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JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

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Abusos na Igreja. Os cinco erros da Justiça no caso do padre que se tentou entregar

MP nunca emitiu qualquer mandado de detenção nacional ou internacional para o ex-padre. Por causa disso, não podia ser detido agora nem quando foi investigado. Os erros que a Justiça cometeu.

O relatório da comissão independente, que segunda-feira deu a conhecer mais de 4.800 potenciais vítimas de abuso sexual por membros da Igreja, trouxe a público relatos brutais de vítimas que guardaram durante anos em segredo aquilo que viveram, enquanto viam os seus agressores manterem-se impunes e muitas vezes protegidos pela Igreja. Revelou, também, como nas últimas décadas se lidou com estes casos. Três dias depois, o caso de um antigo padre madeirense — acusado de crimes de abuso sexual contra uma criança — que decidiu terminar quatro anos de fuga e entregar-se à justiça, como o Observador noticiou, acabaria por revelar também como a Justiça pode errar e esquecer as vítimas.

Durante quase cinco anos, o padre Anastácio Alves esteve fugido, mas nunca o Ministério Público emitiu qualquer mandado de detenção nacional ou internacional para o deter. E nem depois de proferir um despacho de acusação — onde assume que, pelas suas características, Anastácio Alves deve ser condenado e afastado de crianças — mandou emitir qualquer mandado de detenção.

Estes são os cinco erros que a Justiça cometeu no caso do antigo padre que é acusado e que continua em parte incerta, mesmo depois de tentar ser sujeito a uma medida de coação que o obrigasse a fornecer uma morada onde pudesse ser localizado. Nem a Polícia Judiciária nem qualquer outro órgão de polícia criminal tem qualquer razão para o deter.

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Falta de mandados de detenção

A carta publicada a 23 de junho de 2018 no site da paróquia de Gentilly, arredores de Paris, anunciava uma mudança: o padre Anastácio Alves deixaria a paróquia destinada à comunidade portuguesa para dar lugar a um novo padre. “No momento em que completo seis anos nesta Paróquia, quero agradecer do fundo do coração a todos quantos me ajudaram na missão de pastor desta Comunidade. Se alguma coisa conseguimos construir, foi graças à generosidade e à dedicação de todos vós”, escrevia Anastácio Alves sem revelar as verdadeiras razões da sua saída.

A carta seria a consequência de uma decisão da diocese do Funchal, à data liderada pelo bispo D. António Carrilho: o padre Anastácio Alves teria que ser suspenso de funções até ser investigado o teor de uma carta anónima enviada à diocese que dava conta de que, durante as suas férias no Funchal, o padre tinha abusado de uma criança de 14 anos.

Ao Ministério Público a denúncia não chegou pela Igreja. Foi a Comissão de Proteção de Menores que, alertada pela escola e para o comportamento da criança, dera conta do que teria passado às mãos do padre. Corria já o mês de julho de 2018 e já ninguém sabia de Anastácio Alves. Deixara o carro estacionado ao lado da Igreja e desaparecera sem deixar rasto. Não havia sinal de vida.

Investigação foi aberta em 2018, PJ concluiu a sua parte um ano depois, mas a acusação só seria proferida em março de 2022

Mas só em setembro de 2018 a informação de que estava a ser investigado por abuso sexual e estava desaparecido seria tornada pública pelo Jornal da Madeira.

Durante o tempo que se seguiu, o Ministério Público tentou localizar Anastácio Alves sem nunca emitir um mandado de detenção internacional para que fosse localizado e detido por qualquer polícia do país onde se encontrasse, ou mesmo nacional — para a PSP, GNR ou a própria PJ do continente. Em meados de 2019 uma carta escrita à mão e entregue na diocese do Funchal revelava que queria abandonar o sacerdócio. E que estaria vivo. Ainda assim sem se saber onde.

Ouça aqui o episódio do podcast “A História do Dia” sobre o caso do padre Anastácio Alves.

Padre confessou abusos mas não foi detido. Porquê?

A investigação esteve sempre nas mãos da Polícia Judiciária do Funchal e as diligências para tentar localizar o padre suspeito ocupam 25 páginas do processo, segundo o despacho de acusação. Desconhece-se, no entanto, pelo mesmo documento, que diligências foram essas. Certo é que, ainda ao dia de hoje, quase cinco anos depois, continua sem haver mandados de detenção em nome de Anastácio Alves.

Isso mesmo é confirmado pela própria Procuradoria Geral da República em comunicado enviado um dia depois de ter recusado qualquer notificação ou detenção do arguido: “No processo não foi determinada pelo magistrado titular a emissão de mandados de detenção nacionais ou internacionais, pelo que se revelava inviável a detenção do arguido”.

Defesa de padre que se tentou entregar por abusos sexuais: “Fica difícil colaborar com a justiça. É um problema do país”

Só depois de formalizada a acusação do Ministério Público, a 21 de março de 2022, foi de facto acionado um pedido de colaboração internacional, mas restrito. “Foi acionada a cooperação judiciária internacional em matéria penal, com vista a notificar o arguido da acusação pública”, explicou o Ministério Público do Funchal num comunicado enviado cinco dias depois de o Observador dar conta da acusação de cinco crimes que pendia contra Anastácio Alves, já em janeiro deste ano de 2023 – altura em que o Observador teve finalmente autorização para consultar o processo.

Da PGR, Anastácio Alves recebeu três informações diferentes: primeiro tinha que ir ao departamento da cooperação internacional a 500 metros dali, depois que tinha que ir a França e, no final, que tinha que deslocar-se ao tribunal do Funchal.

Este pedido de colaboração tem um objetivo próprio: aplicar o “Termo de Identidade e Residência e notificá-lo da acusação”, como determina o Ministério Público no despacho de acusação. O que significa que Anastácio Alves, apesar de ser acusado de cinco crimes de abuso sexual contra uma criança, nunca poderia ser detido fosse por quem fosse, como confirma a Procuradoria Geral da República no mesmo comunicado enviado esta tarde de sexta-feira. “Pelo que se revelava inviável a detenção do arguido”.

Anastácio Alves com os seus advogados à porta da Procuradoria Geral da República na Rua da Escola Politécnica, em Lisboa

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

As alternativas que a PGR não seguiu

A equipa de defesa que Anastácio Alves escolheu para o acompanhar esta quinta-feira à Procuradoria-Geral da República, em Lisboa, deixou sempre claro porque foi ali que decidiu ir. “Viemos à PGR porque o pedido de cooperação internacional para notificação da acusação do arguido, e neste caso com a prévia constituição do arguido com a prestação de Termo de Identidade e Residência, foi solicitado pelo Ministério Público e é da competência do Ministério Público. Estamos perante um caso que já não está em investigação, não faz sentido ir a um órgão de polícia criminal. Percebemos que isto não é o normal, mas basta ver a lei. Fica difícil para um advogado e para o seu constituinte colaborar com a Justiça quando a Justiça não quer colaborar”. A explicação seria replicada esta sexta-feira em vários telejornais portugueses.

Quando Anastácio Alves chegou acompanhado por esta equipa de defensores à Procuradoria-Geral da República pelas 15h20 de quinta-feira, a informação que lhe foi prestada inicialmente foi que devia deslocar-se ao Gabinete de Documentação e Direito Comparado, onde se trata a cooperação internacional, a cerca de 500 metros dali. Isto, porque no âmbito do processo havia sido acionada a cooperação internacional. Mas ali chegado levou outra nega. A procuradora Joana Ferreira — a mesma que durante o processo de extradição do antigo banqueiro João Rendeiro fez polémicas declarações sobre a alegada insuficiência de tradutores para garantir que o pedido fosse feito a tempo – recebeu a equipa e declarou-se incompetente. Segundo as explicações dadas ao advogado Miguel Santos Pereira, o pedido de cooperação judiciária foi feito a França, logo Anastácio Alves teria que deslocar-se àquele país para ser sujeito a uma medida de coação e ser notificado da acusação.

PGR afasta qualquer erro no caso do antigo padre madeirense que confessou abusos

Anastácio Alves voltou, então, à PGR e os seus advogados pediram mesmo para falar com a Procuradora-Geral da República, Lucília Gago. Só pelas 16h30 uma funcionária informou que, depois de “analisada a questão”, Anastácio Alves teria que deslocar-se afinal à Madeira, onde é o tribunal competente pelo seu processo.

Durante esta sexta-feira as vozes dividiram-se sobre se a PGR podia fazer mais alguma coisa. Na opinião de Adão Carvalho, presidente do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público, “a PGR não é um sitio para ser praticado qualquer ato processual”, por ser uma estrutura orgânica do Ministério Público. “Se esse cidadão quer entregar-se, vai às autoridades policiais e entrega-se”, disse ao Explicador da rádio Observador.

Em sentido contrário defenderam vários advogados ao longo do dia, entre eles Saragoça da Matta, ao Observador. “A PGR é tanto lugar para ser notificada, como a Polícia, como outro órgão qualquer”. Neste caso concreto o advogado, que considera o que aconteceu uma “situação absurda”, defende que qualquer funcionário judicial na PGR podia ter telefonado para o Funchal e pedir para enviarem a documentação necessária para que um procurador o constituísse arguido e resolvesse o caso.

Ouça aqui o “Explicador” da Rádio Observador sobre o lado jurídico do caso do padre Anastácio Alves.

O que complicou a detenção do padre que confessou abusos sexuais?

Neste caso Anastácio Alves não tinha que ser detido, a menos que eventualmente confessasse outros crimes — e aí teria que ser levado a um juiz de instrução criminal para aplicação de uma medida de coação mais grave do que a sugerida pelo Ministério Público.

A Procuradoria-Geral da República perdeu assim a oportunidade de saber o paradeiro de Anastácio Alves, acusado à revelia pelo Ministério Público e sem paradeiro conhecido desde 2018.

Quatro anos para acusar

A investigação da Polícia Judiciária terminou em julho de 2019, praticamente um ano depois da denúncia, mas o Ministério Público do Funchal só daria o inquérito por encerrado em março de 2022.

“Após remessa dos autos ao Ministério Público [2019], foram tomadas declarações para memória futura da vítima, bem como foi realizada perícia de psicologia forense, com vista a aferir da credibilidade do seu relato, a qual foi concluída pelo Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses, IP, em agosto de 2020, tendo sido dado o contraditório legal aos sujeitos processuais sobre o relatório pericial”, explica o Ministério Público do Funchal no comunicado enviado no início deste ano.

A proposta da Polícia Judiciária, sabe o Observador, era de acusação, mas essa só foi proferida em março de 2022, num despacho de onze páginas. Aparentemente durante todo este tempo o Ministério Público tentou localizar Anastácio Alves para o ouvir. Mas, “por impossibilidade de notificação”, decidiu-se pela constituição como arguido “com a dedução do despacho de acusação”.

De facto, Anastácio Alves já é arguido no processo, mas não “formalmente” como proclama o advogado Miguel Santos Pereira a quem encarregou da sua entrega às autoridades, que pediu que o seu constituinte fosse formalmente constituído arguido. De acordo com a acusação do Ministério Público e o pedido de cooperação judicial, a Anastácio Alves tinha apenas que ser aplicada uma medida de coação: no caso o Termo de Identidade e Residência, para depois o arguido ser notificado do despacho de acusação.

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Arquivamentos e a aplicação da medida de coação menos grave

Anastácio Alves já tinha sido investigado duas vezes por crimes idênticos, uma em 2005 e outra em 2007. Em ambos os casos foi ouvido quase no final do inquérito para negar todas as acusações. Os dois processos acabaram arquivados por se considerar que os testemunhos das vítimas eram incongruentes — isto depois de terem sido ouvidos por diversas entidades (uma prática não recomendável nestes casos).

O Ministério Público reconhece que Anastácio Alves deve ser condenado e que não deve estar perto de menores, mas deixou-o em liberdade e não emitiu nunca mandados de detenção nacionais e internacionais.

No entanto, tendo os casos sido arquivados, não foram tidos em consideração neste novo processo. Ainda assim, a procuradora que assina a procuração, Francisca Fernandes, reconhece a “gravidade do crime imputado ao arguido José Anastácio de Gouveia Alves e ao modo da sua execução” e admite mesmo que “existe o fundado receio de que ele possa vir a cometer crime de igual natureza contra menor, no âmbito de profissão, emprego, função ou atividade que envolva contacto regular com menores”.

A procuradora escreve mesmo que “existe o fundado receio de que o arguido possa praticar crime de igual natureza contra menor de que possa vir a ser tutor ou curado, padrinho civil, que acolha, de que tenha a guarda ou que lhe seja entregue ou confiado”, isto quase quatro anos depois de Anastácio Alves se encontrar em parte incerta.

Por estes motivos o Ministério Público pede mesmo que o arguido venha a ser condenado com penas acessórias que o afastem de menores e que lhe seja colhida uma amostra de ADN para a base de dados de perfis de abusadores sexuais.

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Porém, a procuradora determina depois que deve o arguido aguardar o desenvolvimento do processo em liberdade, com Termo de Identidade e Residência, não se encontrando reunidos nenhuns pressupostos do artigo do 204.º do Código do Processo Penal.

Uma leitura deste preceito legal revela, porém, que estes perigos são:

  • Fuga ou perigo de fuga;
  • Perigo de perturbação do decurso do inquérito ou da instrução do processo e, nomeadamente, perigo para a aquisição, conservação ou veracidade da prova;
  • Perigo, em razão da natureza e das circunstâncias do crime ou da personalidade do arguido, de que este continue a atividade criminosa ou perturbe gravemente a ordem e a tranquilidade públicas.

Anastácio Alves estava à data em fuga e ainda hoje não se sabe onde está a viver e com quem está a contactar. Já tinha sido investigado pelos mesmos crimes e assumiu esta quinta-feira aos seus advogados e ao Observador que cometeu os crimes e que terá uma compulsão, para a qual chegou a procurar tratamento, ainda antes de ser transferido para uma diocese no estrangeiro depois dos dois inquéritos de foi alvo.

O processo de Anastácio Alves está no Tribunal do Funchal

Gregorio Cunha

A perpetuação do segredo no processo

A acusação contra o padre Anastácio Alves foi proferida em março de 2022, mas o Ministério Público decidiu manter o processo em segredo externo, apenas disponível às partes. E foi esse o argumento que invocou sempre que o Observador tentou consultar o processo, nunca facultando sequer a informação se já havia ou não despacho final do inquérito.

Segundo a lei, o “processo penal é, sob pena de nulidade, público” ressalvadas algumas exceções, como a fase de inquérito, ou seja durante a investigação, que terminou na altura do despacho de acusação. A mesma lei diz também que “o segredo de justiça não impede a prestação de esclarecimentos públicos pela autoridade judiciária, quando forem necessários ao restabelecimento da verdade e não prejudicarem a investigação”.

Ao longo do ano de 2022 o segredo externo do caso nunca foi levantado, apesar das inúmeras insistências do Observador para o consultar ou para ter uma cópia do despacho de acusação. Só em janeiro de 2023, três dias depois de o Observador ter enviado uma reclamação por bloqueio à liberdade de imprensa ao Conselho Superior do Ministério Público e para a Procuradoria-Geral Regional de Lisboa, chegou a autorização para consultar o processo (com naturais restrições aos relatos das vítimas) e a um cópia do despacho final.

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