Rosemary Sullivan descobriu a história de Svetlana Allilluyeva por mero acaso. A vida extraordinária da filha de Estaline levou-a a procurar por uma biografia mas, para sua surpresa, não encontrou nenhuma no mercado. Apesar de estar com outro projeto em mãos, decidiu que era a história de Svetlana precisava de ser contada. Porque “vão sempre existir pessoas sobre as quais temos de escrever porque tiveram vidas extraordinárias e ninguém sabe”. Tentou vender a ideia à sua editora. Ela disse que sim. A pouco e pouco — com recurso a documentos norte-americanos e testemunhos de pessoas na Rússia, Inglaterra e Estados Unidos da América —, a biógrafa canadiana foi conseguindo juntar as peças do puzzle complexo que é a vida inacreditável da única filha de Estaline.
Svetlana nasceu no Kremlin, uma fortaleza junto ao Rio Moskva, em Moscovo, a 28 de fevereiro de 1926, apenas nove anos após a Revolução Russa. A sua mãe, Nadezha Alliluyeva, conhecida entre os amigos e família próxima por Nadya, nascida em Bacu, no Azerbaijão, tinha conhecido o georgiano Josef Estaline quando tinha apenas 16 anos. Casaram dois anos depois, em 1919, quando Estaline tinha 40 anos e um filho de um primeiro casamento, Iakov. A primeira mulher do líder soviético, Kato Svanidze, tinha morrido anos antes, de tifo. Os primeiros anos de Svetlana foram, por isso, passados numa casa apinhada de gente. Além da família mais próxima, os pais e os irmãos Iakov e Vassili, o apartamento do Kremlin era regularmente frequentado pelos familiares de Kato e Nadya, os Alliluyev e os Svanidze. Svetlana chamava a esses primeiros anos da infância “aquele lugar onde o sol brilhava”.
Quando os tios e tias favoritos de Svetlana começaram a desaparecer, a vida da filha de Estaline foi-se tornando mais e mais solitária. O apartamento outrora apinhado, tornou-se numa lembrança melancólica dos bons tempos. A relação com o pai, com quem costumava brincar ao jogo da anfitriã e do camponês (Svetlana era a anfitriã que dava ordens ao camponês), foi-se deteriorando até se tornarem dois estranhos. Quando Estaline morreu em, em 1953, Svetlana quase não falava com o pai a quem, em tempos, escreveu cartas afetuosas nas quais lhe enviava beijos e mais beijos. A velha ama, Alexandra Bychkova, foi a única que ficou. Quando fugiu para os Estados Unidos da América, nos anos 60, fê-lo na esperança de conseguir fugir a um passado que a aterrorizava e perseguia. Mas de pouco lhe valeu.
Svetlana Alliluyeva foi assim, à sua escala, mais uma vítima do regime soviético. Perdeu a mãe para o suicídio, o pai para a política e os parentes próximos para o Gulag. Cresceu sozinha, numa casa enorme, rodeada de muros altos que nunca conseguiu destruir. Nesse sentido, a sua fuga extraordinária foi tão inútil quanto tudo o resto. Apesar de ter deixado cair o apelido do pai — passou a usar apenas o nome da mãe, Alliluyeva —, Svetlana nunca deixou de ser a filha de um dos homens mais cruéis do século XX. A filha de Estaline. A sombra pairou sempre sobre ela, e foi isso mesmo que Rosemary Sullivan escreveu na sua biografia. O livro saiu em Portugal em 2016, pela Temas & Debates, mas foi só este ano que a autora teve oportunidade de passar por Portugal. No passado mês de outubro, esteve no FOLIO — Festival Literário Internacional de Óbidos e aproveitámos a oportunidade para falar com ela sobre a vida extraordinária e tumultuosa de Svetlana Alliluyeva.
Vou começar por lhe fazer a pergunta mais óbvia de todas: porque é que decidiu contar a história de Svetlana Alliluyeva?
Li, por mero acaso, o obituário dela no The New York Times [Svetlana morreu em 2011]. Houve duas frases que me ficaram na cabeça: “Para onde quer que vá, seja a Austrália, seja uma ilha qualquer, serei sempre a presa política do nome do meu pai” e “Não podemos lamentar o nosso destino, embora lamente sinceramente que a minha mãe não tenha casado com um carpinteiro”. Então pensei: “Isso é interessante!”. Fez-me pensar no mundo de 1997, quando visitei pela primeira vez a União Soviética. Fui ver se havia alguma biografia dela e, para minha surpresa, descobri que não havia nada sobre ela. Perguntei à minha editora se achava boa ideia e ela disse que sim!
Porque é que acha que nunca houve interesse em escrever sobre ela? A história é extraordinária.
Eu sei [risos]! Acho que nos Estados Unidos havia uma versão de direita de Svetlana, se é que lhe podemos chamar assim. Queriam que ela fosse política, que denunciasse os crimes do pai. Ela recusou-se sempre a fazê-lo porque acreditava que isso podia comprometer a segurança dos filhos que estavam na Rússia, e eu acredito nela. Até a filha do Tolstói [Alexandra], que vivia nos Estados Unidos, ficou zangada com ela. Esta era a versão simplificada de Svetlana — era uma espécie de peão político. Quando estive em Inglaterra, descobri que as pessoas estavam muito mais interessadas nela enquanto pessoa. Na União Soviética, foi completamente esquecida. Na verdade, quando fui a São Petersburgo, conheci uma jovem jornalista a quem perguntei se havia algum interesse nela. E ela disse: “Não” [risos]! Mas o meu livro foi publicado na Rússia. Acho que vão sempre existir pessoas sobre as quais temos de escrever porque tiveram vidas extraordinárias e ninguém sabe.
Que ideia é que os russos têm dela?
Sempre pensei que como o FSB, que sucedeu ao KGB, presta atenção a toda a espécie de ativistas políticos, que seria monitorizada. Mas, sempre que ia a um arquivo, ao Museu do Gulag ou no Instituto Górki, não havia qualquer interesse no facto de estar a escrever sobre Svetlana. Só os amigos é que estavam interessados. Pude conhecer um colega dela do Instituto Górki, a família mas, além disso, não parecia haver qualquer interesse oficial.
Não achou isso estranho?
Sim, porque ela desertou. Não sei se era possível ser-se cidadão soviético, mesmo um ex-cidadão soviético, sem se ser um bocado paranóico. Svetlana estava convencida de que, uma vez que era a filha de Estaline que desertou, a narrativa oficial soviética tinha de ser a da filha pródiga que regressa a casa. Nos últimos anos de vida, decidiu que queria ser cremada logo que morresse para que nenhum soviético pudesse ir buscar o seu corpo [e levá-lo para a Rússia]. Acho que era completamente exagerado, mas ela acreditava nisso. A filha dela, a Chrese [Evans], fez-lhe uma homenagem — atiraram as cinzas dela para o Pacífico. Ela mandou-me as fotografias e conseguia ver-se que havia uma nuvem estranha no céu que parecia um anjo. Muito estranho [risos]! Ela amava-a muito, apesar de ser muito difícil ser filha de Svetlana.
A primeira infância: “Aquele lugar onde o sol brilhava”
Svetlana Alliluyeva era a filha mais nova de Estaline. Ele adorava-a e era muito sentimental em relação a ela, mais do que em relação aos seus outros dois filhos, Iakov e Vassili.
Acho que, enquanto ditador, ele queria que os seus filhos fossem fortes e duros. A determinada altura, Estaline disse a Vassili [cinco anos mais velho do que Svetlana] que as mulheres são apenas palitos com cérebros pequenos, ou algo do género. Era georgiano, bruto, machista. Nunca houve mulheres nos cargos altos do seu governo. Mas, ao mesmo tempo, era capaz de amar a filha e de lhe chamar “mosquinha”, “borboletazinha”, até que ela fez 16 anos e se tornou numa mulher independente.
Também tinha o costume de lhe escrever cartas afetuosas, o que pode parecer muito estranho, uma vez que se trata de Estaline.
Há um momento que é muito comovente para mim. Quando ela estava a tentar reconciliar-se com o pai, os dois fizeram uma viagem de Sochi [uma cidade junto ao Mar Negro, na fronteira da Rússia com a Geórgia] até Moscovo. O comboio ia completamente vazio, porque ninguém estava autorizado a lá entrar. Durante uma paragem, Estaline saiu da carruagem e foi falar com o maquinista. Não havia ninguém na estação e ela pensou: “É isto o que o poder traz?”. A ideia que ela tinha do pai era a de alguém que começou por ser humano, que provavelmente amava a mulher — as cartas que enviou a Nadya são maravilhosas —, mas que acabou por se esvaziar até ficar completamente oco. Tudo em nome do poder.
Falou na mãe de Svetlana, Nadya, a segunda mulher de Estaline. Achei curioso que, apesar de Nadya ter sido uma boa pessoa ou de, pelo menos, nunca ter feito nada que desse a entender o contrário, era muito mais fria e distante com os filhos do que Estaline. Por causa disso, as melhores memórias que Svetlana tinha da primeira infância não diziam respeito à mãe, mas ao pai.
Sim. Nadya [Alliluyeva] tinha 16 anos quando conheceu Estaline. Era uma jovem mulher que se apaixonou pelo ideal revolucionário. Queria ser uma boa bolchevique, uma boa revolucionária. Costumava dizer aos amigos: “Arranja uma profissão e serás respeitado”. A relação dela com a filha era de “não faças isto, não faças aquilo”. Era muito rigorosa. Mas havia duas coisas que faziam com que Svetlana acreditasse que a mãe a amava — normalmente não dizemos este tipo de coisas, certo? Uma era uma fotografia dela nos braços da mãe quando era pequena, e a outra era o facto de que a mãe se preocupar com a sua educação. Nadya era bolchevique, e as mulheres bolcheviques deixavam os filhos numa creche na segunda-feira de manhã e só os iam buscar na sexta-feira. Portanto, Svetlana não recebeu o tipo de ternura que seria de esperar. Acho que sempre teve ciúmes do Vassili, porque ele recebia mais atenção da parte de Nadya. Então, o pai era a principal fonte de afeto. Uma história engraçada que descobri no Museu do Gulag foi a de que, quando Estaline estava irritado, a única pessoa que o conseguia acalmar era Svetlana, que punha os braços à volta das suas botas.
Essa relação estreitou-se depois de Nadya morrer?
Sem dúvida. Ele preencheu o vazio. Bem, não sei como é ter seis anos, mas ela sempre sentiu que a mãe a abandonou. Quando tinha 60 anos, escreveu à amiga Mary Burkett a dizer: “Não compreendo, nunca vou conseguir compreender, como é que a minha mãe fez o que fez”. Mas — e isto é tão à Svetlana — ela escreveu uma carta como se estivesse morta e deu-a ao advogado para que ele depois a entregasse à filha [Chrese], onde dizia: “Estou aqui com a tua avó, a minha mãe. Não podemos interferir na tua vida, mas estamos a olhar por ti, a tomar conta de ti”. É como se finalmente se tivesse reconciliado com a mãe e a tivesse perdoado. Mas foi uma coisa que demorou muito tempo. Acho que isso é uma característica dos filhos de suicidas — sentem-se abandonados e que fizeram alguma coisa de mal.
A morte de Nadya Alliluyeva, em 1932, abalou profundamente toda a família. Vassili começou a beber pouco tempo depois disso.
Sim, tinha 12 anos.
Era muito novo.
E tão perdido…
Acabou por morrer por causa do álcool, quando tinha 41 anos.
Sim. E não havia forma de ele herdar o poder de Estaline, não era assim que funcionava na União Soviética. Svetlana percebeu isso assim que Estaline morreu, mas ele não percebeu que, depois da morte do pai, não era ninguém.
Mas Estaline tinha essa ambição para o filho?
Não fiquei com essa impressão. Penso que Estaline casou Svetlana com [Iuri Jdanov] o filho de um dos membros do Politburo [a autoridade máxima do Partido Comunista soviético] para criar uma dinastia e, provavelmente, confiava nela, pelo menos no início, para ser muito mais perspicaz em relação ao poder do que Vassili.
Muita coisa mudou depois da morte de Nadya, em parte porque a Rússia também estava a mudar. Svetlana começou a andar acompanhada por um guarda-costas, a almoçar sozinha na escola…
… Começaram a fazer testes à qualidade do ar do apartamento onde viviam para verem se estava envenenado, a Grande Purga inicou-se em 1937. Ela começou a ser abordada por amigos de escola que lhe pediam se podia fazer alguma coisa porque os pais tinham sido detidos. Ela tentou falar com Estaline e ele, num ataque de fúria, disse-lhe: “Nunca, mas nunca mais me faças esses pedidos. O NKVD [Comissariado do Povo para a Segurança do Estado] nunca se engana”.
A onda de detenções acabou por afetar a família do melhor amigo de Svetlana, Misha, que acabou por desaparecer da escola que os dois frequentavam. Foi aí que ela percebeu, pela primeira vez, que havia alguma coisa que não batia certo?
Sim, foi aí que ela começou a perceber que havia alguma coisa de errado. Eles trocavam pequenos bilhetes e quando a professora os apanhou e os mostrou ao guarda-costas de Estaline, Misha foi mudado de turma. De um momento para o outro. Quando o tio e a tia [Aleksandr e Maria Svanidze] foram detidos, quando ela tinha 11 anos, ela pensou que devia ser um erro, que o pai tinha de ser capaz de o corrigir. Mas depois, aos poucos, a Purga começou a alastrar-se. A escola dela — a Escola Modelo N.º 25, em Moscovo —, que eu visitei, era uma escola de elite. Na província, não havia livros nas escolas, lápis, não havia nada. As pessoas morriam à fome, mas na escola dela tinham tudo o que precisavam. Não era assim tão óbvio o que se passava. Tornou-se claro quando Aleskei Kapler [um judeu de origem ucraniana que era um dos guionistas de cinema mais famosos da União Soviética] foi enviado para o Gulag.
Esse foi o primeiro choque. Kapler foi a primeira grande paixão de Svetlana.
E ela idolatrava-o. Era um romance muito conhecido e Estaline era completamente contra. Kapler [que tinha sido enviado para Estalinegrado para cobrir a guerra] escreveu [num artigo publicado no Pravda, a 14 de dezembro de 1942, intitulado “Carta do Tenente L, em Estalinegrado”]: “Da janela podes ver a muralha danificada do Kremlin”, numa referência a Svetlana. Isso foi um grande erro.
Não foi muito inteligente da parte dele…
Não, não [risos]! Bem, mais tarde, disse que tinham sido os amigos a porem lá essa frase. Quem sabe? Acho que não estava a dizer a verdade. Isto é a parte interessante de ser biógrafo — tem de ficar claro para o leitor quando alguma coisa não está comprovada e que é a forma como certa pessoa conta a história.
A detenção de Kapler e o primeiro casamento
Kapler foi detido no final de fevereiro de 1942, em Moscovo, acusado de ter “opiniões antissoviéticas e contrarrevolucionárias”. Foi condenado a dez anos num campo de trabalho, sem sequer ter tido direito a um julgamento. Como é que Svetlana lidou com a situação?
Ficou devastada. Há uma cena que ela descreve no livro [Vinte Cartas a Um Amigo] — o pai sugeriu que ela era uma prostituta, que tinha dormido com Kapler. E bateu-lhe — foi a primeira vez que lhe tocou —, enquanto a ama [Alexandra Bychkova] dizia “não, não, eu conheço-a”, sugerindo que ela não tinha dormido com ninguém. Não era uma coisa carnal, era completamente platónico. Svetlana disse a certa altura que, se não tivesse sido pelo amor da sua ama, que tinha enlouquecido. Houve um outro momento que me emocionou: acho que foi a Rosamond Richardson [autora de The Long Shadow: Inside Stalin’s Family, inicialmente escrito com a cooperação de Svetlana] que lhe disse “sofreste tanto”, e ela respondeu “eu não sofri nada, as pessoas que foram para o Gulag é que sofreram”. Ela não tinha pena dela própria e é preciso pensar que, naquela altura, as pessoas estavam habituadas à tragédia. É impressionante como elas absorviam a tragédia e seguiam com as suas vidas. A detenção de Kapler deve ter sido devastadora mas, logo a seguir, Svetlana tentou entrar para universidade para estudar Literatura, só que o pai disse-lhe que tinha de ser Política. Ela nunca o perdoou por isso.
Porque ela odiava Política.
Sim. Ela estudou História dos Estados Unidos, mas ela não gostava de História nem de Política. Ela queria estudar Literatura. Secretamente, queria ser escritora. Isso também faz parte da tragédia de Svetlana. Ela escreveu um bom livro — acho que Vinte Cartas a Um Amigo é um livro extraordinário, mas as pessoas só o leem por causa de Estaline. Ninguém lê os dois livros seguintes, e eles não são assim tão bons. O que nos move em relação a Svetlana é o pai dela. Ela nunca conseguiu escapar da sua sombra, nem no que diz respeito ao seu próprio trabalho.
Falou na facilidade com que as pessoas daquele tempo ultrapassavam a tragédia. A verdade é que, apenas um ano depois de Kapler ter sido enviado para o Gulag, Svetlana casou pela primeira vez com Grigori Morozov, de quem Estaline também não gostava.
Nesse primeiro casamento, ela estava provavelmente à procura de segurança e conforto. Morozov não era uma figura opressiva — era um bom homem –, só que nunca seria capaz de satisfazer Svetlana [o casamento acabou em 1947]. Acho que ela sonhava com uma vida doméstica sossegada, mas os homens com quem teve uma relação — por exemplo, Kapler ou, mais tarde, o arquiteto William Wesley [Peters] — nunca seriam companheiros domésticos sossegados [risos]. Ela estava sempre a escolher o homem errado! O neto de Estaline, Sasha [Alexandr] Burdonsky [filho de Vassili], disse-me que havia um lado de Svetlana que era difícil de definir — a procura por uma paz espiritual. Ela falou sobre isso num dos seus livros, Only One Year, sobre a sua crença no Bem — não em Deus. É como se aquela estranha alma russa que encontramos em Dostoiévski ou em Tolstói fizesse parte do temperamento de Svetlana, assim como a sua ligação à natureza, ao projeto humano. Ela acreditava num tipo de espiritualidade, e penso que foi isso que a fez interessar-se pelo seu companheiro indiano, que era hindu. Ela entrava em todas as igrejas que encontrava. Nunca conseguiu encontrar uma crença, um sistema que a convencesse, mas procurou sempre uma consolação espiritual, uma solução, uma resposta.
Essa procura constante por uma espiritualidade é completamente contrária aos ideais comunistas. Como é que é possível que ela fosse tão diferente das pessoas que a educaram, com quem cresceu? Recebeu a mesma educação soviética rigorosa que muitos outros russos, mas nunca foi uma verdadeira bolchevique.
Depois do fim da guerra, certamente que havia alguns comunistas convictos que acreditavam que, através da industrialização, Estaline tinha transformado a Rússia numa grande potência capaz de vencer os alemães. Mas, ao mesmo tempo, havia uma vasta maioria de pessoas que vivia aterrorizada pelo sistema da polícia secreta. O livro de Vassili Grossman, Life and Fate, é um testemunho poderoso, que mostra como as pessoas se afastavam de um determinado indivíduo porque conseguiam ver que ele era o próximo alvo do NKVD. É verdade que Svetlana não sentia esse medo — ela era a princesa do Kremlin. Foi por isso que Kapler ficou tão impressionado com ela — porque ela conseguia pensar por si própria. Talvez essa tenha sido a única coisa boa, além da ama, que lhe ficou daqueles primeiros tempos — ela era independente, tinha vontade própria, e às vezes era odiada por isso [risos].
A morte do camarada Josef Estaline
Estaline morreu em 1953, quando Svetlana tinha 27 anos. Como é que ela lidou com a morte do pai? A relação entre ambos já não era a mesma.
Muito provavelmente foi apenas uma reação fisiológica mas, antes de morrer, Estaline ergueu o punho num ato de ódio contra tudo e contra todos, e isso aterrorizou-a. Mas, depois disso, quando olhou para o pai depois de morto e viu uma expressão de paz, disse que nunca tinha sentido tanto amor por ele. Pateticamente, o único sítio onde podia chorar era a cozinha, junto dos criados, porque tinha de lidar com Beria, Krutchev, Molotov, a correrem de um lado para o outro enquanto tentavam decidir quem é que ia suceder a Estaline. É um retrato um pouco patético, porque eles tinham medo que ele não estivesse mesmo morto, então continuaram à espera para terem a certeza [risos].
A verdade é que o deixaram morrer.
Sim, deixaram. Há muitas teorias sobre isso.
O que é que Svetlana pensava sobre a morte do pai? Em que é que ela acreditava?
No início, acreditava que tinha sido uma morte natural, que tinha tido uma hemorragia cerebral e que tinha morrido. Achava completamente absurdo que estivesse ali, rodeado de máquinas e de médicos que estavam demasiado aterrorizados para fazerem qualquer coisa.
Porque foi nos últimos meses de vida de Estaline que foi divulgada a Conspiração dos Médicos.
Sim, e não havia nenhum médico decente para o tratar [risos]! Mas, mais tarde, quando ela tinha 66 ou 67 anos, começou a acreditar na teoria de que ele tinha sido assassinado através de ondas cerebrais porque tinha ouvido dizer que o KGB andava a fazer experiências com isso.
Foi depois da morte de Estaline que Svetlana conheceu Brajesh Sigh, um dos filhos do rajá de Kalankar, que estava internado no mesmo hospital que ela em Moscovo.
Era um hospital de elite, obviamente. É interessante, ela nunca olhou para o seu estatuto como um problema. Ela não se importava de ter uma datcha, mas não queria uma datcha muito cara. Queria uma normal, ao contrário dos membros do Politburo que, depois da morte do seu pai, se tornaram cada vez mais corruptos. Começaram a comprar mansões e assim. Mas sim, foi no hospital que ela o conheceu, tinha ido tirar as amígdalas. E, como sempre, apaixonou-se pela sua sabedoria.
Ele mudou-se para casa dela e tentaram obter uma autorização para casar, mas não foi possível. Três anos depois de se terem conhecido, Sigh morreu. Essa foi outra das grandes tragédias da vida de Svetlana.
Sim, foi outra tragédia…
Mas que acabou por ter um lado positivo: foi graças à morte de Sigh que Svetlana conseguiu sair da União Soviética.
Sem dúvida. Acabou por ser uma dádiva porque foi a afeição dela pela família dele que a fez ponderar ficar na Índia. [Depois da morte de Sigh, Svetlana conseguiu autorização para levar as cinzas do filho do rajá de Kalankar para a Índia].
Mas, mais uma vez, não foi autorizada a fazê-lo.
Ela ficou muito mais tempo do que era suposto e, mais tarde, percebeu que se voltasse para casa nunca mais iria conseguir sair. Foi a primeira vez que saiu da Rússia. Na verdade, só saiu de Moscovo pela primeira vez quando tinha 27 anos, para ir a Leningrado. Era a princesa do Kremlin, mas não podia ir a lado nenhum.
A filha de Estaline não conhecia o próprio país?
Nesse sentido, não. Enquanto biógrafa, não consigo ter 100% de certeza, porque pode haver uma prova que não tenha visto, mas nunca descobri nenhuma informação que indicasse que ela viajou até ao norte, por exemplo, ou até outro lado qualquer. Esteve em Sochi e Moscovo, e só visitou a cidade da mãe depois de o pai morrer [apesar de ter nascido em Bacu, no Azerbaijão, Nadya cresceu em Leningrado], o que mostra o controlo absoluto que existia. Mas acredito que havia problemas de segurança, Estaline tinha guarda-costas. Provavelmente era paranoico em relação a isso e tentava proteger a filha.
A fuga para os Estados Unidos da América: o começo de uma nova vida
Quando decidiu que queria fugir da União Soviética, Svetlana percebeu que a melhor maneira de o fazer era pedindo ajuda aos norte-americanos. Depois de ter passado uma temporada com a família de Sigh em Kalankar, regressou a Nova Déli onde pediu asilo na embaixada dos Estados Unidos.
Ela sabia que eles não podiam dizer que não. Mostrou-lhes o passaporte soviético.
Mas não acreditaram quando ela lhes disse que era filha de Estaline. O cônsul George Huey até lhe perguntou se ela se estava a falar d’”O Estaline”.
Eu sei! Adoro essa parte [risos]. A filha do George Huey enviou-me uma carta depois de o livro sair onde dizia que o pai sempre contou essa história porque era a única frase que lhe era atribuída [risos]. Por causa da Lei de Liberdade de Informação, é possível ter acesso aos ficheiros sobre Svetlana do FBI, da CIA e do Departamento de Estado dos Estados Unidos. É de fácil acesso. Quando estava a pesquisar esse material, descobri que houve alguém na Universidade de Stanford que, em 1992, começou a escrever uma biografia sobre Svetlana, um projeto que acabou por abandonar porque houve uma editora que lhe disse que não havia dinheiro para isso. Essa pessoa deixou 50 cassetes — das quais consegui cópias — e outro material que não sei se podia ter ou doá-lo [à universidade]. Svetlana estava constantemente a destruir papéis à medida que ia mudando de casa.
Porquê? Tinha medo que caíssem nas mãos erradas?
Não, acho que assim não precisava de os levar consigo [risos]. O melhor teria sido arranjar um sítio para os guardar, mas ela nunca o fez. Mas esta coleção de documentos tinha uma minuta de uma reunião do KGB, durante a qual se discutiu a possibilidade de usar os filhos de Svetlana contra ela. Não consegui parar de pensar em como é que aquela pessoa a conseguiu. De certeza que foi a CIA, mas como é que a CIA a conseguiu? Alguém conseguiu os papéis de uma reunião do Politburo e enviou uma cópia para Svetlana. Quem é que era o infiltrado? Nunca saberemos.
Falou nos filhos de Svetlana, Josef e Katya. Quando decidiu abandonar a União Soviética, Svetlana estava também a decidir deixar os filhos para trás. Isso não pesou na decisão dela?
Questionei Sasha Burdonsky sobre isso e ele disse-me que era preciso ter em mente que eles tinham dois pais diferentes, Morozov [primeiro marido de Svetlana, pai de Josef] e Jdanov [segundo marido, pai de Katya]. Eram bem tratados e não ia haver repercussões. Não havia perigo. E, sabe, não tenho a certeza se Svetlana foi a melhor mãe do mundo [risos].
Porque é que diz isso?
Ela era muito, muito nova quando o Josef e a Katya nasceram e, tal como a maioria das mulheres soviéticas, tinha pessoas para tratar deles. Agora, com a Chrese, foi uma mãe norte-americana. Estava sempre em casa e elas tinham uma relação muito intensa, que Svetlana não teve com os outros filhos. Ela chegou a dizer que se não tivesse desertado e tivesse voltado para a União Soviética que se teria enforcado, o que teria sido muito pior para os filhos.
Como é que era a relação dela com os filhos que ficaram na Rússia?
Em 1986, quando ela regressou à União Soviética, a filha, Katya, recusou-se a vê-la. Mas depois, em 1994 ou 1995, escreveu-lhe uma carta a dizer que tinha lido o livro dela e que tinha ficado comovida, como se estivesse a tentar retomar o contacto. O marido de Katya morreu durante um misterioso acidente com uma arma, que ela acreditava que tinha sido um suicídio, e ela própria era alcoólica e uma eremita. Quando coloquei a hipótese de falar com ela, disseram-me logo para não o fazer. “Ela é uma reclusa. Seria impossível fazê-lo e seria demasiado perturbador para ela.” Por outro lado, Josef adorava a mãe. De acordo com o neto de Estaline, Sasha Burdonsky, Josef sempre teve esperanças de voltar a reunir-se com ela. Acho que podemos ser duros com Svetlana e dizer que ela não se esforçou o suficiente para ultrapassar o abandono de Josef. Ele tinha 20 anos quando ela saiu da Rússia e não viu a mãe durante 17 anos. Mas ela não gostava nada da mulher dele [risos]! Ninguém gostava da mulher dele.
Svetlana chegou aos Estados Unidos em abril de 1967 e nos anos seguintes viveu em diferentes cidades norte-americanas. O que é que ela pensava do país? Gostava de lá morar?
Princeton era um sítio muito especial, era um lugar de diplomatas e académicos. Não era o lugar certo para Svetlana, que desconfiava sempre dos diplomatas. Ela gostava da California, mas havia uma comunidade anti-comunista que ela considerava muito radical. Gostava bastante de Wisconsin, mas o que ela queria mesmo era viver em Oregon com a filha. Só que o apoio que davam aos idosos em Wisconsin não era o mesmo que davam em Oregon. Acho que ela teria sido feliz onde quer que a filha estivesse, mas acabou por ficar sozinha em Wisconsin por causa dos apoios sociais, com alguns amigos. Conheci alguns deles, incluindo a Marie Anderson, que estava com ela quando morreu. Além de nunca ter sentido pena dela própria, Svetlana sempre aceitou o seu destino. Ela dizia: “Nasci no Kremlin, no topo, e acabei na pobreza. A vida é assim”.
Podemos dizer que ela morreu em paz com o seu passado, com ela própria, com sua identidade?
Volto a dizer que a dificuldade de escrever uma biografia está no facto de toda a gente transformar a sua vida numa história, que é sempre moldada de acordo com aquilo em que precisam de acreditar. A Chrese disse-me que, nos últimos dois anos da vida de Svetlana, costumava perguntar: “Quem é aquela? Aquela não é a minha mãe”, porque parecia satisfeita. Contudo, os amigos contam que ela dizia que queria ser cremada e que continuava paranoica. Nas cartas que enviou a Robert [o agente da CIA encarregue de levar Svetlana da Índia para os Estados Unidos] e Ramona Rayle, parecia a mesma Svetlana de sempre — chateada, enraivecida. Talvez aos 85 anos achasse que teve a sua própria vida e que não viveu sob a sombra [de Estaline]. Que talvez tivesse escapado.
Como é que ela se sentia em relação ao pai pouco antes de morrer? Sabemos isso?
A única coisa que posso dizer é que nos quartos das casas de repouso onde viveu — e eu visitei-as — tinha uma fotografia de Nadya, muitas fotografias da sua filha [Chrese] e uma da avó [Olga Alliluyeva]. Não havia fotografias de Estaline. Ela tinha carisma. Rosamond Richardson disse que ela era extraordinária. Era capaz de nos destruir, mas era uma pessoa extraordinária, com uma personalidade que pertencia a outra dimensão. Tinha um grande carisma, e todas as pessoas com quem falei admitiram ter sentido isso.
Pela leitura da sua biografia, ficamos com a ideia de que ela também era uma pessoa extremamente inteligente, perspicaz. Por exemplo, sempre foi muito crítica em relação a Putin. Quando foi eleito Presidente pela primeira vez, ela disse que a Rússia estava a voltar ao passado. Parece ter sido capaz de o perceber antes da maioria das pessoas.
Exatamente. Ela conseguiu perceber que, ao elegerem Putin, os russos estavam a eleger dois governos — o dele e o da polícia secreta que estava por trás. Como sabemos, há cada vez mais ex-membros do KGB no poder. Ela percebeu-o imediatamente. Era muito inteligente, e todas as pessoas com quem falei também referiram que ela tinha uma certa intuição política.
Começa o seu livro por questionar “o que significa ser filha de Estaline, carregar o peso desse nome durante uma vida inteira e não se libertar dele. Como é que responde a essa pergunta?
Foi trágico. Ela não carregou o peso do nome, carregou a sua projeção. Ela viveu sob a sombra do nome do pai e nunca se conseguiu libertar dela. Conseguiu construir amizades profundas — com Mary Burkett, por exemplo. Alguns amigos dela em Oxford conseguiram ver para lá dessa projeção mas até deles ela fugia. Ia para Cornwall para estar sozinha.
Até ao fim da vida, nunca deixou de se sentir sozinha.
À exceção da filha. Vou-lhe contar um segredo: Chrese revelou-me que, uma vez, a mãe disse a um amigo: “Não percebo estas crianças modernas, com tatuagens e piercings e essas coisas todas”. A Chrese é muito moderna. E ele respondeu-lhe: “Claro que percebes, Svetlana”. “Não, não percebo.” “Eles querem pertencer a uma tribo!” Então ela foi ter com a Chrese e disse-lhe: “Quero ser um membro da tua tribo, quero fazer uma tatuagem”. Então, aquela mulher de 70 anos tatuou umas folhas de louro, ou algo do género, no braço [risos]. Mas o que gostava mesmo era que ela se tivesse tornado na escritora que queria ser. Quando escreveu o terceiro livro [Faraway Music], que tem umas coisas boas, ela não deixou que o editor a editasse porque achava que ele lhe queria mudar o texto. Ela continuava paranoica, não se conseguia libertar ao ponto de deixar que ele a editasse. Gostava de a ter conhecido, porque assim ter-lhe-ia dito: “Svetlana, vou editar o teu livro!”.