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JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

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A vila onde Utkin, o fundador dos Wagner, aprendeu a odiar ucranianos

Três dias após a morte de Utkin no avião onde seguia Prigozhin, o Observador foi à vila ucraniana onde o "Wagner" cresceu, casou e não deixou saudades. Poucos anos separam Smoline do "inferno".

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O prédio, de construção soviética, tem os dois pilares da entrada pintados com o azul e amarelo da bandeira ucraniana. Numa rua calma de Smoline, bem no centro da Ucrânia, onde a artilharia não chega e as sirenes não tocam, a vida segue normal, até uma mulher se aperceber da presença de jornalistas do Observador: “Saiam daqui, que ainda somos bombardeados“. Aquele não é um prédio qualquer, nem aquela é uma mulher qualquer. Zulka é antiga vizinha e melhor amiga de Lyudmila Utkina, mãe de Dmitri Utkin, o número dois e fundador do Grupo Wagner, que a ele deve o nome.

Passavam apenas três dias da notícia da morte de Utkin — que seguia a bordo do avião que caiu na região do Tver, na Rússia, ao lado Prigozhin — e Zulka é demasiado próxima da família para falar. É ela que, ainda hoje, faz a manutenção do apartamento onde Utkin cresceu e passou a adolescência, mandatada pela mãe do cérebro militar dos Wagner. Se o filho de Lyudmila Utkina, sua amiga, foi o terror da Ucrânia em Bakhmut, o seu filho defende as cores do pilar do prédio: combate do lado ucraniano.

Smoline não gosta do rótulo de “vila de Utkin“, mas com o início da guerra (de larga escala, em 2022) foram-se habituando. Afinal, o rosto do miúdo calado e bom no desporto começou a aparecer demasiado na televisão como o comandante militar do grupo Wagner. E, aí, as memórias avivam-se. A vizinha Tatiana Koliushko, diretora do centro cultural local, lembra-se bem de Dmitri Utkin, que descreve ao Observador como um “rapaz normal”, “muito bom aluno“, mas também “muito reservado” e, literalmente, com “poucos amigos”.

Homenagem a Utkin e Prigozhin, no no edifício do grupo Wagner em São Petersburgo no dia 26 de agosto

AFP via Getty Images

“Foi ela, a mãe, que meteu essas ideias na cabeça do rapaz”

Tatiana, que viu Utkin crescer, diz que ele “sempre quis ser militar”, mas confessa que “nunca lhe conheceu” “posições políticas” muito definidas. “Nunca entrei no quarto dele para saber se tinha posters do Hitler, se ele passou a ser nazi foi mais tarde”, conta. Ainda assim, a vizinha admite que foi ali, naquela casa, que começou a ser formado o sentimento anti-ucraniano do número dois dos Wagner. “Ela [a mãe] nunca gostou do povo ucraniano. Muitas vezes ela dizia com desdém: ‘Estes são khokhol‘ [um termo utilizado pelos russos para menorizar os ucranianos, que terá origem no penteado dos cossacos].” E diz sem rodeios, confessando que não se dava bem com a vizinha: “Foi ela que passou isso [sentimento anti-Ucrânia] para o filho. Meteu essas ideias na cabeça do rapaz“.

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Utkin saiu de Smoline quando terminou o ensino médio (o equivalente ao ensino secundário) e foi para São Petersburgo — cidade que fabricou homens como Putin e Prighozin — para entrar na Escola de Armas Combinadas, uma academia militar do ensino superior. Isto ainda antes de integrar os GRU (Departamento Central de Inteligência) do exército russo. Mas a ligação a Smoline continuou, impulsionada por laços familiares.

Tatiana, que viu Utkin crescer, diz que este "sempre quis ser militar", mas confessa que "nunca lhe conheceu" "posições políticas" muito definidas

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A primeira mulher de Utkin, conta Tatiana ao Observador, era professora na vila e tiveram uma filha, que ainda hoje vive com a avó em São Petersburgo. A ex-mulher de Utkin mais referida na imprensa internacional é, no entanto, Elena Shcherbinina — que em 2015, recorreu ao programa de televisão Espera por Mim para encontrar o então desaparecido ex-marido. Mas há ainda uma outra ex-mulher de Utkin: Tetiana Utkina.

E sobre este casamento, Koliushko — que também faz as vezes de notária em matrimónios — lembra-se bem: “Fui eu que os casei, como oficial do Estado”. Tetiana Utkina trabalha agora numa mina e está do outro lado da barricada: ajuda o exército ucraniano tecendo redes de camuflado.

Junto à escola n.º2 de Smoline, onde Utkin estudou entre 1977 e 1987, os populares tentam levar o Observador até Utkina, mas está difícil. “É sábado, é pior”. Um jornal ucraniano, relatam, falou com ela um dia antes do Observador. À publicação local, Tetiana disse que Utkin nunca conheceu o filho, nascido em 1999, mesmo que tenha tentado contactá-lo quando o rapaz tinha 10 anos (em 2009).

Registos da escola n.º 2 de Smoline, onde se pode ver o nome de Utkin, bem como a data de nascimento (11/06/1970)

Ao Observador, Tetiana Koliushko revela ir acompanhando a vida da mulher que casou com Utkin que, reforça, “mora num bairro aqui perto”: “Apesar dela ter casado de novo, nunca deixou de ter o nome Utkin. Nem o filho. O rapaz até era vítima de bullying na escola por causa disso. Os outros gozavam com ele”. Tetiana Utkina, que viu o filho sofrer por causa do pai que nunca viu, não guarda boas memórias de um dos inimigos públicos da Ucrânia. Quando lhe perguntaram sobre a morte de Utkin após a queda do avião onde seguia com Prigozhin, respondeu aos jornalistas ucranianos: “Que o enterrem com betão“.

Koliushko quer ir aos registos mostrar a prova do casamento de Utkin e apressa-se a ceder o número do presidente da câmara. “Têm de lhe pedir autorização a ele primeiro e depois eu vou lá convosco”, atira. Na chamada, o autarca responde de forma rude ao Observador e mostra-se indisponível para colaborar. Na praça que dá para a fachada do prédio onde cresceu Ukin comenta-se de imediato: “Esqueçam, ele é pró-russo“.

“Vi-o ali nas barras, a fazer elevações”

As conversas sobre Utkin tornam-se um pequeno acontecimento no bairro onde a guerra parece longe e as crianças jogam à bola descontraidamente. Uma outra vizinha, que não se identifica, surge na varanda-marquise: “Estão a falar do Utkin? Eu vi-o ali em 2014, já depois da guerra começar no Donbass. Estava ali na zona desportiva do parque a fazer elevações”. Koliushko disponibiliza-se logo: “Eu levo-vos lá”. O espaço traz outra coincidência: as barras mantêm uma estrutura soviética, mas estão, também elas, como os pilares do prédio, pintadas de amarelo e azul. E igualmente tomadas por uma criança.

As vizinhas concordam que Utkin era totalmente desprovido de sinais de riqueza, mesmo nos últimos anos em que ali foi visto. Se a vizinha da varanda fala em 2014, há quem o tenha visto por aquelas bandas no final de 2016. São relatados também piqueniques com a mãe, já depois de ter fundado o grupo Wagner. Há relatos, já vertidos na imprensa russófona que, depois de o filho aparecer ao lado de Putin (numa fotografia que apresentou o Wagner e correu o mundo), a mãe exibiu e gabou a imagem na mercearia e terá dito que “onde o tio Vova [Putin] mandar, Dima [Utkin] irá”.

Utkin foi visto a última vez em Smoline, em agosto de 2014, a fazer exercício nestas barras que agora estão pintadas com as cores da bandeira ucraniana

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Tetiana Koliushko relata ao Observador que Utkin “não tinha carro sequer”, preferindo chegar à vila de comboio. A família dele era normal e Koliushko tem de se esforçar para se lembrar de algo estranho: “Só há uma coisa que nunca percebi bem. A mãe de Utkin vendia anéis de ouro… as pessoas perguntavam-se de onde viria aquele ouro… Isso era estranho”. Sobre se era através de Utkin e os saques dos Wagner em África, ninguém se atreve a especular.

Apesar de já existir guerra no Donbass, e de haver provas da intervenção dos Wagner no conflito, Utkin entrou e saiu de Smoline algumas vezes sem grande problema. Dmytri Zolotukhin, antigo vice-ministro da Informação da Ucrânia, contou ao Observador, num encontro num café de Kiev, que em 2014 Utkin já estava com os Wagner no terreno, mas “disfarçado” de representante dos GRU. “Ficaram muito famosos por abaterem um avião de transporte militar em Lugansk, que matou 49 militares ucranianos”, recorda o antigo vice-ministro (durante a presidência de Poroshenko) ao Observador.

Os serviços secretos ucranianos (SBU), lembra Zolotukhin, descobriram “chamadas comprometedoras entre Dmitry Utkin, aka Wagner, e Igor Plotnitsky, que era o líder [pró-russo] da República Popular de Lugansk.” Apesar disso, Utkin conseguia circular na Ucrânia e ir a “casa”, a Smoline. Por altura das últimas visitas do “Dima” à mãe, já o antigo governante fazia “apresentações em Bruxelas sobre os Wagner”, aos quais se juntavam investigações sobre o grupo de um antigo general do SBU — também ouvido pelo Observador. Apesar dos alertas, Utkin ainda não era, então, um alvo prioritário para a inteligência ucraniana.

Já depois de a guerra (em larga escala) começar, os ucranianos tentaram apelar ao passado do número dois dos Wagner em Smoline. O antigo vice-ministro da Informação da Ucrânia conta ao Observador que viu vídeos de ucranianos a apelarem a Utkin — que até tem filhos ucranianos — que parasse de combater contra a Ucrânia, mas Zolotukhin não os valorizou, pois acredita que de nada valem para o homem que deu nome aos Wagner.

Entrada do prédio onde Utkin cresceu, hoje com as cores da bandeira da Ucrânia pintadas
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A caixa do correio do prédio onde Utkin vivia com a mãe estão com cartas que foram endereçadas à sua mãe - que já lá não vive
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Várias cartas dirigidas à mãe de Utkin, o número dois dos Wagner, estão dentro de uma caixa de cartão numa das janelas do prédio
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Utkin vivia num dos primeiros andares deste prédio em Smoline
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De Smoline ao Inferno: “Para quem não me conhece, eu sou o Wagner”

Reservado, sim. Arrogante, também. Nazi, ninguém sabe. Em Smoline, Utkin nunca foi mais que um rapaz normal, que gostava de desporto. Mas, depois de entrar no exército, terá começado a manifestar a sua simpatia e saudosismo para com a Alemanha nazi. Numa das fotografias, Utkin aparece com as insígnias das SS (a Schutzstaffel, a tropa de proteção de Hitler) tatuadas junto ao ombro. Teria mais tatuagens nazis (como a águia que pousa sobre a suástica) e escolheu para si próprio o nome de código Wagner, em homenagem ao compositor favorito de Adolf Hitler.

Entre as histórias de caserna circula também o relato de que Utkin cumprimentava os seus homens com um “heil” e que tinha um capacete das Wehrmacht, as forças armadas nazis. Integrado no exército russo, Utkin foi 10 anos (entre 2000 e 2013) comandante da Segunda Brigada Spetsmaz do GRU, servindo na fronteira com a Estónia.

O antigo vice-ministro da Informação ucraniana, Dmytri Zolotukhin, lembra ao Observador que é nesta altura, em outubro 2013, que Utkin vai combater para a Síria através de uma empresa militar sediada em Hong Kong, a Slavonic Corps. Como Moscovo proibia empresas privadas militares, Utkin foi preso na Rússia. Mas, tendo como referência e inspiração a norte-americana Blackwater (que combateu pelos EUA no Iraque), Putin percebeu que podia ser útil ter aquele tipo de instrumento.

No ano seguinte, Utkin é visto tanto na Crimeia anexada, como no Donbass ocupado. Um documento interno (não confidencial) das secretas ucranianas, à qual o Observador teve acesso, define uma data precisa para o início da atividade de Utkin como Wagner, a 29 de maio de 2014. Trata-se de uma apresentação que expõe o combatente M-0209: o fundador, Utkin Dmytro Veleriiovych. Em 2015, Utkin volta à Síria para comandar militares do grupo Wagner, que se vai expandindo com missões altamente lucrativas em África.

Apresentação interna do SBU cedida ao Observador por um antigo general das secretas. Apresentações como esta, em inglês, chegaram a ser mostradas aos aliados europeus nos primeiros anos dos Wagner.

Desde o início e até ao fim, foi Utkin o comando militar do grupo Wagner, suportado no financiamento e no marketing por um não-combatente, CEO da empresa e homem do dinheiro: Yevgeny Prigozhin. Os serviços prestados à Pátria valeram a Utkin receber quatro condecorações de coragem e ser fotografado ao lado de Vladimir Putin no St. George Hall, no Kremlin, a 9 de dezembro de 2016.

Os Wagner tiveram depois, após fevereiro de 2022, um papel preponderante na invasão em larga escala da Ucrânia, em particular no Donbass, onde tomaram a pequena mas estrategicamente importante cidade de Bakhmut, em maio de 2023. Depois disso os Wagner ter-se-ão revoltado por falta de apoio do Kremlin e começaram a marchar até Moscovo (desta vez sem convite de Putin), mas foram demovidos a meio por uma alegada intervenção de Aleksandr Lukashenko.

Smoline é uma pequena vila bem no centro da Ucrânia

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A solução foi uma mudança para a Bielorrússia. É nesse momento que Utkin volta a ser visto, ainda que no escuro, quase sete anos depois da fotografia no Kremlin. Em julho de 2023, num vídeo alegadamente gravado já na Bielorrússia — perto da cidade de Asipovichy, onde estará agora o acampamento dos Wagner — Prigozhin dá a palavra a um homem de chapéu, num lusco-fusco que não o permite identificar por completo.

Mas Dmitri Utkin apresenta-se: “Se alguém não sabe quem sou, eu sou o Wagner“. Os militares ficam em êxtase. E o comandante militar, que vai ajeitando o chapéu, continua: “Muitos de vocês conhecem-me. E eu conheço muitos de vocês pessoalmente. Obrigado a todos pelo vosso trabalho. Obrigado pelo vosso trabalho, o nome do grupo Wagner ficou conhecido em todo o mundo“. Depois de Utkin falar, Prighozin, ou alguém que os Wagner venderam como Prighozin, aparece no fim do vídeo, na mesma ocasião, a dizer em inglês: “Bem-vindos ao Inferno“.

Semanas depois, a 24 de agosto, o avião onde suspostamente seguiam Utkin e Prighozin, caiu em Kuzhenkino, a norte de Moscovo. A Federação Russa confirmaria a morte de ambos. A 6 de setembro o porta-voz dos secretas ucranianas junto do Ministério de Defesa, Andri Yusov, dizia que a Ucrânia não tem condições de confirmar 100% a morte de Prighozin, mas tem “100% de certeza de que Utkin e os outros ocupantes morreram”. Em Smoline, ninguém chorou.

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