Nos dias que João Rendeiro comunicou ao tribunal estar ausente do país, entre 12 e 30 de setembro, podendo ser contactado através da embaixada portuguesa no Reino Unido, o antigo banqueiro que é agora procurado pela justiça pelos crimes de fraude fiscal, branqueamento e abuso de confiança, marcou também uma viagem a Paris. Mas esta viagem à capital francesa não chegou a ser realizada.
A informação é da empresa de handling que opera em Portugal, a Portway, e foi pedida pela juíza Tânia Loureiro Gomes, que desde que Rendeiro comunicou a sua intenção de não regressar a Portugal — há cerca de um mês –, tem disparado para todo o lado à procura de possíveis pistas do seu paradeiro.
Primeiro a juíza tentou o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF), que lembrou na sua resposta que registar entradas e saídas de cidadãos do e no Espaço Schengen viola a lei. O SEF fiscaliza suspeitos ou visados pelas autoridades e não tem qualquer registo dos movimentos de Rendeiro. Perante a resposta, a 6 de outubro, Tânia Loureiro Gomes pediu então informações à Autoridade Nacional de Aviação Civil (ANAC) e a todos os responsáveis por aeroportos e aeródromos civis registos de possíveis deslocações de Rendeiro.
A única resposta que chegou, até agora, com registos coincidentes com o nome de Rendeiro — e que implicam agora uma confirmação com as agência ou companhias de viagens sobre a sua identificação — foi da Portway. Segundo esta empresa, cuja resposta consta no processo consultado pelo Observador no tribunal, nos dois meses que antecederam o pedido da magistrada, houve quatro registos de voos feitos a partir de Portugal em nome do antigo banqueiro e em dois deles Rendeiro deu moradas polacas, que se suspeita serem falsas, assim como endereços de e-mail com domínio deste país.
A 13 de setembro, Rendeiro mandava informações aos dois processos onde agora é procurado: um para cumprir pena e outro para ficar preso preventivamente. No processo principal — em que foi condenado a cinco anos e oito meses — anunciava que tinha pedido ao Tribunal Constitucional para estender a si os efeitos do recurso interposto pelo seu co-arguido Paulo Richard — tentando que o processo não transitasse em julgado e não fosse preso. Já neste processo conduzido por uma juíza, em que foi condenado em maio a dez anos de cadeia, informou o tribunal que estaria ausente entre os dias 12 e 30 setembro e que podia ser contactado através da embaixada portuguesa no Reino Unido.
Nesse mês, informa agora a Portway, Rendeiro teve de facto viagem marcada para o Reino Unido, mas também teve uma para França. Assim, o arguido que agora é procurado pela justiça portuguesa, começou por marcar viagem a 9 de setembro com partida a dia 12 para o aeroporto de Gatwick, no Reino Unido. O regresso, também depois de uma alteração, estava previsto de 30 de setembro, como anunciara ao tribunal. Nestas duas marcações, que aparecem registadas como se fossem duas viagens diferentes mas que têm o mesmo código do voo, usou moradas e e-mails polacos que se presume serem falsos.
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No entanto, no espaço temporal desta viagem ao Reino Unido, e um dia depois de a ter marcado, o antigo banqueiro marcou também uma viagem de Lisboa para Paris, para o aeroporto Charles de Gaulle. Neste caso a partida seria a 24 e o regresso a 27 de setembro e viajariam mais duas pessoas com ele. Uma viagem que nunca aconteceu, segundo a Portway.
O outro registo que a Portway tem é de uma viagem de Milão para Lisboa com data de 15 de agosto. Aqui há também reserva em nome de uma mulher e é o e-mail dela que é usado na reserva, com uma morada da Marinha Grande. O mistério das viagens de Rendeiro ainda não está resolvido. A juíza pediu também às autoridades do Reino Unido os registos da entrada do arguido naquele país. O Observador sabe que já veio uma resposta, mas que ainda não foi traduzida.
As moradas que Rendeiro deu e que nunca foram verificadas
Desde 2017 que Rendeiro comunicava ao processo todas as suas deslocações ao estrangeiro que durassem mais de 5 dias. Mas ao que tudo indica nunca foi preciso chegar a contactar o arguido que estava sujeito à medida de coação menos grave: a de termo de identidade e residência. O antigo banqueiro explicou aos juízes que os julgaram que manteve a sua atividade profissional no estrangeiro, tendo clientes a quem presta consultoria em todo o globo. E por isso as moradas que deu nunca levantaram suspeitas.
Em novembro de 2017, Rendeiro comunicou ao tribunal que ficaria no Pestana South Beach Art Deco – 1817 James Avenue, Miami Beach, na Florida (EUA). No ano seguinte teve uma estadia no The St. Regis San Francisco, em São Francisco (EUA), um hotel de cinco estrelas que pode custar 500 euros a noite, ficou numa estância de esqui em França e ainda comunicou duas outras estadias nos Estados Unidos. Em 2019 deu duas moradas nos Estados Unidos, uma em Nova Iorque e outra em Miami, mas nenhuma delas era um hotel. Já este anos as indicações começaram a ser mais vagas.
Em julho diria ao tribunal para, se precisasse, contactarem a representação consular na Costa Rica. Na verdade não existe representação diplomática portuguesa na Costa Rica, é tudo tratado pela Embaixada de Portugal no Panamá. Há sim um posto “honorário” em San José. No entanto, o tribunal não levantou questões e Rendeiro voltou a entregar uma justificação semelhante já em setembro, quando deu a morada da embaixada portuguesa no Reino Unido para poder ser encontrado.
Em julho foi precisamente a altura em que Paulo Guichard recorreu para o Constitucional, acalentando a Rendeiro a esperança de que o processo em relação a si pudesse não transitar logo em julgado.
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Mas, na verdade, o advogado que representa o BPP afirmou num requerimento que fez ao processo que o arguido assim que percebeu que seria condenado, deixou de ir ao julgamento. E que contrariamente ao seu comportamento ao longo do julgamento, nem compareceu no dia em que foi lido o acórdão, lê-se no requerimento assinado pelo advogado Miguel Coutinho, entregue ao tribunal a 22 de setembro.
Nesse mesmo dia o próprio Ministério Público, pelas mãos da procuradora Maria Leonor Cardiga pedia mesmo à juíza que marcasse um interrogatório para ouvir o arguido e alterar a medida de coação, uma vez que uma “embaixada não integra o conceito de residência” e não pode ser dado como o lugar onde ele pode ser encontrado. Mais, tal como alertava o advogado, o outro processo de que Rendeiro era alvo tinha transitado em julgado, logo ele tinha que estar em Portugal.
Arguido admite fuga e permite agravar medida de coação
Os dias seguintes a estes requerimentos foram um reboliço num processo que já tinha sido julgado e que de repente voltou a ter uma grande movimentação processual. Assim que a juíza notificou o arguido para comparecer, teve a resposta que não esperava, mas que lhe permitiu mudar a medida de coação sem o ouvir: o próprio Rendeiro a dizer que não regressaria a Portugal. Nesse mesmo dia 29 de setembro, a juíza mandou emitir mandados de detenção nacionais e pediu à Europol e à Interpol para emitir mandados de detenção internacionais.
Os mandados não ficariam logo prontos. Um lapso no nome de Rendeiro (a falta de um “de”) levaria a um atraso de algumas horas. Além desse erro faltava também enumerar os crimes pelos quais era procurado, o que levou a uma segunda correção.
João Rendeiro. “A minha ausência é um ato de legítima defesa”
Ainda no dia 30 de setembro a juíza deu ainda ordem ao Instituto de Registos e Notariado para paralisar todos os documentos de Rendeiro, invalidando o seu passaporte e impedindo a sua renovação. Pediu também que fosse enviado um pedido à WordPress para saber mais detalhes sobre o blogue de Rendeiro, “Arma Crítica”, onde ele anunciou também que a sua fuga não era mais que um caso de legítima defesa. Mas a resposta da WordPress foi que não tem competências para isso.
Também os restantes arguidos, Fernando Lima, Salvador Vital e Paulo Guichard, viram a sua medida de coação neste processo ser agravada — mesmo depois de os dois primeiros argumentarem estar reinseridos na sociedade e de Guichard prometer voltar a viver em Portugal, depois de regressar do Brasil. Ainda assim, a juíza determinou que devolvessem os passaportes e proibiu-os de sair de Portugal.
Mulher de Rendeiro vai dar explicações esta sexta-feira
Tudo o que se passou a seguir, com a determinação de buscas à casa de Rendeiro na tentativa de perceber se mais de uma centena de obras aprendidas há quase uma década no âmbito dos processos, foi recordado esta sexta-feira no Campus da Justiça, em Lisboa, — com a audição da mulher de Rendeiro, Maria de Jesus, que ficou como fiel depositária do material na vivenda de luxo na Quinta do Patino, em Alcabideche, onde vive o casal.
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O mistério sobre o paradeiro de Rendeiro adensa-se sobretudo nas procurações assinadas desde que comunicou estar ausente e trocou de advogado. Antes de comunicar que estava desaparecido, além das advogadas que sempre o têm representado (Joana M. Fonseca e Joana Cunha de Almeida), Rendeiro assinou uma procuração em nome de Carlos Paulo, a 25 de agosto. O advogado José António Barreiros renunciaria ao seu mandato logo após ser tornado público o desaparecimento de Rendeiro. Dias depois, a 6 de outubro, chegou ao processo uma nova procuração em nome de Joana M. Fonseca e Joana Cunha de Almeida (o que a juíza estranhou porque elas nunca tinham renunciado) e em nome de Abel Marques.
O advogado Abel Marques é também o secretário geral da Antral, a associação de taxistas presidida por Florêncio Almeida, que comprou a Rendeiro a sua casa de família em Campo de Ourique, Lisboa, por 503.500 euros. Depois doou-a ao filho que, segundo o próprio Florêncio em declarações ao Observador, a vendeu e comprou uma outra casa. Essa casa é também na Quinta do Patino, em Alcabideche, onde vive o casal Rendeiro. E em dezembro de 2020 Florêncio, o filho, vendeu o direito de usufruto dessa residência à mulher de Rendeiro por 200.976 euros (com todas as despesas do contrato a serem pagas por Maria de Jesus Rendeiro).
A juíza pediu aos advogados a procuração original por ter sido assinada numa altura em que, alegadamente, João Rendeiro estará fora de Portugal. Os advogados entregaram a procuração, assinada a caneta de feltro preta, mas não são obrigados a explicar mais nada. Será que Rendeiro ainda está em Portugal?