Num mundo cada vez mais global, em que todos temos um lugar de destaque nas redes sociais, André Carrilho (n.1974), um dos mais conceituados ilustradores e cartoonistas nacionais com nome assente no Diário de Notícias e com carreira forte lá fora nas mais prestigiadas publicações internacionais, do New York Times à Vanity Fair, da New Yorker ao Independent on Sunday, fala sobre liberdade de expressão e censura. Afinal o que mudou com a chegada em peso das tecnologias? A comunicação é mesmo mais fácil entre todos? E como contornar os discursos de ódio? Onde ficam os fundamentalismos religiosos, políticos ou identitários?
No próximo ano comemoram-se os 50 anos do 25 de Abril. A liberdade de expressão, uma das conquistas da Revolução, tem maturidade?
Acho que em Portugal a liberdade de expressão existe, não estamos muito longe dessa realidade. Existe liberdade de imprensa. Eu, como cartoonista, nunca fui censurado.
Nem nas redações se sentiu pressionado por um editor, algum chefe de redação?
Não. Recentemente, houve um caso com um cartoon do Spam Cartoon [um coletivo de cartoonistas que fundou] apresentado na RTP e nunca ouvimos uma chamada da atenção da equipa editorial. Lembro-me de uma vez ter perguntado previamente, o que não costumo fazer, se se poderia tocar em determinado assunto e disseram-me que sim. Claro que há sempre uma liberdade condicionada por aquilo que é razoável dentro de um meio de comunicação social. Não faço cartoons pornográficos! Há sempre uma linha que sabemos que não devemos ultrapassar.
Isso tem mais a ver com bom senso, ou não?
Sim. Mas esse bom-senso também vai evoluindo. Temos que ter o nariz para a atualidade e para os ares dos tempos.
É essa a função do cartoonista?
Sim. Mas, ainda em relação à liberdade de expressão na imprensa, acho que como ainda só passaram 50 anos do 25 de Abril, os jornalistas ainda estão muito atentos, ainda se lembram do que é. Sinto que aqui em Portugal, os jornalistas se lembram e sabem muito bem o que é controlar um cartoon, controlar uma opinião.
Lá fora é muito diferente? E estou a lembra-me do Charlie Hebdo, talvez o jornal mais atacado pela sua opinião…
Os franceses têm várias publicações e alguns autores que testam constantemente o limite da liberdade de expressão. E, nesse aspeto, são uma referência para nós. O Charlie Hebdo sempre foi uma referência. E também nunca ninguém acreditou que o Charlie Hebdo fosse um alvo tão apetecível, a tiragem do jornal não era muito significativa, o jornal não tinha assim tanta visibilidade. Há movimentos extremistas e fundamentalistas de vários quadrantes que usam a maior ou menor noção de liberdade de expressão para se vitimizarem e para dessa maneira conseguirem seguidores e arregimentar tropas à sua volta.
O que é que move alguém a censurar algo? A crítica de que se sente alvo, algum tipo de medo?
Acho que, hoje em dia, o que acontece mais, ou, pelo menos, o que já vi mais, tem a ver com uma procura de poder. Ao mesmo tempo, há movimentos que perceberam que ao se vitimizarem, conseguem ganhar visibilidade, passar mais gente para a sua causa e dizer que têm razão. Por muito absurdo que seja, se um qualquer fundamentalista acha que um desenho o está a atacar, é mais fácil a seguir falar com as pessoas que são o alvo dele.
Isso acontece sobretudo a nível da religião, e hoje estamos a assistir à guerra entre Israel e o Hamas… São questões sempre muito prementes. Mas não há só fundamentalistas religiosos.
Não. Há muito fundamentalismo na política.
Há uns meses, invadiram uma livraria em Lisboa quando um livro infantil de linguagem inclusiva estava a ser lançado, por exemplo.
Aí estão basicamente a dizer que um livro está a vitimizar crianças. E só a partir do momento em que se dá ao livro a posição ingrata de vitimizar crianças, o que não acho possível, é que se pode legitimar o outro discurso, aquele que as pessoas que defendem esse tipo de censura praticam. A pedofilia é hoje um tema forte usado pelos “censores” precisamente por isso, é fácil arregimentar pessoas contra a pedofilia. Toda a gente é contra a pedofilia, portanto, basta chamar alguém de pedófilo, que vem logo alguém atrás para a causa.
São temas quentes a que um cartoonista tem que prestar mais atenção se tiver de os tratar?
Sim. Mas, o grande problema hoje em dia está nas redes sociais e na mecânica que as redes sociais imprimem a estes movimentos todos e à nossa própria reação a eles. As redes sociais são uma máquina de monotorização do ultraje e da indignação. O algoritmo que é desenvolvido nas redes sociais privilegia a interação e a interação aumenta, está provado, com coisas que nos indignam. Portanto, naturalmente, o algoritmo privilegia a indignação. O motor é essa mesma indignação. O outro motor é a descontextualização. O humor, o cartoon, vive sempre de um contexto. Se conhecemos o sujeito dessa tentativa de humor, dessa piada, conseguimos sempre enquadrá-lo tendo em conta o objetivo que tinha quando foi criado. Se ele for descontextualizado, tirando um título, ou uma chamada de um artigo em que ele está, uma coisa que é muito comum e fácil de fazer, ou mesmo distorcendo propositadamente o sentido da obra, é fácil que as pessoas fiquem indignadas.
Quando se faz uma chamada de atenção para qualquer tema através de um cartoon, procura-se que as pessoas vejam, ou através do ridículo ou de qualquer característica mais vincada, o que se está a passar e consigam posicionar-se melhor perante o assunto ou o facto em si, ou não?
Sim, mas normalmente fazem-no tendo em conta casos específicos. No caso do Spam Cartoon de que falava, uma crítica em relação à Polícia Francesa [que matou a tiro um adolescente que não obedeceu à ordem de parar a viatura que conduzia]. Tratava-se claramente de um assunto de atualidade que se passava em França e foi descontextualizado com um propósito ideológico para dizer que era sobre a PSP. Não quer dizer que não se pudesse fazer uma coisa sobre a PSP, o que fiz logo na semana seguinte para provar que era possível, no entanto, quando se apresenta um cartoon num contexto diferente, onde se diz que é sobre a Polícia de Segurança Púbica, quem não tenha visto o cartoon no contexto original, num contexto de informação noticiosa internacional, vai acreditar que é mesmo assim. E a verdade é que não conseguimos estar a verificar todas as informações que são veiculadas nas redes sociais. Portanto, é muito fácil descontextualizar e descontextualizar com o propósito de censurar.
A intolerância também é maior?
Estamos os dois a falar frente a frente. Se estivéssemos a ter esta conversa no WhatsApp perdia-se imensa informação. Acho que as redes sociais se transformaram numa estrada sobrelotada e quando só vemos carros, temos reações que nunca teríamos se em vez de veículos nos cruzássemos com uma pessoa na rua ou num passeio. Estamos constantemente nisso. É uma sociedade construída com base em comunicação cheia de equívocos. Não conhecemos quem está à nossa frente e a verdadeira comunicação, aquela que foi desenvolvida pelo ser humano, perde-se. A nossa comunicação é de olhar nos olhos. A nossa comunicação não é só de palavras, esse é que é o engano das pessoas. Posso dizer a mesma frase de quinhentas mil maneiras, a rir, a chorar, e isso dá muito mais informação ao outro que hoje em dia não é dada. É por isso que deixei de ter discussões nas redes sociais. Só o ambiente na redes sociais é aflitivo, quanto mais aquela espécie de discussão pública, e o facto de ser pública, sabe-se, altera logo a nossa disposição. Parece que nos estamos a defender de uma perceção pública que queremos que as pessoas tenham de nós próprios.
Mas não existe também uma necessidade maior de ser uma espécie de entidade pública, um acontecimento? somos todos alguma coisa…
Todos fazemos uma curadoria do que somos, fazemos, vemos.
Podemos criar uma imagem muito diferente daquela que é a real. Vivemos muito nessa ficção.
E nunca temos vidas tristes. Ou temos vidas extraordinárias, muito boas, ou temos vidas em que alguém nos fez algum mal. Sempre à procura do “like”. Se alguma coisa de mal nos aconteceu, foi porque somos umas vítimas e pedimos ”por favor, olhem para mim, porque eu sou uma vítima!” Às vezes é verdade, mas é um mecanismo que, ao entrar constantemente na comunicação, distorce as coisas todas.
Há também um discurso de ódio maior?
Não sei. Teria que ver estudos sobre isso.
Parece que estamos sempre a tratar com minorias, a valorizar ou não minorias. Umas aparentam estar contra as outras e não têm que estar. Como é que se pode falar delas e passar uma outra mensagem? Como é que se constrói uma sociedade mais equilibrada?
Acho que a afirmação de uma identidade, se ela foi negada, eventualmente tem que ser mesmo afirmada. Ponho em causa, às vezes, e já vi outros ativistas identitários a pôr isso em causa, que possa ser assim. Acho que teremos que regressar a uma base de acordo comum sobre direitos que são comuns a todos. Mas tenho um ponto de vista muito particular. Eu próprio não sei qual é a minha identidade. O meu pai era moçambicano negro, a minha mãe é branca, fui educado como um branco mas, se for à América, sou um latino, e tenho raízes tanto indianas como africanas e até judaicas e também tenho muçulmanos na família. Os portugueses também são uma salganhada, somos todos uns rafeiros. Mas, também não nego que se deva dar visibilidade a quem não a tem, e o meu trabalho é sempre baseado nisso.
Quais são os temas que mais lhe interessam, ou porque é que escolhe um em detrimento de outro?
É sempre uma confluência entre as minhas opções pessoais e o que se está a passar no mundo, sendo que agora tenho tendência a ir para um trabalho mais pessoal. Desde que fui pai, comecei a fazer livros infantis. Mas o primeiro livro infantil que fiz falava das tecnologias, que é um assunto que me preocupa. Sabia que tinha que falar das tecnologias aos meus filhos e isso era uma preocupação que me vinha desde os cartoons, nomeadamente o que as tecnologias estão a fazer à sociedade e qual é o seu discurso envolvente. Gosto de conjugar tudo isto com o que vai aparecendo e com aquilo que é o meu próprio pensamento.
Ilustrou o 1984, do George Orwell, que ganhou agora o Prémio Livro do Ano da Bertrand. Foi esse livro que nos avisou do que ia acontecer connosco. Agora estamos cá metidos e não sabemos para onde nos virar?
Pois não. O 1984 é altamente pertinente para os dias de hoje. Os ecrãs estão espalhados por todo o lado, estão a vigiar-nos por todo o lado. Só que agora também passámos a jogar com isso e, na altura, o jogo era só num sentido.
Os públicos diferem muito de publicação para publicação cá dentro e lá fora, neste humor especifico sobre a atualidade?
Sim, as pessoas regem de formas muito diferentes. Nos Estados Unidos, por exemplo, é cada vez mais difícil fazer cartoon independente porque as várias publicações têm cada vez mais receio das redes sociais e de como é que a viralidade de um desenho de opinião pode impactar negativamente uma publicação.
Serão eles mais suscetíveis do que nós? Até o quadro A Origem do Mundo, do Courbet, por exemplo, foi censurado… Tem a ver com a educação, com a cultura?
Lá está. Temos só 50 anos de 25 de Abril, eles são uma sociedade baseada em princípios mais puritanos. Sinto que em Inglaterra, no reino Unido, essa política de costumes já não é tão marcada. Lá, fui uma vez contratado pelo New York Times para fazer um desenho sobre o Trump e tinha indicação expressa para não desenhar o Trump. Como o New York Times era bastante ativo a denunciar as políticas do Trump e o seu comportamento, não queriam de alguma maneira abrir o flanco a críticas tendo uma caricatura do Trump. O que sempre me pareceu muito estranho.
Protege-se de alguma maneira contra este tipo de fundamentalismos quando pensa nalgum tema mais óbvio?
Cartoons de opinião só faço para Portugal. Tudo o resto são ilustrações que me são pedidas, são trabalhos comissionados. E aí acaba por haver uma maior reverência à vontade do cliente. Mais. Ou menos. E há clientes para os quais não trabalho.
Com o cartoon recentemente alvo de uma queixa-crime da PSP, de que já falámos, e da autoria de Cristina Sampaio, estavam à espera de uma crítica tão cerrada?
Não. E na altura até nos acusaram de termos algum medo de sofrer represálias por vincarmos tanto a ideia de que tinha a ver com a realidade francesa, mas não foi o medo que nos moveu. Quando queremos dizer uma coisa convém que sejamos claros. Quando nos descontextualizaram o desenho, ele ficou com uma mensagem que não queríamos que tivesse. Fomos, de facto, apanhados de surpresa por acharem que estávamos a querer dizer outra coisa.
Mesmo assim, não sente pressão nenhuma aqui em Portugal?
Sinto a pressão de fazer um cartoon para uma publicação de referência [o Diário de Notícias] e que vai ser bastante difundido. Quando comecei a trabalhar, um cartoon era visto durante essa semana e depois era um bocado esquecido, exceto os casos de alguns cartoons do António [no Expresso], nomeadamente alguns casos com a Igreja Católica. Mas, dantes, havia o direito ao esquecimento. Agora deixámos de o ter. Tudo o que fazemos em qualquer altura da nossa vida é escrutinado. E, isso sim, causa alguma cautela a fazer as coisas. Mas não diria que me impede de fazer coisas, pode é fazer com que as faça de uma maneira um bocadinho diferente.
Como é que olha para a imprensa em Portugal? Não representa um problema para si que a leitura que fazem dos seus desenhos esteja condicionada ao facto de se poder saber pouco sobre o assunto que trata, se quem vê o cartoon não está informado? É mais difícil chegar às pessoas?
Não sei se o cartoon é difícil de chegar às pessoas, pode é ser difícil de ser interpretado. Eu vejo o cartoon não só como uma atividade de humor, mas também como uma atividade de consciencialização. E, nesse aspeto, acho que ao fazer um cartoon sobre um assunto, mesmo que as pessoas não estejam muito informadas sobre ele, e às vezes não estão, escolho-o mesmo por isso, faz com que elas sejam obrigadas a pensar nele e a informarem-se melhor. Quanto ao facto da informação ser verdade ou mentira, acho que a minha geração concluiu que não chegámos longe. E a minha era uma geração de otimismo em relação às tecnologias, de otimismo em relação à internet, aquilo que nos ia finalmente fazer ter acesso a todo o conhecimento mundial, que nos permitiria acabar com o racismo, acabar com os preconceitos e que ia ser fantástico. Não aconteceu nada do que previmos. O que aconteceu foi que, num mundo de informação infinita, procuramos aquilo que confirma as nossas crenças. Em vez de procurarmos pôr-nos em causa, facilmente encontramos coisas que confirmam aquilo que já sabemos. E mantemo-nos em redutos fechados de opinião.
Daí desconfiarmos sempre de todos os que pensam diferente de nós…
Sim. Até porque o próprio algoritmo faz isso. O algoritmo sabe que clicamos mais numa coisa que confirma algo que sabemos, do que em algo que nos põe em causa. Por alguma razão não temos um feed cronológico nas redes sociais. Temos um feed curado pelo algoritmo para nós. Para ter um feed cronológico, uma sucessão dos posts das pessoas que seguimos, é muito difícil. Essa opção é-nos dificultada de propósito. Por norma, o feed dá-nos sugestões à nossa medida, ou seja, aquilo que ele quer que nós queiramos, ou que pensa que queremos. É uma opção que surge por defeito e não se pode desligar e sempre que se volta a ligar a aplicação terá de ser alterada manualmente. Caso contrário, teremos sempre “Sugestões para si”.
É um pouco aquela teoria da conspiração: “Eles andam aí a dizer como é que devemos fazer”. Um pouco à maneira do 1984…
E isso é uma questão interessante para a liberdade de expressão e para a liberdade de pensamento. Temos mais liberdade do que numa ditadura, mas, por outro lado, estão sempre a confirmar-nos qualquer opinião que tenhamos. Dizem-nos quando aparecem dados novos, se aparecem dados que a contrariam, e, se há uma evolução qualquer, é mais difícil mudarmos de opinião.
Também se valoriza mais a opinião, em geral, do que os dados, tão necessários para a construir. O trabalho jornalístico, puro e duro, é cada vez mais negligenciado.
O trabalho jornalístico, puro e duro, é caro. E dá mais trabalho. Não sei se o que origina esse facto é os jornais não terem dinheiro para pagar investigação e, por isso, privilegiarem opinião. E passamos a ter jornais feitos de colunistas. Ou se são as pessoas que só leem as colunas e os jornais passam a pôr mais opinião. Mas se perguntarmos às pessoas, elas respondem que querem saber a verdade. Intuitivamente, provavelmente não querem. É complexo. A idade também nos diz que a realidade objetiva é uma coisa que se calhar não existe. Andamos todos um bocado a navegar. Opinar é mais fácil, pois é. Mas, estes movimentos todos de ultraje e de indignação também não implicam esforço nenhum. Ter uma reação negativa, insultar alguém não requer esforço nenhum. É só carregar numa tecla… Outra coisa que também não envolve esforço nenhum e que podia ser adotada é dizer assim: “Olha, se calhar tens razão e eu não sei assim tanto sobre o assunto”. Que é o que a maior parte das pessoas devia dizer, porque ninguém é especialista em política internacional, ninguém é especialista em economia…
E em saúde pública, ao mesmo tempo.
Exato! Há um fenómeno extremamente bizarro que são os vídeos de opinião. As pessoas até querem ter pistas para saber o que hão de achar em relação ao que estão a ver…
Manipulação?
Do algoritmo e de quem sabe como é que ele funciona e depois faz conteúdos a explorar as fragilidades de todos.
[Matéria de Risco é uma rubrica de entrevistas com personalidades e agentes culturais sobre arte, sociedade e atualidade]