“Ninguém pode esperar mais do que o PS já fez.” Pelos professores, no caso. É esta a tese que circula no partido e no Governo, e que mostra que as pequenas alterações que o Executivo decidiu fazer ao diploma sobre a carreira dos professores para permitir que passasse pelo crivo de Belém não trarão qualquer mudança de fundo à estratégia do Executivo. Entre socialistas há mesmo quem ironize sobre a importância das alterações cirúrgicas desenhadas para satisfazer Marcelo Rebelo de Sousa, garantindo que até ao Presidente interessou que estas passassem “de fininho”, sem grande alarido, por ter consciência de que seriam inconsequentes.
Dentro do Governo, e apesar de se antever mais um ano letivo complicado e recheado de protestos e greves, fica arrumada a ideia de que o dossiê dos professores deveria merecer novas mexidas e cedências além das que os Executivos de António Costa já assumiram. “A nossa linha é sempre a mesma: não há medidas especiais para carreiras especiais”, avisa uma fonte governamental, acrescentando: “Esta decisão não inviabiliza que outros governos possam tomar outras decisões”.
Palavras chave: “outros governos”. Ao contrário do que Marcelo desejaria, é assim que o Executivo interpreta as mudanças feitas no diploma que acaba de ser promulgado, questões de semântica à parte: o entendimento do Governo é o de que uma reabertura da questão do tempo de serviço só acontecerá num futuro pós-Costa — por agora, a questão fica encerrada.
Marcelo vê porta entreaberta, PS nem por isso
No topo do PS, a posição inalterada sobre a principal reivindicação dos professores — a contagem integral do tempo de serviço que ficou congelado durante os períodos de crise, para a qual Marcelo quis que ficasse uma porta “entreaberta” no diploma — também é clara. “Mas alguém, professor ou não, votou no PS em janeiro de 2022 [data das últimas eleições legislativas] na expectativa de que fôssemos descongelar o tempo todo?”, ouviu o Observador.
A ideia do Presidente era que essa posição, ainda que não mudasse agora nem se alterasse radicalmente para uma contagem de todo o tempo de serviço em causa, pudesse ser revista num momento posterior do mandato de António Costa: “Não é possível no momento, encontra-se noutro momento, mas — que diabo — ainda faltam até ao fim da legislatura dois anos e meio”, defendeu Marcelo aos jornalistas, ao explicar as razões pela qual decidira vetar a primeira versão do diploma, em julho.
Nessa altura, António Costa telefonou a Marcelo, conversaram e ficou a garantia de que o Governo faria, como terá feito — a última versão do diploma ainda não é pública — pequenas alterações ao texto, incluindo uma frase em que assegura que “em diferentes conjunturas, designadamente em próximas legislaturas, possam ser adotadas outras soluções (…)”, como cita o Público. Para Marcelo, um ajuste “mínimo”, mas que lhe trouxe algum conforto para promulgar o diploma, como acabou por fazer esta segunda-feira: “A palavra ‘designadamente’ é fundamental, por alguma razão lá está. Quer dizer, entre outros, em futuras legislaturas. É a tal porta aberta para esta legislatura”, justificou.
No texto que acompanhava o veto, era esse conforto que o Presidente pedia ao Governo: tendo em conta o “caráter objetivamente definitivo” do diploma, “deveria figurar, no texto, a ideia de que se não encerra definitivamente o processo. A pensar no futuro. E no papel que nele desempenham os professores em Portugal”. Para Marcelo, uma coisa seria admitir que contar mais tempo de serviço (faltam seis anos, seis meses e 23 dias, além dos dois anos, nove meses e 18 dias que o Executivo já descongelou) não seria “viável num determinado contexto”; “outra é dar um sinal errado num domínio tão sensível, como é o da motivação para se ser professor no futuro”.
Socialistas ironizam: Marcelo quis “passar diploma de fininho”
Entre socialistas, fica claro que a leitura do Presidente parece demasiado otimista. Tanto assim é que uma fonte do partido ironiza: “Parece relativamente óbvio que o Presidente quis promulgar esse diploma no dia em que vetou o pacote da Habitação, para que passasse de fininho“.
Ou seja: há quem entenda que o timing de Marcelo Rebelo de Sousa foi estratégico. Intencional ou não, o efeito para o PS foi o mesmo: com o veto arrasador (ainda que inconsequente, já que o PS consegue ultrapassá-lo) do pacote de Habitação — um veto que trazia um longo texto recheado de críticas ao Governo, e logo sobre um conjunto de medidas que o Executivo lançara para recuperar a iniciativa política e tentar ganhar terreno após meses de polémicas constantes — a promulgação do diploma dos professores acabou por passar para segundo plano e receber menos atenção mediática. Caso contrário, sugere-se no PS, ter-se-ia percebido mais claramente que a posição do Presidente foi mesmo acolhida em “mínimos” no que toca à carreira docente.
“A questão ficou encerrada em 2019”, diz ao Observador um dirigente socialista, defendendo que as cedências que o Governo tem vindo a fazer na sequência das negociações com os sindicatos — nomeadamente a aprovação do acelerador de progressões de carreira incluído neste diploma, que beneficiará cerca de 65 mil docentes — já são “um adicional face ao que era expectável — o PS correspondeu por cima das expectativas”. “No tudo ou nada deles [professores] já não há margem para fazermos mais nada“, acrescenta outro.
Além disso, a esperança no Governo e no PS é que a entrada em vigor do diploma nas condições em que está — com a solução do Governo, alargada de 60 para 65 mil professores para incluir os que foram afetados apenas pelo segundo período de congelamento, a somar à mudança cosmética no preâmbulo do texto para agradar a Marcelo — “amenize o ambiente” com os docentes.
“Cada professor verá, na prática, que a sua situação é diferente. Isto não é indiferente para aquele professor que é colocado, vinculado, que se aproxima de casa, que tem uma valorização salarial”, atira uma fonte do Governo, lembrando as medidas que o Executivo já tomou e que não têm diretamente a ver com as questões salariais ou de progressão de carreira, mas antes com o complexo processo de colocação e vinculação nos quadros. “Este efeito vai começar a ser sentido, até porque estamos a responder a problemas dos professores que já são antigos”, argumenta a mesma fonte.
Sindicatos prologam protestos, PS aposta no desgaste dos pais
Poderá ser um caso de wishful thinking entre socialistas: apesar de a última versão do diploma não ser pública, assim que as intenções do Executivo foram conhecidas, e que o texto foi promulgado, sucederam-se reações pouco positivas, para dizer o mínimo, dos sindicatos e dos diretores das escolas. O que estes prometem ao Executivo é mais um ano de protestos e greves, perante uma lei que dizem ser insuficiente, que “não conta nem um dia do tempo congelado” e que não resolve “assimetrias” de fundo na carreira dos professores, como apontou o dirigente da Fenprof Mário Nogueira ao Público, antes de acusar o Presidente de querer estar bem “com Deus e com o diabo”.
É aqui que as opiniões no PS se dividem: os socialistas estão, por um lado, convencidos de que o sinal de boa vontade do lado do Governo, que “fez um esforço persistente” nas negociações com os sindicatos, “está dado”. Além disso, no partido continua a vingar a tese que António Costa tem defendido: seria “injusto” que os professores continuassem a guerra contra o primeiro-ministro que começou o descongelamento (parcial) do tempo de serviço que ficou parado no tempo. Ir além disso, diz e repete o Executivo, significaria desrespeitar outras carreiras que viram tempo de serviço igualmente perdido, além de desequilibrar a balança orçamental.
Há um argumento que acrescenta algum cinismo a esta ideia: a convicção de que os professores não estarão a ganhar popularidade — pelo contrário — entre os pais dos alunos que veem as aprendizagens prejudicadas ou enfrentam os problemas logísticos de um dia a dia recheado de greves. “Todos esperamos, desde o Governo às famílias, que possamos ter um ano letivo com o foco nos alunos (…). O ano letivo anterior foi um ano em que as negociações não pararam”, frisou esta semana o ministro da Educação, João Costa, rematando: “Obviamente, não é o Governo que convoca greves”. “O Governo respondeu na medida em que podia. Temos confiança em que as pessoas compreendem isso. Estamos de consciência muito tranquila”, atira ao Observador um dirigente socialista.
A análise de outro colega de partido é mais dura, convicto de que a opinião pública não é favorável aos professores e já está “sedimentada” — assim como já está “cristalizada” a posição dos sindicatos, “sem expectativas” em relação a este Governo, como já não as tinham em 2019. Por outras palavras: por aqui, e apesar de os professores terem sido em tempos considerados uma base eleitoral importante para o PS, já não há muitos votos a perder.
Mas também há no partido quem avise: mesmo que a intenção seja deixar tudo na mesma no que à contagem do tempo de serviço diz respeito, e estando o Governo convencido de que nessa matéria já foi mais longe do que tinha previsto, é preciso ir dando pequenos sinais de boa vontade. “João Costa tem feito cedências aos bochechos e este acelerador já vai aproximar muitas pessoas da recuperação do tempo de serviço. É uma forma criativa” de aproximar posições, mas “o Governo precisa de demonstrar que há movimento, que não está estagnado”.
Ou seja: além de um ano de greves e protestos, prevê-se um ano de muita gestão. De passa-culpas. Passada a batalha de Belém, a guerra entre São Bento e os professores passa a ser sobre a eficácia da mensagem: ninguém quer carregar o peso da intransigência às costas, sobretudo num assunto cujos efeitos afetam milhares de pais e alunos.