O acordo firmado esta terça-feira entre um dos sindicatos médicos e o Ministério da Saúde deixou um grande ponto de interrogação no futuro do protesto de recusa a mais horas extras, que está a afetar, há várias semanas, os serviços de urgência hospitalares. Contudo, o mais provável é que as limitações nos hospitais se mantenham e até possam piorar em dezembro, diz ao Observador, uma das porta-vozes do movimento Médicos em Luta, que apela aos colegas para que não retirem as minutas de escusa a mais trabalho suplementar. “Pelo o que percebe, a grande maioria dos médicos quer continuar a luta tal como está e portanto vai continuar indisponível para fazer mais horas extraordinárias”, sublinha Helena Terleira.
Os médicos em Luta têm em curso um inquérito no grupo de Telegram deste movimento (que junta um total de 7 mil profissionais), onde os médicos são questionados quanto à possibilidade de virem a retirar as minutas de escusas a mais horas extra, em resultado do acordo alcançado entre a tutela e o Sindicato Independente dos Médicos (SIM). Ao final da tarde desta quarta-feira, a grande maioria dos médicos que respondeu garantia que ia manter o protesto. De 502 respostas recebidas, apenas cerca de 2% dos médicos afirmaram ter intenção de voltar a fazer horas extraordinárias.
Situação nos hospitais vai agravar-se em dezembro, estimam os Médicos em Luta
A confirmar-se a manutenção do protesto, o mês de dezembro poderá ser ainda pior que novembro, aquele que o diretor-executivo do SNS previu que fosse o pior mês de sempre do SNS. “A situação vai complicar-se em dezembro”, antevê Helena Terleira. Segundo as contas do movimento Médicos em Luta, cerca de 2900 médicos entregaram minutas de escusas a mais horas extra, embora nem todas se tenham ainda efetivado. Cerca de 25% das minutas (mais de 700) entram em vigor em dezembro, o que poderá fazer aumentar as graves carências que já se sentem nas escalas dos hospitais.
Questionada sobre se faz sentido os médicos manterem o protesto quando dentro de dias o governo será formalmente demitido pelo Presidente da República, deixando, assim, de haver um interlocutor para futuras negociações, a médica devolve a questão. “Faz sentido recuarmos quando a tutela não dá sinais de boa vontade? Estamos a cumprir as nossas obrigações (150 horas anuais), mais do que isso não somos obrigados”, sublinha, ressalvando, no entanto, que cada médico é livre de decidir terminar o protesto se assim o entender. “Em Viana do Castelo, os serviços de Medicina Interna e Cirurgia vão manter recusas, ou seja vamos continuar sem urgência aos fins de semana até ao final do ano. Não me parece que vá haver modificações significativas em relação em novembro no resto do país”, estima a médica.
Em novembro, agravaram-se consideravelmente os constrangimentos nos hospitais do SNS em resultado da recusa dos médicos em fazerem mais do que as 150 horas extra previstas na lei. No início do mês, entraram em vigor centenas de escusas na região de Lisboa e Vale do Tejo (a juntar a outras centenas que já se tinham efetivado em outubro nas regiões norte e centro), o que tornou impossível, em muitos casos, preencher escalas de serviços de urgência que, mesmo antes do protesto, já estavam deficitárias.
Os serviços de urgência de Cirurgia, Obstetrícia, Pediatria e Ortopedia são os mais afetados, com muitos hospitais a apresentarem uma resposta limitada e outros a encerrarem mesmo estas valências na urgência de forma permanente devido à indisponibilidade dos médicos para realizar mais trabalho suplementar.
Protesto dos médicos tem afetado hospitais de norte a sul
Hospitais da periferia da capital, como o Amadora-Sintra, o Beatriz Ângelo (em Loures) e o Hospital Garcia de Orta (em Almada) e o Hospital de São Bernardo (em Setúbal) são os mais afetados na região de Lisboa. A norte, hospitais como o de Viana do Castelo, o Hospital de Penafiel, o Hospital de Braga, o Hospital de Barcelos e o Hospital de Chaves enfrentam grandes constrangimentos. Na região Centro, o Hospital da Guarda, o Hospital de Viseu e o Hospital de Leiria têm vários serviços condicionados. Também no Alentejo, o Hospital de Évora, que até meio de novembro não tinha grandes limitações, tem vindo a anunciar vários encerramentos. Neste momento, há 37 hospitais com urgências condicionadas.
Para além das limitações nestes serviços, o protesto dos médicos hospitalares está também a ter impacto nos Cuidados Intensivos (com várias unidades hospitalares a decidirem diminuir o número de camas nestas unidades devido às escusas dos intensivistas para realizar mais horas extra) e também na atividade programada: para manter as urgências a funcionar (ainda que de forma limitada) alguns hospitais estão a desviar médicos para esses serviços, prejudicando as cirurgias e consultas já agendadas.
Embora a entrega e a manutenção das minutas de escusas seja uma decisão individual, o movimento Médicos em Luta já tinha avisado que só iria apelar à desmobilização do protesto caso as reivindicações dos dois sindicatos fossem atendidas e apenas no caso de ser assinado um acordo alargado com a Federação Nacional dos Médicos e com o Sindicato Independente dos Médicos. O entendimento limitado alcançado esta terça-feira, apenas com o SIM, na última ronda negocial, deixou de fora duas das três exigências centrais dos sindicatos (a redução do horário de trabalho semanal para as 35 horas e a reposição do horário da urgência para as 12 horas semanais), e foca-se apenas na questão salarial — ainda assim, o aumento geral é menos de metade dos 30% que os sindicatos exigiam.
Acordo não é “ideal” mas é “luz ao fundo do túnel”, defende o SIM
Contudo, o sindicato liderado por Jorge Roque da Cunha decidiu-se pelo entendimento à 25ª hora, e com um governo em fim de ciclo, de modo a evitar um desfecho que se avizinhava: a aplicação aos médicos do aumento de 3% da Função Pública. “Entendemos que faria sentido mitigar as perdas assinando este acordo intercalar que, não sendo o ideal, permite que os médicos recuperem algum do poder de compra que perderam. Não vai resolver os problemas do SNS mas é uma luz ao fundo do túnel“, diz ao Observador o secretário-geral do SIM, Jorge Roque da Cunha, salientando que “nunca como agora houve um aumento tão substancial do salário dos médicos”.
O acordo para a revisão da grelha salarial dos médicos do SNS prevê um aumento de 14,6% para os assistentes hospitalares com horário de 40 horas, de 12,9% para os assistentes graduados e de 10,9% para os assistentes graduados seniores.
O acordo assinado esta terça-feira levou a uma cisão no seio dos sindicatos que, nas últimas reuniões com o Manuel Pizarro, tinham apresentado uma proposta conjunta. Contudo, ainda da crise política que levou à queda do governo e à marcação de eleições antecipadas, já se antevia este desfecho tal era a diferença de posições entre o Ministério e os sindicatos em relação à dimensão do aumento salarial e tendo em conta o historial de acordos assinados anteriormente, que deixaram sempre de fora a FNAM.
Cisão entre sindicatos. FNAM diz que acordo é “mau”, SIM critica “hipocrisia”
“Só lá para setembro teremos condições para voltar às negociações”, diz Roque da Cunha, sublinhando que durante esse período todos os médicos terão um aumento do salário base mensal superior a 400 euros. No entanto, tanto para a FNAM como para o movimento Médicos em Luta, o acordo alcançado é mau. “É um mau acordo para os médicos e para o SNS. O que vai acontecer é que os médicos vão passar a receber apenas mais 200 euros líquidos”, diz Joana Bordalo e Sá ao Observador.
“A percentagem de médicos que concorda com o acordo é baixíssima. A maior parte dos médicos considera que foi um mau acordo”, diz Helena Terleira, criticando a ausência de avanços em matérias essenciais como a redução do horário de trabalho e do tempo de serviço semanal na urgência. Para além disso, realça, o aumento acordado (que varia entre os 10,9% e os 14,6% para os médicos em 40 horas) é “claramente insuficiente”.
“Faltou salário neste acordo, porque as reivindicações eram de reposição do salário ao tempo da troika (um aumento de cerca de 30%)”, diz a médica do Hospital de Viana do Castelo, acrescentando que, por exemplo, há médicos internos (que representam cerca de um terço da força de trabalho do SNS) que vão ter aumentos de apenas 6%, longe dos quase 15% que têm sido anunciados. “A grande maioria não chega aos 15% de aumento“, lembra.
“Nem o Ministério da Saúde nem o SIM perceberam que o principal motivo da mobilização foi a intenção de salvar o SNS. E para o conseguir é preciso reter médicos e para isso é preciso que as suas condições de trabalho sejam atrativas”, realça a médica, deixando farpas ao SIM. “Quantos filiados perdeu o SIM de ontem para hoje? Um sindicato deve representar os seus filiados“, diz. Jorge Roque da Cunha, contrapõe que “provavelmente irá acontecer o inverso”, ou seja, um aumento do número de médicos filiados no sindicato.
Em resposta às críticas da FNAM, que ecoavam deste a noite de terça-feira (quando aquele sindicato abandonou a reunião com o ministro da Saúde) Roque criticou, em declarações à Rádio Observador, “aqueles que apelidam o acordo de fraquinho e depois querem usufruir de algo de que discordam em absoluto”. “É de uma hipocrisia lamentável”, disse o responsável.
Segundo o responsável, o acordo não se aplica aos médicos com contrato individual de trabalho (CIT) não filiados no SIM. Ora, a larga maioria dos médicos hospitalares trabalham em regime de CIT, pelo que milhares podem ficar fora do acordo, a menos que o governo intervenha e estenda o acordo a todos os médicos do SNS. O Observador sabe que o Ministério da Saúde está ainda a avaliar a publicação de uma portaria de extensão que permitiria abranger todos os médicos. Para já, não existe ainda uma decisão tomada no ministério de Manuel Pizarro.