suas regiões limítrofes, no episódio que ficou conhecido como o período das Invasões Bárbaras. A grande maioria dos godos deslocou-se para Ocidente – alguns estabelecer-se-iam nos Balcãs, outros iriam fundar um reino ostrogodo na Península Itálica –, mas um sub-grupo migrou para leste e instalou-se na Península da Crimeia.

Boa parte da história dos godos da Crimeia está mergulhada na obscuridade: consta que, no século V, Teodorico o Grande, líder do reino ostrogodo de Itália, terá tentado recrutar os godos da Crimeia para o ajudar nas lutas contra outros povos germânicos que se digladiavam entre as ruínas do Império Romano, mas que a proposta terá sido recusada. Aparentemente, os godos da Crimeia terão ficado à margem da corrente principal da História e terão diluído progressivamente a sua identidade no cadinho de povos, línguas e culturas das costas do Mar Negro. Por exemplo, por volta do século VI, deixaram de professar o cristianismo ariano, comum aos povos ostrogodos, e abraçaram o cristianismo calcedónio.

Ruínas de Mangup (também conhecida como Doros), antiga capital dos godos da Crimeia

Após alguns séculos sob o domínio do Império Bizantino ou dos seus vizinhos tártaros e khazares, a vida dos godos da Crimeia sofreu alterações de monta no início do século XII, quando a desnorteada IV Cruzada considerou que a obtenção de proventos terrenos suplantava a recompensa espiritual de combater o Islão e em vez de rumar à Terra Santa tomou  e saqueou a opulenta Constantinopla. Da subsequente desagregação do Império Bizantino emergiu uma nova entidade política no litoral sul do Mar Negro, o Império de Trebizonda, que detinha algumas possessões no litoral norte – entre elas estava o minúsculo Principado de Gothia (ou de Theodoro, ou de Theodoro-Mangup), que partilhava o sul da Crimeia com várias colónias genovesas e que é a única entidade política associada aos godos da Crimeia cuja existência se encontra comprovada.

No final do século XIV, a Crimeia foi devastada pelos mongóis de Tamerlão (Timur Lenk, ou Timur, o Coxo), mas, após, a morte deste, em 1404, o Principado de Gothia terá conhecido um ressurgimento e uma dilatação do território e área de influência, à custa das colónias genovesas; a este florescimento não terá sido estranha uma aliança firmada em 1432 com a República de Veneza, sempre disposta a promover tudo o que prejudicasse os seus rivais genoveses. A sempre periclitante autonomia de Gothia, dependente do pagamento de tributos aos estados vizinhos, mais poderosos, terminou de vez em 1475, quando o Império Otomano conquistou toda a Crimeia.

Principado de Theodoro (verde) e colónias genovesas (rosa), em meados do século XV

Sob o jugo otomano, que costumava ser tolerante para com os usos dos povos submetidos, a dissolução da identidade gótica prosseguiu: escreve Pringle que “os falantes da língua gótica converteram-se ao Islão e começaram a vestir-se à maneira dos turcos. Esqueceram os velhos hábitos e por volta de meados do século XVI a língua dos godos tinha praticamente desaparecido da Crimeia”. A perspectiva de Pringle é parcialmente contrariada por um relato do Arcebispo de Mohilev, que visitou a Crimeia por volta de 1780 e ainda encontrou gentes com traços anatómicos, costumes e língua distintos dos restantes povos da península e a que atribuiu identidade gótica, mas o Arcebispo de Mohilev estava longe de ser um antropólogo ou um linguista e outras fontes sugerem que há muitos séculos que os godos da Crimeia se tinham miscigenado com os outros povos da região e tinham adoptado como língua o grego da Crimeia e o tártaro da Crimeia, ainda que mantendo alguns vocábulos de origem germânica. O que é certo é que no início do século XX não restava qualquer vestígio gótico na manta de retalhos étnica que cobria a Crimeia. Nas décadas de 1920 e 1930, a arqueologia soviética confirmou a existência de antigas marcas góticas na Crimeia, mas não encontrou nada que permitisse atestar a existência de um “Império Gótico”.

Crimeia: A Riviera do Mar Negro

Um dos principais desígnios de Hitler era criar no Leste da Europa um amplo Lebensraum (espaço vital) para os alemães, uma visão que justificava, falaciosamente, como o simples e natural “regresso a casa” dos alemães a um território em que os seus supostos antepassados, os godos, teriam construído um vasto império. Himmler, que há muito alimentava a fantasia de criar colonatos neo-medievais de camponeses-soldados, acolheu de braços abertos a visão de Hitler e começou a delinear o futuro Império Germânico do Leste. Um dos seus núcleos principais, que Himmler baptizou como Gotengau (“distrito dos godos”), abrangeria o Sudeste da Ucrânia e a Crimeia.

O Generalplan Ost (1942) previa a criação de três grandes colónias germânicas no Leste europeu: Ingria (região de Leningrad), Memel-Narew (Lituânia, Estónia, nordeste da Polónia e oeste da Bielo-Rússia) e Gotengau (Sudeste da Ucrânia)

Embora Hitler nunca tivesse posto pé na Crimeia (a sua experiência directa do mundo era muito limitada), estava tão fascinado com aquele território que proclamou que “há poucos lugares na Terra em que uma raça tenha condições de manter a sua integridade como na Crimeia”. Haveria pois que transformá-la numa “colónia exclusivamente alemã”, após libertar a península “de todos os que considerava indesejáveis – judeus, tártaros, ciganos, russos, arménios, georgianos, ucranianos” (Pringle).

É compreensível que a Crimeia exerça fascínio irresistível em quem está habituado a viver envolto na chuva e nas brumas do litoral do Báltico ou no frio cortante da Rússia: “era abençoada por uma agradável brisa mediterrânica. Tinha montanhas cobertas de florestas e uma costa magnífica junto da qual os golfinhos gostavam de brincar. As suas vinhas produziam uvas de xerez e de moscatel e no pomares havia damascos e pêssegos” (Pringle). O governador nazi da Crimeia, Alfred Frauenfeld, descreveu-a como “um paraíso que rivalizava com os Alpes, a Riviera francesa e a Sicília”.

Ruínas da antiga colónia de Pantikapaion, fundada por gregos, no século VII-VI a.C., no extremo oriental da Crimeia, perto da moderna cidade de Kerch

No século VII-VI a.C., os gregos começaram a estabelecer colónias na Crimeia, a que chamavam Taurike Khersonesos (de “tauri” = o nome que davam aos seus habitantes originais + “khersonesos” = península). Os russos chegaram bem mais tarde do que a propaganda russa moderna gosta de fazer crer – apenas no final do século XVIII – mas não tardou que os seus aristocratas descobrissem os encantos da península e ganhassem o hábito de aí passar longas temporadas – em 1911, a família imperial fez construir um sumptuoso palácio em Livadia, perto de Yalta (seria nele que, em 1945, teria lugar a Conferência de Yalta), substituindo acomodações mais modestas que tinham sido usadas pelos czares Alexandre II e Alexandre III. A família de Nicolau II não teve muito tempo para usufruir do Palácio de Livadia e com a Revolução de Outubro uma nova aristocracia tomou conta dos palácios e dacha do litoral da Crimeia: a nomenklatura soviética. Quando passava tempo na Crimeia, Stalin costumava ficar no Palácio de Livadia ou no Palácio de Massandra, que fora encomendado por um nobre russo e comprado, em 1889, por Alexandre III.

Palácio de Livadia, perto de Yalta, Crimeia

Com a dissolução da URSS, em 1991, a nova classe de oligarcas e empresários videirinhos que souberam aproveitar-se da nacionalização, ao desbarato, das empresas estatais soviéticas, tomou o lugar da nomenklatura soviética nos lugares mais apetecíveis e luxuosos da Crimeia. Porém, entretanto, também a classe média da antiga URSS tinha ganho gosto às férias no litoral do Mar Negro, e, em particular na Crimeia, fazendo com que no imaginário do cidadão médio russo, a Crimeia ocupe um lugar similar ao do Algarve no imaginário português. No período pós-soviético, a Crimeia continuou a ser um destino favorito do turismo de massas russo e em 2018 (quatro anos após a anexação da península pela Rússia) foi atingido um recorde de visitantes de 6.1 milhões, que foi, por sua vez, batido em 2021 – apesar da covid-19 – com 7.2 milhões de turistas. Os russos dominam largamente este afluxo, mas, em média, um em cada seis turistas são ucranianos.

Porém, em 1941, outro destino bem diverso estava a ser planeado para a Crimeia e a costa norte do Mar Negro: “Himmler estimava que seriam precisos mais ou menos vinte anos para ‘germanizar’ completamente o Gotengau”. Os especialistas do Departamento de Raça e Povoamento das SS seleccionariam os habitantes da região cujas características anatómicas sugerissem ser descendentes dos godos e expulsariam ou eliminariam os outros, poupando um contingente para trabalhar como escravos dos novos senhores: Chegariam então os colonos alemães, “que se instalariam em aldeias muralhadas ao longo das fronteiras do Gotengau”.

A proveniência destes colonos foi alvo de alguma discussão: havia quem pretendesse reinstalar ali os alemães étnicos que, em 1939, tinham emigrado do Tirol do Sul, em Itália, para a Alemanha e que eram, segundo a lenda, descendentes das tribos godas, o que conferiria uma aura de completude ao projecto do Gotengau que terá encantado Himmler: reinstalar descendentes de godos em antigas terras godas. Outros candidatos eram os “alemães do Volga” e os descendentes dos alemães de religião menonita que se tinham instalado na Ucrânia no final do século XVIII, a convite de Catarina II (tal como os Alemães do Volga) e que, no terceiro quartel do século XIX, temendo que o Governo russo lhes coarctasse o direito a preservar a sua língua e religião, tinham emigrado para os EUA.

Mas o fascínio de Himmler com a Crimeia ia mais longe: acreditava que “o homem germânico apenas pode viver num clima adequado às suas necessidades e num país adaptado ao seu carácter, onde se sinta em casa e não seja atormentado pela saudade”. E assim, tal como o lendário rei mouro que teria plantado o Algarve com amendoeiras para mitigar as saudades da neve da sua amada esposa nórdica, “Himmler queria plantar centenas de milhar de carvalhos e bétulas que reproduzissem as antigas florestas do Norte da Alemanha”, declarando mesmo que pretendia “criar uma região que se assemelhe ao Schleswig-Holstein”. Também a toponímia seria revista em conformidade com esta fantasia: por exemplo, Simferopol, na Crimeia, seria rebaptizada como Gotenburg (“fortaleza dos godos”).

A fim de substanciar as diáfanas fantasias subjacentes a este projecto, no Verão de 1942, Himmler despachou especialistas em arqueologia e pré-história para a Crimeia, a fim de encontrar vestígios comprovativos do antigo esplendor godo. Os investigadores conseguiram apoderar-se de parte das colecções arqueológicas da Crimeia que os soviéticos não tinham tido tempo de pôr a salvo e (dando curso ao espírito de rapina que norteava a ocupação nazi) remeteram-nas para a Alemanha, mas, entre os artefactos não foi encontrado nada que pudesse dar testemunho do fabuloso Império Gótico do Leste. Em jeito de consolo, identificaram “um elmo de bronze, uma bacia e um caldeirão” de origem cita, povo que, na estropiada versão nazi da História, também era visto como antepassado dos alemães.

A Cítia no seu apogeu, c. 170 a.C.

O sonho do Gotengau inflamou a imaginação (ou, melhor, a cobiça) de muitos soldados alemães, que já se viam a ser recompensados com vastas quintas e até discutiam entre eles o número de hectares de fértil terra negra ucraniana a que teriam direito. A fantasia gótica teve uma concretização ínfima, atabalhoada e breve, no final de 1942, com a criação da colónia de Hegewald, no centro da Ucrânia, perto de Zhytomyr (e não perto de Kiev, como escreve Pringle): 10.000 ucranianos foram expulsos das suas terras e para o seu lugar vieram colonos alemães, que descobriram que a sua função seria produzir alimentos para as SS e que foram confrontados desde logo com regras apertadas e quotas de produção exorbitantes. Tiveram pouco tempo para se aclimatar, pois em Novembro de 1943 os soviéticos reentraram em força pela Ucrânia dentro.

Hegewald no Reichskommissariat da Ucrânia

“Ciência” maligna

O empenho da Ahnenerbe em encontrar vestígios de uma suposta civilização nórdica avançada foi relativamente inócua e até risível no seu desvario, e as teorias que pretendiam provar a superioridade ariana eram tão toscas e desconchavadas que dir-se-iam antes concebidas para demonstrar a estupidez dos arianos que as defendiam. Porém, para lá desta ciência caricatural, a Ahnenerbe também promoveu alguns dos mais sinistros estudos “científicos” do século XX.

Foram realizados nos campos de concentração de Dachau (na Alemanha) e Natzweiler-Struthof (em território francês, então anexado à Alemanha), usaram prisioneiros como cobaias e foram conduzidos por algumas das “sumidades” médicas da Ahnenerbe. O Dr. Sigmund Rascher estudou a resistência do corpo humano à grande altitude e à hipotermia, testou terapias (algumas delas grotescas) para reverter a hipotermia e ensaiou anti-coagulantes; 108 das 360 “cobaias” usadas nas experiências de hipotermia sucumbiram. O Dr. Niels Eugen Haagen testou (em polacos e ciganos) a eficácia de uma vacina contra o tifo por si desenvolvida. O Dr. Otto Bickenbach (que Pringle designa, erradamente por Werner Bickenbach, um ginecologista alemão contemporâneo sem relação com estas atrocidades) ensaiou diferentes antídotos contra o fosgénio, um gás que tinha sido usado como arma química na I Guerra Mundial; 35 a 40 das 150 “cobaias” sucumbiram. O Dr. August Hirt fez testes similares com gás mostarda.

Hirt, que dirigia o Instituto para a Investigação Científica Militar da Ahnenerbe, foi também responsável pela execução, em Natzweiler-Struthof, numa câmara de gás construída expressamente para o efeito, de uma centena de judeus provenientes de Auschwitz, com o único intuito de criar uma colecção de esqueletos de judeus “típicos” – previa-se que a colecção seria exibida no Instituto de Anatomia da recém-criada Universidade do Reich em Strasbourg, onde Hirt desempenhava funções directivas, e o seu fito seria demonstrar a inferioridade da raça judia.

Um dos corpos que, após eliminação das partes moles, deveria integrar a colecção de esqueletos de judeus concebida por August Hirt

Hirt já antes empreendera diligências para obter uma colecção de crânios de judeus na Frente Leste, que deveriam, de preferência, provir de “comissários judeo-bolcheviques, que personificam uma sub-humanidade repulsiva mas característica” – nas instruções que enviou, teve o cuidado de especificar que deveria escolher-se um método de execução que não danificasse o crânio. Porém, Hirt acabara por abandonar este projecto, devido a razões logísticas: “transportar cabeças humanas a partir da União Soviética seria muito complexo”.

Para lá da Ahnernebe

Nos últimos meses de guerra, muitos documentos da Ahnenerbe foram destruídos, acidentalmente ou deliberadamente, mas Wolfram Sievers, director-executivo da instituição, deu-se ao trabalho de fazer ocultar uma parte dos arquivos numa gruta numa zona remota da Baviera, “na esperança, ao que parece, de que um dia os investigadores pudessem retomar os trabalhos no ponto em que os haviam deixado” – é inacreditável que, em Abril de 1945, com a Alemanha em colapso total sob a pressão inexorável dos exércitos aliados, ainda houvesse quem pensasse que o III Reich poderia reerguer-se, mas foi esta esperança insana de Sievers que permitiu aos serviços de informação Aliados e aos procuradores encarregados de investigar os crimes de guerra nazis ficar inteirados em detalhe da actividade da Ahnenerbe. Como comentou um dos procuradores, “os seus próprios relatórios ilustrados com fotografias são melhores do que qualquer dos estudos que pudéssemos ter compilado acerca da perseguição de judeus e de crimes contra a humanidade. Não há dúvida de que os alemães gostam de pôr tudo por escrito”.

Wolfram Sievers, director-executivo da Ahnenerbe, c.1946-47. Seria condenado à morte nos julgamentos de Nuremberga e enforcado em 1948 na prisão de Landsberg, na Baviera, a mesma onde, 23 anos antes, Hitler escrevera Mein Kampf

Apesar deste manancial de informação, a maior parte dos elementos destacados da Ahnenerbe escapou-se com punições leves; após o cumprimento destas ou da passagem de um “período de nojo”, alguns foram readmitidos na academia, vindo, inclusive a ocupar cargos de prestígio. Pringle segue os percursos dos principais figurões da Ahnenerbe no pós-guerra, mas deixa de fora dois casos de clamorosa inoperância da justiça: Niels Eugen Haagen e Otto Bickenbach, dois dos médicos-torturadores de Natzweiler-Struthof, foram detidos e deportados para França, onde, em 1952, foram julgados; embora tenham negado envolvimento directo nos crimes de que eram acusados e alegado terem apenas cumprido ordens superiores, foram condenados ambos a penas perpétuas de trabalho forçado. Em 1954, as condenações foram anuladas e um novo julgamento resultou em penas de 20 anos de trabalho forçado, mas foram ambos amnistiados no ano seguinte. Bickenbach retomou o exercício da medicina e faleceu em 1971. Imediatamente após ser libertado, em 1955, Haagen casou-se com a sua assistente nas experiências macabras no campo de concentração e o casal obteve financiamento estatal alemão para um projecto de investigação bio-médica; em 1956, Haagen entrou para o Instituto de Imunologia, em Tübingen; faleceu em 1972.

Crematório do campo de concentração de Natzweiler-Struthof, inspeccionado por elementos da Resistência francesa, pouco depois da libertação do campo

As experiências médicas da Ahnenerbe desafiam o entendimento: à iniquidade de usar seres humanos como cobaias involuntárias (e inadvertidas) em experiências com alto risco de morte ou lesões graves permanentes, somou-se a crueldade gratuita com que as “cobaias” foram sistematicamente tratadas, tornando o seu sofrimento ainda mais excruciante, e a própria obtusidade dos estudos, a maior parte dos quais foram planeados e executados de forma inepta e displicente ou partiam de pressupostos disparatados, pelo que dificilmente poderiam contribuir para avanços no conhecimento científico. A Ahnenerbe propunha-se investigar “com base em métodos científicos exactos”, mas as experiências que conduziu dir-se-iam obra de amadores sádicos, perversos e pouco inteligentes.

No capítulo final do livro, “As sombras da História”, Pringle confessa não compreender por que fizeram estes “investigadores” o que fizeram – “afinal, ninguém os obrigou a juntar-se às SS e ao seu braço científico” – e interroga-se: “Estariam estes homens conscientes de ter atravessado um limiar moral, de ter deixado para trás o mundo familiar da ética, da decência e da compaixão humana?”. Provavelmente não: o ego é um mestre na auto-ilusão e na pseudo-racionalização, é capaz de encontrar justificações até para os actos mais infames, de forma a preservar a auto-imagem. A astúcia, tenacidade e hipocrisia com que estes criminosos se defenderam em tribunal e as vidas que levaram no pós-guerra não sugerem que estivessem atormentados pelo remorso.

Pringle vê na Ahnenerbe uma advertência contra “o terrível poder da ciência”, mas a verdade é que nenhuma das investigações relatadas no livro cumpre os requisitos básicos da ciência: as construções teóricas eram destituídas de lógica e coerência e ignoravam ou contrariavam o corpo de conhecimento na área; os resultados das pesquisas eram violentamente “martelados” para se conformarem às teorias lunáticas e às expectativas; os estudos não eram sujeitos ao crivo da “revisão pelos pares” ou a qualquer apreciação crítica – tinham apenas de agradar a Himmler – e aqueles que foram divulgados foram recebidos com cepticismo ou até chacota pela comunidade científica internacional. O que a Ahnenerbe produziu foi uma mescla de ideologia, preconceito, chauvinismo e charlatanice travestida de ciência.

Por outro lado, parte da perplexidade que Pringle exprime perante a faceta mais bárbara da “ciência” da Ahnenerbe parece resultar de tais actos terem sido cometidos, não por padeiros, trabalhadores agrícolas, talhantes, estivadores e fiéis de armazém, mas por professores e eruditos – acontece que os diplomas académicos apenas atestam que o diplomado é capaz de exprimir-se de forma articulada e se sujeitou ao cumprimento de uma série de rituais académicos, nada dizem sobre a sua capacidade empática, a nobreza do seu carácter ou a sua honestidade intelectual; por outro lado, os principais requisitos para se triunfar numa carreira académica são os mesmos que determinam o sucesso em quase todas as carreiras: determinação, ambição e auto-confiança. Num meio moralmente corrupto, como era a Alemanha do III Reich, a ascensão era também favorecida pela ausência de escrúpulos, “virtude” que parece ter sido comum à maioria dos “investigadores” da Ahnenerbe.