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Reportagem em Beirute, no Líbano
As milícias pró-Bashar Al-Assad nem sequer lhes deram tempo para repetirem aquelas sete palavras que mudaram o destino da Síria. Em plena época de exames, Abdul, então com 21 anos, e os amigos conseguiram juntar pouco mais de 50 colegas para uma manifestação em frente à Faculdade de Engenharia Eletrotécnica de Aleppo. Nos anos anteriores, sempre que chegavam as provas do mês de julho, todos os estudantes que cruzavam aqueles corredores tinham uma certeza: se queriam ter positiva, tinham de subornar o professor.
Mas aquele mês de julho não foi um qualquer. Era julho de 2011 e, na Síria, isso tinha apenas um significado: a guerra civil ganhava intensidade a cada dia, deixando um rasto de destruição. Ao caos provocado pela revolta contra Bashar Al-Assad, o regime respondia com a vaga de repressão mais forte dos mais de 40 anos que aquela família leva à frente do país.
Por isso, Abdul e os colegas não estranharam aquilo que viram quando chegaram ao pátio em frente à faculdade. Na primeira linha, estavam mais de 30 membros das milícias armadas pró-Governo, compostas exclusivamente por cidadãos, que então eram conhecidas como Lijan al-Sha’bia e que agora estão organizadas sob a bandeira das Forças de Defesa Nacional. Cada um tinha um par de matracas numa mão e uma soqueira no outro punho. Em segunda linha, atrás das milícias, estava uma carrinha com um canhão de água.
Foi o espírito de revolução que então atravessava o Médio Oriente que levou aqueles jovens a juntarem-se em frente à sua faculdade, mas o motivo inicial que os levara ali era conseguir o fim dos subornos na época de exames. “Primeiro, começamos pelas coisas mais pequenas. Depois, subimos a novos patamares”, Abdul combinou com os seus colegas, antes da manifestação. E, quando lá chegaram, gritaram: “Acabaram-se os subornos!”. Era o primeiro patamar. Tudo o resto viria a seguir, a seu tempo.
Mas, como em tantas revoluções, o espírito daqueles que ali estavam não era só feito de esperança. Mais do que isso, era dominado por uma pressa tremenda de chegar a novos patamares. Foi isso que sentiram alguns colegas de Abdul, em plena manifestação.
Se tinha sido a Primavera Árabe a fazer deles ativistas da noite para o dia; se o sistema de corrupção que queriam eliminar era apenas uma face do regime de Assad; se todo o país estava em ponto de ebulição; se tudo aquilo estava ligado, então porquê protestar apenas por causa de uns exames? Foi assim que as palavras de ordem mudaram naquela tarde de julho. De “acabaram-se os subornos!”, passou-se a gritar as sete palavras que mudaram o destino da Síria: “O povo quer o derrube do regime!”.
Gritaram-nas mais alto do que quaisquer outras. Mas, quando já se preparavam para repeti-las, as milícias avançaram em bloco, abrindo caminho contra os estudantes. Ao mesmo tempo, o canhão de água foi acionado.
Passou-se tudo num instante. Em pânico, a mais de meia centena de manifestantes começou a fugir. A soqueira de um miliciano acertou em cheio por baixo do olho de Abdul e abriu-lhe uma ferida que logo lhe encharcou a cara de sangue, atirando-o para o chão molhado com o impacto. Levantou-se num ápice e tentou procurar um ponto de fuga. Antes de começar a correr, viu os pés de um colega a serem sacudidos pelo canhão de água, levando-o a perder o equilíbrio. Aterrou com a cabeça no chão, onde permaneceu imóvel. Abdul percebeu naquele momento que ele tinha morrido. Foi a última coisa em que pensou, até conseguir fugir com um grupo de três outros colegas, desaparecendo do olhar das milícias de Assad.
Correu como nunca antes. Entretanto sozinho, foi em direção a casa, no centro de Aleppo. A cada passada que dava, acalmava-se o pânico e crescia o sentimento de alívio por ter escapado aos Lijan al-Sha’bia.
Quando chegou à rua onde vivia com os pais, abrandou o passo e começou a andar. Foi nesse momento que o caminho de Abdul foi interrompido por dois carros, de onde saíram cinco homens. Primeiro, atiraram-no para o chão e pontapearam-no em todo o corpo, até deixar de oferecer resistência. Depois, pegaram-lhe pelos braços e pelas pernas e puseram-no dentro de um dos carros. Não foram feitas perguntas. Percebeu que o tinham identificado como um dos manifestantes com facilidade. A camisola encharcada de sangue denunciou-o.
Ao olhar pela janela do carro, Abdul percebeu que estava a ser levado de volta para a faculdade.
“Não falam? Então agora vão ser tratados como cães”
Dos três anos em que estudou Engenharia Eletrotécnica, nunca tinha conhecido aquela sala. As persianas puxadas para baixo garantiam que quase não entrava luz natural. Localizada numa zona da faculdade que não é frequentada pelos alunos, nada naquele espaço lhe era familiar, à exceção de três dos seus colegas, que já estavam sentados no chão com as mãos amarradas atrás das costas, lado a lado. Fizeram o mesmo a Abdul, que se sentou na ponta. Depois, deixaram-nos sozinhos. Trocaram algumas palavras. Falaram sobre o colega que morreu na manifestação. Comentaram que todos tinham reparado como o tinham visto no chão e que, naquele momento, tomaram a decisão de deixá-lo para trás para poderem fugir. Ficaram em silêncio.
Só aproximadamente duas horas depois é que chegaram dois homens, de fato e gravata. Não os reconheceram. Embora não tivesse maneira de confirmá-lo, Abdul teve a certeza de que eram homens dos serviços secretos.
“Meus caros, podemos fazer isto como senhores ou então podemos tratar-vos como cães. A escolha é vossa”, disseram-lhes assim que entraram na sala. “Do grupinho que vocês juntaram ali à entrada, vocês foram os únicos a serem apanhados. E agora queremos os nomes dos outros. Vá, ajudem-nos.” Sentados no chão, contra a parede, os quatro estudantes mantiveram-se em silêncio. “Não falam? Então agora vão ser tratados como cães”, anunciou um dos homens de fato.
A tortura era feita à vez. Os agentes começaram na ponta oposta a Abdul. O método não era particularmente requintado. De forma quase automática, agrediram o colega que lhe estava mais distante com murros e pontapés durante alguns minutos. “Diz os nomes, filho da puta!”, gritavam-lhe, enquanto lhe puxavam os cabelos. O estudante suplicava-lhes que parassem, mas continuava a não obedecer às ordens que lhe davam. Assim que se desocuparam dele, passaram à segunda vítima. E, logo a seguir, passaram para o colega que estava mesmo ao lado de Abdul. Naquela altura, nada lhe parecia pior do que ver os seus amigos a serem torturados e saber que, daí a pouco, seriam seus os gritos de dor a encher aquelas quatro paredes.
Quando chegou a sua vez, os torturadores tiveram especial atenção em atingi-lo na ferida que tinha abaixo do olho, abrindo-a ainda mais a cada soco. “Queres liberdade, cão de merda? Queres liberdade? Então vê se isto é liberdade!”, gritava-lhe um deles, antes de voltar à carga. Abdul sentia a ferida a latejar, inchada de sangue. Ao início, tentou proteger-se, mas à medida que as agressões subiam de escala deixou de se defender.
A seguir às agressões, que para Abdul se prolongaram durante um número incerto de horas, começou a violência psicológica. “Vocês sabem muito bem que é muito fácil acabarmos com vocês e escondermos os vossos corpos para sempre, não sabem?”, disseram-lhes, já de noite. “Basta querermos.”
Quando já era de noite, decididos a não deixá-los dormir, os agressores disseram-lhes que tinham prendido as suas famílias. Pai, mãe, avós, irmão, tios, primos… todos presos. Quando disseram isto a Abdul, fizeram questão de dizer o primeiro e último nome do seu pai. Entrou em pânico — e a tortura foi retomada.
Quando o sol se levantou, os quatro estudantes ainda não tinham dormido nem comido. Os torturadores, que também já apresentavam alguns sinais de cansaço, deram-lhes apenas alguma água para beber. Ao segundo dia, apareceu um terceiro agente para ajudá-los. Entre pausas, foram-se revezando na tortura aos jovens.
Aos poucos, começaram a dar nomes de outros estudantes. Abdul foi o primeiro a fazê-lo. Quando os colegas se aperceberam de que eram todos falsos, juntaram-se a ele e passaram a colaborar a conta-gotas, na esperança de enganar os seus torturadores. Estes apontavam tudo num papel. Continuaram a negar-lhes comida e qualquer tipo de descanso, mas as agressões foram diminuindo. O sol voltou a pôr-se.
No dia seguinte, já à tarde, os agentes ordenaram a Abdul e a um segundo colega que se levantassem. Voltou a entrar em pânico, desta vez porque achava que eles tinham descoberto que os nomes que tinha dado eram todos falsos. Por momentos, lembrou-se do colega que foi morto na manifestação e pensou que estava mais perto do que nunca de seguir pelo mesmo caminho.
Por isso, não quis acreditar quando lhes disseram: “Vão-se embora”.
Abdul e o colega saíram da sala, deixando para trás os outros dois estudantes. Até hoje, não sabe o que é que lhes aconteceu depois daquelas 48 horas em que foi torturado ao seu lado. É possível que pouco depois tenham tido a mesma sorte de Abdul — mas também podem fazer parte dos 17 723 sírios que a Amnistia Internacional estima, num relatório publicado esta quinta-feira, terem morrido às mãos de torturadores do regime sírio desde março de 2011.
“O melhor é fugires”
Assim que saiu da faculdade, viu como o pai estava à espera dele na entrada. Antes de partirem para casa, deu um abraço ao pai. “Desculpa”, disse-lhe.
Sentado à mesa, o pai contou-lhe que tinha dado mais de mil dólares aos seus torturadores em troca da sua libertação. Na altura, era um professor universitário a poucos anos da reforma e com uma rede de contactos em Aleppo privilegiada. Foi graças a ela que soube do paradeiro de Abdul logo no primeiro dia em que ele esteve a ser torturado numa sala desconhecida. As outras 24 horas foram passadas a negociar o resgate do filho.
“Desta vez, consegui tirar-te lá, Abdul. Mas a partir de agora já não tenho mais dinheiro para pagar mais resgates”, disse-lhe o pai, lembrando-o que tinha de ter o suficiente para ajudar os seus outros nove irmãos. A mensagem era simples: “A partir de agora, isto pode voltar a acontecer a qualquer altura, quando menos esperarmos. O melhor é fugires”.
Os dias seguintes só vieram dar razão ao pai de Abdul. A polícia passou a ligar-lhes para casa a todas as horas do dia. Sempre que o faziam, perguntavam por ele. Com medo, deixou de sair de casa. Perdeu o emprego no Costa Café, um franchising internacional, onde trabalhava como barista. Com medo, deixou de contactar com os colegas que se manifestaram ao seu lado. A única boa nova que teve naqueles dias veio pelo correio: uma carta da faculdade a dizer que tinha concluído a licenciatura em engenharia eletrotécnica — a prova de que o suborno que dera a um professor dias antes do protesto tinha surtido efeito. Aquilo que seria uma boa notícia acabou por ter um efeito ambíguo em Abdul: embora estivesse contente por conseguir aquele grau, também estava ciente de que, depois do que se passou durante e após aquela manifestação, nunca mais poderia voltar a estudar na Síria.
Passaram-se 20 dias até que entrou num autocarro com destino a Beirute, a capital do Líbano. A decisão final foi tomada quando passou a fazer parte da lista de homens adultos chamados a combater pelo regime de Bashar Al-Assad contra os rebeldes. “Nunca hei de fazer parte desta merda”, jurou na altura.
Dando novamente provas de ter uma boa rede de contactos, o pai deu algum dinheiro a um conhecido no exército, que tratou de retirar o nome do seu filho daquela lista, que era distribuída por todos os postos fronteiriços como forma de apanhar desertores.
Mais uma vez, o suborno funcionou. Quando atravessou a fronteira com o Líbano, o sentimento de alívio não foi tão forte que pudesse sobrepor-se à culpa que sentia de deixar a família e os amigos num país a caminhar para o caos.
Tempos difíceis em Beirute
Quando chegou a Beirute, foi ter com uns amigos de Aleppo que já tinham ido viver para lá antes. Nos primeiros meses, juntou o útil ao agradável: enquanto percorria as ruas de Beirute a pé, de modo a conhecer a cidade, batia a todas as portas à procura de emprego. O dinheiro que o pai lhe mandava chegava para pagar a renda de um T-0 em Hamra, um bairro no centro da cidade, dividido com outros dois sírios.
Com o avançar do tempo, o pai deixou de enviar-lhe a mesada. À medida que a luta por Aleppo entre os rebeldes e o exército leal a Assad se intensificava, tomou a decisão de abandonar a cidade e o emprego na universidade para se mudar com a mulher para uma casa de campo de família, numa vila na fronteira com a Turquia. Sem o salário de professor universitário, tornou-se impossível continuar a ajudar Abdul, que entrava em desespero.
“Não havia empregos para mim, por mais que procurasse não havia nada para mim”, lembra Abdul. Naquela altura, o Líbano começava a lidar com aquilo que era apenas o início de uma vaga de refugiados sírios, que hoje já são cerca de 1,5 milhões. Num país que tem uma população de 4,5 milhões, os sírios representam agora aproximadamente um terço dos habitantes daquela pequena nação. Abdul passou a fazer parte das estatísticas quando se registou no Alto Comissariado das Nações Unidas Para os Refugiados (ACNUR). Pediu para ser recolocado noutro país, preencheu papéis para ter apoio financeiro e solicitou-lhes ajuda para encontrar um emprego. Nenhuma destas coisas se concretizou.
Sem dinheiro, atrasou-se a pagar a renda de casa e deixou de poder contactar com a família. Passou três meses sem saber nada dos pais ou dos seus nove irmãos. “Três meses na Síria não são três meses no resto do mundo”, explica. “Em três meses, tudo se destrói, tudo se perde.”
Depois de tanto aguentar, Abdul começou a quebrar. Os ataques de pânico chegaram em força, praticamente todos os dias. Sempre que pensava na família, o coração galopava, o estômago contraía-se, por vezes vomitava. Outras, desmaiava e caía no chão.
Um amigo convenceu-o a ir a um médico da Makhzoumi Foundation, uma ONG de cuidados de saúde libanesa. A custo, contou-lhe a sua história, desde a tortura na faculdade até à fuga para o Líbano. “Ele disse-me que o meu problema tinha cura”, recorda, das palavras do médico. Este aconselhou-o a dirigir-se ao Restart Center, uma ONG libanesa especializada na reabilitação de vítimas de tortura, cofinanciada pela Comissão Europeia, e que desde que a guerra civil começou na Síria tem recebido vários pacientes que fugiram do país vizinho.
Foi lá que, a pouco e pouco, recuperou. Com a ajuda de um psiquiatra, tomou consciência da sua doença. “Ele explicou-me o que eram os ataques de pânico, juntos entendemos o que é que os causava e eu aprendi como devo reagir sempre que estou à beira de uma nova crise”, conta. Ao longo desse processo, que durou cerca de um ano, foi medicado com psicotrópicos. No final, entendeu que estava curado.
Nunca contou nada aos pais. “Por causa da guerra, é muito difícil falar com eles”, justifica-se. “Não quero gastar o pouco tempo que temos a preocupá-los com os meus problemas quando os deles são bem maiores.”
A saudade inscrita na espuma de um cappuccino
Quando falamos com Abdul em Beirute, já passam mais de cinco anos desde o dia em que deixou para trás o seu país. “Sinto-me como se não tivesse feito nada nos últimos tempos”, confessa. É assim que resume a sua vida no Líbano, sentado numa das mesas do bar-restaurante Mezian, no bairro de Hamra. Dentro destas portas, libaneses e sírios fugidos da guerra misturam-se todas as noites. Abdul é cliente habitual.
“Não atingi nada, não evoluí em nada, não melhorei a minha vida. Nada”, insiste. Por cima das palavras de Abdul, uma rapariga de 20 anos de Damasco, a capital da Síria, canta músicas típicas do seu país, acompanhada por uma banda de cinco homens. À frente do conjunto, está aberta uma pista de dança improvisada. Os homens, sírios e libaneses, dançam em círculo, abraçados ou de mãos dadas. Ao lado, mãe e filha fazem a dança do ventre. Hoje, o bar está mais vazio do que é seu costume. O dono, que também nasceu na Síria, não tem dúvidas da causa: quatro dias antes, uma bomba explodiu a poucos metros do restaurante, à porta de uma sucursal do Blom Bank. A explosão, que aconteceu num domingo à noite e só fez dois feridos, foi unanimemente interpretada como uma mensagem do Hezbollah àquele banco, que congelou algumas das suas contas.
Atualmente, Abdul trabalha em part-time num café naquele bairro. É por ali, entre esplanadas e lojas de roupa de contrafação, que se concentram vários sírios, desde rapazes menores que engraxam os sapatos de quem passa, a troco de algumas moedas, aos mais afortunados, poucos, que podem dar-se ao luxo de se sentarem num café para beberem um refresco, para contrariar o calor opressivo de Beirute, ou um café, para ajudar a acompanhar o seu ritmo frenético. Sempre que nota uma pontinha de sotaque sírio quando lhe pedem um cappuccino, Abdul dá uso à sua experiência de barista. Mergulha um palito num monte de canela e, com paciência, escreve sobre a espuma da bebida a palavra que já se tornou num sinónimo de saudade no seu dicionário: Aleppo.
Mas Aleppo já não é Aleppo — e Abdul sabe-o bem. “Em Aleppo, toda a gente vivia uma vida normal até que chegou a guerra”, diz. “Crescia-se, estudava-se, casava-se. Havia tudo o que era necessário.” E agora, no presente, a cidade de Aleppo que ele deixou para trás é um lugar que fica no pretérito imperfeito.
De toda a família, Abdul foi o primeiro a fugir de Aleppo. Cinco anos depois, já não resta ninguém do seu clã naquela cidade. Os últimos a sair foram três irmãos e as respetivas famílias, no final de julho, quando os bombardeamentos aéreos de Assad e dos russos passaram a ser tão frequentes, que a população começou a queimar pneus em toda a cidade. A única esperança que lhes resta é que os céus completamente negros sejam o suficiente para afastar os aviões de guerra.
O telemóvel como janela para o passado
No telemóvel, Abdul tem uma pasta onde guarda fotografias com alguns dos sítios na sua cidade natal em tempos de paz e outras que retratam os mesmos lugares nos dias de hoje. Numa fotografia do pré-guerra, vê-se uma avenida que fica a poucas centenas de metros da casa onde vivia com os pais. Há carros a ocupar as três faixas que vão para cada lado, com um túnel pelo meio. O passeio está cheio de gente. Logo a seguir, aparece a mesma avenida, recentemente fotografada por um primo de Abdul. Não se vê vivalma e, dos poucos carros que ali resistem, já só restam as carcaças queimadas.
“É incrível, mas eu já vi tantas imagens de destruição… As pessoas que deixei lá mandam-me fotografias daquilo tudo. Carros, casas, edifícios, lugares onde andávamos à vontade e fazíamos as nossas vidas… Está tudo em cinzas”, conta. “No meio disto tudo, eu próprio já perdi a sensibilidade. Já não me impressiono, sequer. A primeira vez que isso me aconteceu, fiquei chocado comigo próprio. Mas foi isto que a guerra criou.”
Há quem não conheça outra realidade que não aquela. É o caso de um dos vários sobrinhos de Abdul, um rapaz de quatro anos que ele só conhece das fotografias e dos vídeos que lhe mandam. Nas imagens que o tio guarda no telemóvel e exibe com orgulho, aparece um menino loiro, com óculos de armação azul. No meio do sorriso, nota-se que já lhe começaram a cair os dentes de leite.
Abdul mexe no telemóvel a um ritmo próprio de quem passa o dia a fazê-lo. Logo a seguir, continua a passar o álbum de uma ponta à outra. Vê fotografias dos pais, sentados no sofá da casa de campo. Pelo meio, guarda a imagem de uma criança chorosa que desconhece, com a cara inundada pelo próprio sangue. Quando passa por esta, tem um pequeno bloqueio mental e, como que atrapalhado, passa à frente sem qualquer menção. Logo a seguir, mostra um vídeo onde crianças alemãs dizem expressões simples em árabe, como “bom dia”, “tudo bem?” ou “bem-vindos”. E, a caminho, um vídeo que o irmão fez durante um concerto ao vivo em Amesterdão.
É na capital da Holanda que um dos seus nove irmãos vive, já há um ano. Depois de ter fugido de Aleppo, seguiu a rota que mais de um milhão de refugiados fizeram no último ano e meio. Atravessou a Turquia, passou o mar Egeu numa embarcação precária e, depois, com várias paragens, chegou à Holanda, onde conseguiu o estatuto de refugiado. Neste momento, está a estudar para ser jornalista.
Durante a viagem até à Holanda, Abdul foi recebendo fotografias que o irmão lhe enviava, engrossando ainda mais o álbum que guarda no telemóvel. Numa, aparece com os polegares para cima, sorridente. Está no navio grego que o levou da ilha grega de Lesbos, onde chegou num barco de borracha, até Atenas, de onde não tardou a sair. Noutra, exibe orgulhosamente uma pizza de tamanho familiar num quarto de uma pensão em Viena, na Áustria. Depois, é o protagonista de uma selfie na praça Dam, no centro de Amesterdão.
“As coisas correram-lhe bem”, resume Abdul. “Um tio meu teve mais azar”, diz, quase en passant, mostrando arrependimento por tocar no assunto. Depois, a custo, explica-se melhor: “Ele agora está na Alemanha, mas a mulher e o filho de cinco anos afogaram-se antes de chegarem à Grécia”. O tema causa-lhe desconforto, não apenas por aquilo que aconteceu, mas também por aquilo que pode vir a acontecer. Neste caso, a ele próprio.
Isto porque, cinco anos depois de lá chegar, Abdul só pensa em sair de Beirute.
O plano A, o plano B e o impossível
“O meu plano A é ir para o Canadá”, diz. Pouco depois de se ter registado no ACNUR, fez um pedido de asilo àquele país, mas a resposta que veio na volta do correio foi negativa. Mas ainda não desistiu. Neste momento, espera a resposta de uma candidatura que fez a uma bolsa de estudo patrocinada pelo Estado canadiano e que foi feita exclusivamente para refugiados. Enquanto não tem uma resposta de Otava, tem aulas de inglês três vezes por semana, cortesia de um amigo sírio.
“Se o Canadá não funcionar, tenho um plano B…”, começa por dizer, até que se cala de repente e pára para ouvir a música que está agora a ser tocada pela banda ao vivo. Sem pensar duas vezes, levanta-se da mesa num salto, vai buscar dois guardanapos e desata a dançar.
Em frente à banda, Abdul dança às voltas, contra o sentido dos ponteiros do relógio e de braços e abertos, como um dervixe. Diz a tradição sufi que quem dança assim fá-lo para abandonar o ego e renegar a quaisquer desejos pessoais, preparando-se para se entregar a Deus. Só dois minutos mais tarde, com a banda já em silêncio, é que Abdul sai do seu êxtase e volta a sentar-se na mesa. Está tonto e cansado.
“Desculpa, mas tinha de dançar esta”, justifica-se, enquanto limpa o suor da cara com os mesmos guardanapos que lhe serviram de adereço ainda há pouco. “É que esta música era sobre Aleppo. Sobre as pessoas, sobre os sítios, sobre as tradições…” Abdul fala sobre a sua cidade como se ela fosse apenas uma memória distante.
Por fim, retoma a conversa e volta a falar do futuro — e do seu plano B. Isto é, aquele que pretende levar para a frente no caso de não conseguir a bolsa de estudo no Canadá. “Se não der mesmo para ir para lá, já está decidido. Vou-me embora para a Europa.”
Garante que está ciente dos perigos do seu plano B — basta lembrar-se da história do tio que perdeu a família no mar Egeu para tê-los bem presentes. Mas, da maneira como Abdul analisa a situação, é a única alternativa que tem de voltar a ter uma vida normal.
“Nada do que se está a passar é normal”, resume. “As coisas não devem ser assim. Ninguém deve ser torturado ou impedido de voltar a estudar só porque quer mais justiça na sua vida quotidiana. Ninguém! Ninguém deve destruir um país só porque não se quer sentar à mesa com os outros como iguais.”
Acredita que na Europa ou no Canadá as coisas serão diferentes. Finalmente poderia voltar a estudar e tornar-se no engenheiro que era para ter sido não fosse a guerra, a manifestação em frente à faculdade e tudo o que se seguiu. “Há muita gente que diz que vai ser tudo muito difícil”, diz. “Eu respondo sempre que ‘difícil seria na Síria’. Nos outros sítios, tudo se faz”, remata. Como se, cinco anos depois daquela tarde que lhe mudou a vida, voltasse a repetir: “Primeiro, começamos pelas coisas mais pequenas. Depois, subimos a novos patamares”.
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Por questões de segurança, e a pedido do próprio, o apelido de Abdul foi omitido.
O jornalista do Observador viajou a convite do European Journalism Centre