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Começou “a segunda fase da guerra”. Foi assim que o primeiro-ministro israelita, Benjamin Netanyahu, resumiu os acontecimentos de há cerca de uma semana, quando tanques e soldados das Forças de Defesa de Israel (IDF) entraram na Faixa de Gaza, de onde ainda não saíram — nem deverão sair nas próximas semanas ou até meses.
Para além de continuarem os ataques aéreos, desde a noite de sexta-feira da semana passada que os tanques entraram por dois pontos: pela cidade de Beith Hanoun, no norte, e por Bureij, no centro da Faixa de Gaza. A principal estrada que atravessa toda a faixa de território de apenas 45 quilómetros de comprimento foi cortada pelos blindados de Israel.
A meio da semana, já era possível ter uma noção do avanço. Imagens de satélite publicadas pela organização Planet Labs e analisadas pelo Financial Times traçavam um relato claro: dezenas de tanques estavam já dentro do território, a pelo menos cinco quilómetros de profundidade, a maioria em sentido norte-sul. Esta sexta-feira, Telavive confirmava que as suas tropas estavam já à entrada da cidade de Gaza. Pelo meio, os bombardeamentos aéreos intensos continuavam, como aquele que atingiu o campo de refugiados de Jabalia e que terá matado dezenas de pessoas.
Raphael Cohen, diretor do programa de estratégia do think tank militar RAND, não tem dúvidas: “A incursão por terra começou”, diz ao Observador a partir dos Estados Unidos. “Se olharmos para o esquema israelita, aquilo que eles estão a tentar fazer é isolar a cidade de Gaza e a metade norte da Faixa.”
O investigador israelita Kobi Michael confirma essa mesma estratégia: “Agora estamos concentrados na cidade de Gaza e nas pequenas cidades e campos de refugiados em torno dela”, afirma o analista de estratégia do Instituto de Estudos de Segurança Nacional em Telavive. “A certa altura vamos chegar a todas as cidades, mas esta é a fase mais crucial. Quando o norte colapsar, tudo o resto vai ser mais fácil.” Ao Observador, o investigador evita falar numa invasão, mas confirma que esta é a fase da “incursão por terra”.
A vantagem para Israel de avançar “às escuras”
O analista Cohen, porém, diz que se trata tudo de semântica e que, na prática, a tão prometida invasão já começou de facto.
“Israel tem sido frontal a admitir que está a realizar combates no terreno e que já sofreu baixas. Também anunciou que neutralizou dezenas de militantes do Hamas nesses combates no terreno. Não acho que seja preciso dizer que se está a fazer uma invasão para provar que ela já está a acontecer”, nota.
A ambiguidade, porém, foi recorrente ao longo dos últimos dias nas declarações oficiais de responsáveis israelitas. Evitando usar o termo “invasão”, foram precisas várias horas depois da entrada dos tanques e soldados para que Telavive confirmasse que estava dentro de Gaza. O New York Times nota que, durante as primeiras horas de sexta-feira da semana passada, os porta-vozes militares deixaram de atender os telefones. Foram precisas três horas para que as IDF confirmassem que estavam a “expandir a atividade no terreno” e só ao fim de seis garantiram que estavam dentro da Faixa.
“Está tudo a acontecer às escuras”, resumiu ao mesmo jornal o especialista de guerra Andreas Krieg, da King’s College. “Há só um pequeno grupo de pessoas que sabe exatamente o que está a acontecer, até dentro de Israel.”
Os objetivos desse secretismo eram claros: deixar o Hamas sem ter a certeza dos planos militares de Israel. “Esta invasão não está a cumprir os requisitos de uma ‘nova invasão da Normandia’ em termos mediáticos”, confirmava ao site Vox James Jeffrey, antigo responsável norte-americano da missão de combate ao Estado Islâmico. Mas essa é uma estratégia intencional, explicava, não apenas para apanhar de surpresa o Hamas, mas também o aliado Irão: “É mais difícil o Irão assim dizer ‘Este é o momento’ [em que começou]”, explicava.
Raphael Cohen também reforça que Israel “não tem interesse em divulgar isso”. “Não têm qualquer vantagem” em assumir que a invasão “já começou”, diz o especialista militar. Mas isso não significa que ela não esteja, de facto, já a decorrer. “A ação no terreno fala por si”, acrescenta o norte-americano.
O avanço lento em direção ao “coração” de Gaza: “Eles vão ter de entrar”
E a ação no terreno começa a tornar-se definida. Ao longo desta semana, as forças militares israelitas avançaram para cortar a Faixa ao meio e tentar isolar o norte. Os bairros de Karama e Zeitoun, por exemplo, a norte da cidade de Gaza, foram zonas de combate intenso, que combinaram ataques aéreos com artilharia no terreno e até apoio com disparos dos navios da Marinha israelita a partir do mar Mediterrâneo.
Nas redes sociais, um vídeo mostra um soldado a colocar uma bandeira de Israel no topo de um hotel. Uma voz diz que o batalhão já está “na praia” e “no coração” de Gaza — a costa é o ponto mais longe da fronteira de Gaza com Israel, embora a Faixa tenha apenas 10 quilómetros de largura.
Blindados e escavadoras vão avançando em direção à cidade principal do território, destruindo os destroços que restam dos bombardeamentos. Cohen não tem dúvidas que o primeiro objetivo neste momento é a cidade de Gaza: “Esse é o centro de gravidade do Hamas”, diz, com base na informação obtida nos interrogatórios a combatentes da organização e comunicações intercetadas.
O ritmo é lento — cerca de 100 metros de cada vez, segundo o Washington Post — e não configura o blitzkrieg que alguns esperavam. Mas isso explica-se pela complexidade do combate numa zona urbana e densamente povoada. “Aquilo que estamos a assistir é um ‘Recuo de Reconhecimento’”, resumiu ao Politico o responsável do Pentágono Mick Mulroy. “É uma tática para grandes unidades, na qual elementos mais pequenos localizam e exploram as fraquezas do inimigo. Quando estas são encontradas, a formação principal avança para um ataque.”
É por isso que Raphael Cohen não tem dúvidas de que o Exército isaelita vai acabar por entrar na capital de Gaza. “Se o objetivo é destruir o Hamas, eles vão ter de entrar. Um cerco não seria suficiente para destruir as redes e a infraestrutura deles. Para destruir os túneis e o armamento.”
A longo prazo, mesmo com a cidade de Gaza dominada, a total eliminação do Hamas só poderá ocorrer se as IDF varrerem também o sul, explica. “Mas isso é mais difícil”, admite o especialista. O israelita Kobi Michael confirma, mas diz não ter dúvidas de que, daqui a algumas semanas, será possível avançar para sul, depois de os israelitas terem dominado o norte. “Aí podemos seguir para cumprir o resto da missão, que é desmantelar a organização. Isso não significa eliminar todos os rockets e todos os terroristas até ao último, mas significa conseguir paralizar o Hamas.”
Este sábado, os militares de Telavive anunciaram que estão a fazer raides mais controlados no sul do território para preparar a zona para “as fases futuras da guerra”, numa indicação de que esta poderá ir além do norte da Faixa de Gaza.
Kobi Michael explica o avanço lento com a necessidade de garantir uma operação eficaz na cidade de Gaza. “É necessário projetar uma imagem de vitória convincente ali, porque isso projeta logo uma imagem de força em todas as outras frentes”, afirma.
Guerra continuará durante semanas ou meses. Risco de alastrar ao norte de Israel existe
Os especialistas, contudo, não têm dúvidas de que só o controlo da cidade de Gaza deverá durar várias semanas ou até meses. “A geografia da cidade faz com que este seja um processo muito difícil”, nota Raphael Cohen. “Para evacuar todos os edifícios é preciso entrar em cada um deles. Para destruir os túneis também é preciso tempo. Isto vai demorar.”
A essa demora soma-se o facto de Israel não estar a avançar com a força total de soldados de que dispõe: os cerca de 300 mil anunciados, com a chegada dos reservistas. Isto porque Telavive continua a temer que se possam abrir outras frentes de guerra além de Gaza, em particular no norte na fronteira com o Líbano, de onde o Hezbollah tem disparado vários rockets.
“Vimos aquilo de que o Hamas é capaz. Agora imaginem aquilo de que o Hezbollah é capaz”, alerta Kobi Michael, referindo-se à capacidade militar de um dos grupos armados mais bem preparados do mundo. “Agora estamos concentrados no sul [de Israel], mas se o Hezbollah aumentar as provocações, vamos ter de nos virar para norte também.”
Independentemente do risco de escalada do conflito, uma coisa é certa: a invasão a Gaza continua a provocar um número muito elevado de mortes, muitos deles civis palestinianos (quase dez mil segundo dados do Ministério da Saúde do Hamas), mas também soldados israelitas. Nada que, para já, faça Israel recuar, apesar dos pedidos insistentes de cessar-fogo de alguns Estados e até o desejo norte-americano de que se apliquem “pausas humanitárias”.
“Não há almoços grátis. Esta é uma guerra, não é uma operação em Gaza como outras que tivemos no passado”, afirma Kobi Michael. “E numa guerra há baixas. A sociedade israelita está consciente disso e continua muito determinada.”
A diferença face a outras operações militares em Gaza no passado é visível, até mesmo em comparação com a última vez que Israel entrou na Faixa de Gaza, em 2014. Na altura, em seis semanas, morreram mais de duas mil pessoas, a larga maioria civis. Desta vez, o número já é quatro vezes superior.