A socióloga Ana Nunes de Almeida, membro da comissão independente que no último ano estudou os abusos de crianças na Igreja Católica em Portugal, acusa o Ministério Público de “desrespeito por todas as pessoas que foram vítimas de abusos sexuais atrozes, que ficaram com as suas vidas devastadas“, depois de o Observador ter noticiado que o padre madeirense Anastácio Alves, que era procurado internacionalmente pelas autoridades devido a acusações de abusos de crianças, se tentou entregar à Procuradoria-Geral da República, mas foi mandado para trás em liberdade devido uma série de confusões burocráticas.

Numa entrevista ao Observador, que será publicada na íntegra ainda esta sexta-feira e transmitida na Rádio Observador, Ana Nunes de Almeida diz ter ficado sem “palavras” para descrever a situação. “Eu li a notícia de manhã enquanto estava a tomar o pequeno-almoço, um bocadinho à pressa, para vir ter convosco. Não tenho palavras. Parece quase uma situação de absoluta displicência, não ter a noção do que está em causa”, diz a socióloga responsável pelo estudo que recolheu 512 testemunhos de abuso sexual de crianças na Igreja portuguesa entre 1950 e 2022 e que foi apresentado na última segunda-feira, após um ano de trabalho da comissão independente.

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Para Ana Nunes de Almeida, esta situação “põe a nu” o modo como funcionam “certos setores da nossa justiça“.

“Ele quer entregar-se hoje, pelo seu pé, por sua iniciativa, e anda de serviço em serviço, de guichet em guichet, a dizerem-lhe: ‘Olhe, não é aqui, é no outro lado da rua'”, comenta a socióloga, lamentando que a justiça não tenha sido capaz de receber “uma pessoa que tomou a decisão de se entregar à justiça, uma pessoa que está desaparecida, que era procurada”. “A justiça deve-nos explicações”, acrescenta a socióloga que integrou a comissão independente.

“Agora não como ex-membro da comissão independente, mas como cidadã: eu gostava de ter a confiança na justiça de que, por um lado, vai investigar seriamente aquilo que lhe chega às mãos, e sobretudo quando tem um alegado criminoso à porta, não o recebe com indiferença, como se nada fosse”, diz ainda a responsável da comissão independente, que terminou funções na segunda-feira com a apresentação do relatório — mas que ainda vai entregar à Conferência Episcopal Portuguesa e ao Ministério Público uma lista com nomes de alegados abusadores no ativo.

Para Ana Nunes de Almeida, esta situação tem o potencial de causar “uma revolta enorme” nas vítimas. A atuação do Ministério Público neste caso “é um desrespeito por todas as pessoas que foram vítimas de abusos sexuais atrozes, que ficaram com as suas vidas devastadas”, diz. “Se houve coisa que este relatório mostrou foi a devastação que o abuso sexual provoca na vida das pessoas. Muitas destas pessoas estão vivas; muitas destas pessoas, com certeza, de que o padre em causa abusou, estão vivas.”

Padre foi denunciado duas vezes, mas só à terceira a Igreja agiu. Agora, desapareceu

O Observador noticiou esta sexta-feira que o ex-padre Anastácio Alves, que desapareceu em 2018 depois de ter sido alvo de uma queixa por crimes de abuso sexual contra uma criança, se tentou entregar na Procuradoria-Geral da República, em Lisboa, mas ninguém o recebeu. O padre, que foi acusado à revelia por não ter sido encontrado pelas autoridades, passou o último ano a viver tranquilamente em Portugal e a fazer uma vida normal. “Estou cá, pode parecer banal mas é sincero, primeiro que tudo para colaborar com a Justiça, para assumir as minhas responsabilidades, e também para ajudar a auxiliar as vítimas”, disse ao Observador, antes de se tentar entregar.

Chegado à PGR na companhia dos advogados, Anastácio Alves foi encaminhado de serviço em serviço, acabando por sair em liberdade com a indicação de que se deveria apresentar ao tribunal do Funchal.