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Quando o Papa Francisco chegar a Lisboa, André estará na fila da frente. Foi escolhido para representar a sua paróquia, São Salvador, em Ílhavo, e será um entre milhares de jovens à espera de um sinal: “Que ele fale das pessoas como nós”. Vai fazer quatro anos que “nasceu” oficialmente este rapaz transgénero, admirador incondicional do Papa. Mas são muitos os que, vivendo nas franjas da sociedade — e sobretudo da religião —, estão ávidos de ver Francisco levantar na JMJ a bandeira da diversidade, incentivando a Igreja Católica a aceitá-los. Porque, apesar dos progressos, em Portugal esse ainda é um caminho sinuoso. “Se eu chegar ao pé dele e lhe disser, tenho a certeza de que ele me vai receber, como a qualquer outra pessoa”.
Não é certo que consiga chegar junto do Papa, mas a partir desta segunda-feira e até dia 6 de agosto tudo fará por isso. Com ele vai também a namorada. “Espero que esta não seja a única Jornada a que vou, mas quero que seja a mais especial. Por ser a primeira, e por ser cá. E também porque tenho muito medo que nas próximas já não seja o Papa Francisco”. Em casa coleciona figuras com a imagem do pontífice e mandou fazer uma camisola alusiva para levar à JMJ, que há-de destacar-se no grupo de 160 jovens que integra, o segundo maior da Diocese de Aveiro.
André Simões, 22 anos, é padeiro (com formação psicossocial) e iniciou o processo de transição de género poucos meses antes do crisma, o penúltimo dos sacramentos que faz questão de receber da Igreja, mesmo que agora os tenha de repetir. Porque também o batismo, a primeira comunhão e a profissão de fé foram feitos por Ana Sofia. Que agora é André. No longo caminho para a mudança, ainda lhe faltam várias cirurgias. “Talvez umas 10”, conta ao Observador, a poucos dias de rumar a Lisboa. Mesmo que longa se torne a espera, está preparado. Agarrado à fé, foi dentro da Igreja que começou por manifestar as dúvidas.
“Quando me confessei ao padre, antes de fazer o crisma, e lhe contei, ele disse-me que eu estava a errar. Eu sabia que não. Há muito que sentia que havia alguma coisa estranha, mas por falta de conhecimento não sabia o que era. Sentia-se atraído por raparigas, mas não era só isso. Percebi que não me sentia bem no corpo em que estava e não me identificava, de todo, com o sexo que me tinha sido atribuído à nascença”. Quase como se fora um engano de Deus, que era preciso corrigir. Com os pais, o processo correu razoavelmente bem. Com a comunidade, teve dias. O processo decorreu sempre sem que André se tenha afastado das responsabilidades na paróquia de Ílhavo, onde reside. Atualmente apenas faz parte do Grupo de Jovens e, nessa qualidade, sobe ao altar para fazer as leituras na missa. Mas já foi acólito — ou melhor, acólita.
Ainda antes da mudança, um dos animadores perguntou-lhe como é que queria ser tratado, afinal. “Nas redes sociais já tinha mudado o nome. Mas não disse ao grupo, porque estava reticente. Afinal foi menos difícil do que eu imaginava. Só tive aquela situação com o padre… mas ele entretanto foi embora”. O pároco que lhe sucedeu, ainda o conheceu como a acólita Ana. “Mas entretanto reagiu muito bem, e começou logo a tratar-me por André, sem problema nenhum”.
Este tem sido um caminho mais difícil de percorrer entre os corredores dos hospitais do que entre os bancos da Igreja. “As velhinhas, mais beatas, até me dizem que estou cada vez mais bonito”, conta André, numa altura em que uma das maiores preocupações é alterar os sacramentos.
Lésbica, ativista LGBT, sempre católica
Carolina Moutela inscreveu-se como voluntária na JMJ mal teve oportunidade. Primeiro com um empurrão da empresa onde trabalha — a Jerónimo Martins —, que lançou esse desafio aos trabalhadores, apelando a que usassem cinco dias para tal. Depois, como já tinha intenção de ser voluntária, decidiu fazê-lo em dose dupla: usará cinco dias de férias mais os cinco da empresa, num total de dez dias.
Educada numa família tradicional católica, Carolina conta ao Observador que sempre acreditou em Deus, mas começou “a senti-lo mais, de verdade, por volta dos 18 anos”. Tem agora 26 esta técnica de Recursos Humanos, ativista da causa LGBT e dos Direitos Humanos, que luta todos os dias pelo momento em que possa viver a sua fé sem olhares nem julgamentos adversos.
Descobriu-se lésbica na adolescência. Começou aí a percorrer um calvário entre consultórios de psicólogos, aconselhamento espiritual, muitas desilusões e alguma rejeição no entre a sua religião.
Um dos momentos que mais a marcou foi quando viu, na televisão, uma mulher de gravata. “Eu nunca tinha visto, mas comecei a identificar-me”. Nunca fora “muito feminina”, desde a infância, quando a mãe a alindava com vestidos. Mas também não conseguia definir-se: “Até porque a palavra lésbica, para mim, significava então uma pessoa errada. Sentia que não era heterossexual, mas não sabia o que era”.
Numa terra pequena como Estarreja, as dúvidas existenciais de Carolina eram vistas à lupa. Desde logo a partir de casa. “Os meus pais não entendiam. Hoje consigo perceber que era por falta de informação. Eu própria, a determinada altura, não me entendia”.
A dificuldade parecia inultrapassável, com o correr dos anos. “Porque estavam agarrados àquela ideia de que Deus fez homem e mulher. Imagine isto numa família católica, em que os dois eram catequistas (hoje ainda são). O que eles achavam é que não me souberam educar. Perguntavam-se muitas vezes onde é que tinham errado. A minha família sofreu muito, nesse sentido”, reconhece Carolina.
Como a comunicação só tendia a piorar, os pais insistiam na psicologia, quase como panaceia para o que se revelava “um problema”. “Uma altura chamaram a minha mãe à escola porque disse a uma colega que gostava dela — já deveria ter uns 16 anos. Foi complicado, porque a minha mãe estava convencida de que ‘já tinha passado’”. Foi então que passaram a outro nível: um psiquiatra, em Lisboa. “Agora já era uma coisa mesmo séria. É disso que me lembro”, recorda, enquanto desfia as contas desse rosário: “Foi incrível esse dia. Porque o psiquiatra disse-me que, entre o branco e o preto, existe uma gama de cores”, tantas quantas as das bandeiras LGBT que hoje a acompanham em quase tudo: nas redes sociais, no carro, na roupa que veste. Carolina ainda não sabia, mas haveria de se tornar ativista. E foi por essa altura que percebeu que estava resolvida — e que era a família quem mais precisava de ajuda.
Por volta dos 15 anos a jovem começou a fazer retiros espirituais com a Aliança de Santa Maria, uma congregação de Fátima. “Eu adorava aqueles dias”, conta agora ao Observador, recuando uma década até à praia de São Pedro de Moel. Nesses campos de férias, as freiras “sempre souberam de tudo, das minhas dúvidas”. E pareciam compreender. Aos 18, sentindo necessidade de se assumir, revelou-o às irmãs com todas as letras. “Eu sou lésbica, não vale a pena lutar contra isto”. Terminavam assim as (muitas) tentativas que fez no sentido de contrariar a sua orientação sexual, com vários namorados — até que avançou para a mudança de expressão de género. É uma mulher, que veste como homem. Foi nessa fase, que durou cerca de dois anos, que se afastou um pouco da Igreja. “Naquele ano as freiras disseram para eu não ir ao campo de férias. Mas depois fizeram um retiro de um fim de semana e eu inscrevi-me. Ligaram-me a dizer para não ir, porque era sobre sexualidade”. Foi uma mágoa. Aquele era um porto seguro que sempre tivera, uma comunidade que agora a afastava.
Nos dois anos seguintes, já na universidade, “ia a casa ao fim de semana, mas não ia à missa”. “Foi uma guerra muito temporal: nem eu desisti da minha família, nem a minha mãe desistiu de mim”.
À procura de um lugar na Igreja
Mesmo reconhecendo que “a Igreja está a mudar”, Carolina frisa que esse será sempre um caminho difícil de percorrer. “A Igreja é feita por pessoas. Eu tive a sorte de encontrar uma viragem na minha vida quando fiz os convívios fraternos”. E essa foi uma experiência que decidiu fazer quando a regente do coro que integrava, na sua paróquia, lhe disse que não a deixava sair. Mas isso foi depois de uma mágoa profunda: “Fui fazer os quatro dias de Páscoa — que é o melhor tempo para um cristão — e cantei o salmo, na quinta-feira santa. Mais tarde descubro que o padre chamou a regente para lhe dizer que nesses dias tão especiais, uma pessoa como eu não podia estar à frente da assembleia”. Esse momento marcou a assunção de uma verdade absoluta: “A Igreja é feita por pessoas. E enquanto elas não mudarem, a Igreja não mudará”.
E, apesar “de todo este trabalho do Papa Francisco, a Igreja apenas está a mudar q.b. porque as pessoas até podem aceitar-me a mim, mas não aceitam as pessoas LGBT. Essas continuam a ter uma visibilidade negativa”. E essa é a demanda de Carolina Moutela, que assume ter-se tornado ativista “acima de tudo pela Igreja”. “Eu só queria viver a minha vida consoante o comum da sociedade: ir à missa com a minha namorada, casar lá com ela, ter filhos e educá-los lá. Ter uma vida dita normal, numa relação afetiva”, afirma.
Lá, nos caminhos fraternos, uma miúda mais nova acabaria por lhe traçar o destino, sem saber. “Ela passou o tempo a dizer que Deus é Amor, e que por causa disso eu teria sempre de ser aceite na Igreja — e na sociedade”. Quando saiu, Carolina tatuou a frase no braço direito, qual mantra. No esquerdo, tem agora os símbolos que regem a sua vida: família, ativismo, Deus, amor, e a música. Desde criança que toca trompa.
Carolina acredita que os convívios fraternos foram mesmo “uma experiência de Deus”, que lhe trouxe o maior ensinamento: “Há espaço na Igreja para pessoas LGBT. Por isso é que faço ativismo. Não posso deixar que nenhuma criança com 10, 12 ou 15 anos ache que não tem lugar na Igreja. Se acredito, enquanto católica, que Deus me fez à sua imagem e semelhança, como é que vou acreditar que Ele é castrador?”.
Crescem movimentos pela diversidade
As palavras do Papa Francisco na abertura do Sínodo, em outubro de 2021, inspiram todos os dias o movimento Sopro. No momento em que o Papa incentivou todos a construir “uma Igreja de proximidade, de compaixão e ternura”, muitos foram os que se sentiram tocados. A verdade é que este movimento nasceu a pensar na JMJ, para levar para o terreno um tema vivido à margem, e acabou por ganhar vida para além da Jornada. Dele fazem parte “pessoas cristãs católicas preocupadas em criar pontes, acolher e compreender pessoas na diversidade da sua afetividade, “evitando […] qualquer sinal de discriminação injusta” (CIC 2358), reconhecendo a experiência cristã de cada pessoa”. “Nem todas as pessoas são LGBT, mas todas querem fazer a ponte entre a Igreja e a comunidade”, diz ao Observador Maria Pires, uma das fundadoras.
Em Portugal o tema começa a ganhar expressão dentro da Igreja. Exemplo disso é a associação Rumos Novos, constituída por católicas e católicos LGBTQIA+. Mas há outros grupos. Lá fora também. Muitos deles vão participar das iniciativas do Centro Arco Íris, o espaço que funcionará entre os dias 1 e 4 na Casa da Cidadania, no Lumiar, num espaço cedido pela Gerador. Ana Carvalho, uma das mentoras, acredita que o ponto alto será a celebração da missa do dia 3, às 15h. Também a Feira de Grupos terá um lugar de destaque no programa do centro. Será o momento em que muitos Grupos LGBTQIA+, nacionais e internacionais, bem como outros do país que tratam o assunto vão dar-se a conhecer. “O que gostávamos era que nem sequer fosse um tema”, sublinha Maria Pires, explicando o Sopro é “um movimento em construção”, sobretudo com o propósito de estabelecer pontes.
Com os pais, a relação estabilizou. Mesmo que lhe digam muitas vezes que não precisa de se expor, como aconteceu recentemente na primeira marcha LGBT de Ovar. Já ela está sempre disposta a dar visibilidade ao tema, por considerar importante para o coletivo. Faz parte da SAFO (Associação de Lésbicas em Portugal) e da Rede Ex-Aequo, uma associação de jovens LGBT. É através dessas organizações que vais às escolas dar o seu testemunho e falar aos mais novos. Integra ainda o coletivo CaDiv — Caminhar na diversidade, formado por católicos da comunidade LGBT. Porém, é-lhe difícil ver-se a si e aos pares acantonada num grupo.
“Pretendo exatamente o contrário. Que seja comum. Não quero ir à missa de bandeira LGBT para todos verem. O que eu quero é chegar a uma Igreja e não me olharem de lado. Que seja comum. Porque não deixo de ser a Carolina católica para passar a ser a Carolina lésbica, e vice-versa”. Mesmo sem concordar muito com a génese, vai passar pelo stand que o grupo terá na JMJ. Das Jornadas, espera sobretudo diversidade, à conta dos muitos jovens de outros países. Que venha gente “fora da caixa” a este “encontro cultural gigante”. “Vai ser incrível poder estar com outras experiências: como é que fazem, como é que rezam, como é que se posicionam”. Por outro lado, espera que o Papa Francisco levante essa bandeira da diversidade. “Que ele aproveite para dizer que está do nosso lado”.
É o que espera também Miguel, chamemos-lhe assim, porque dentro comunidade religiosa e da família “ainda nem todos sabem que [é] gay”, conta ao Observador este jovem de 22 anos, que vem à JMJ com um grupo de jovens da comunidade portuguesa da região de Paris. Prefere o anonimato, e não sabe quando chegará o dia em que há-de ganhar coragem para se assumir, como é, diante de todos. Na verdade, já esteve mais próximo. Contou aos pais, que desde então “esperam que isto passe, que lhes acabe com o desgosto”.
“Quando fiz os convívios fraternos esperava encontrar alguma abertura. Mas a primeira coisa que o padre disse foi que uma casa e uma família só podem ser feitas com um homem e uma mulher”. E ele, catequista, muito ativo na sua paróquia, sentiu as palavras como um machado. Desde os 13 anos que se sente atraído por rapazes, já teve alguns relacionamentos, mas nunca publicamente assumidos. Agora, na JMJ, espera que seja o Papa Francisco a dar esse toque à Igreja, para que na sua comunidade o assunto deixe de ser tabu.
O chefe escuteiro que contraria os rótulos
“Eu nunca saí de nenhum armário porque nunca lá estive dentro”, conta, por oposição, ao Observador Gonçalo Moura da Costa, o secretário regional de Coimbra do Método Escutista, que na comunidade todos sabem ser homossexual. “Sempre encarei a sexualidade de uma forma super normal e detesto os rótulos que são tão importantes nesta nossa sociedade. Para mim rotular é limitar”. É por isso que este enólogo de 40 anos se define como “uma pessoa que gosta de pessoas”. Afunilando, ressalva que “esse gostar em nada é condicionado pelo género”. Por ora, é com um homem que namora.
A 28 de junho, Dia Internacional do Orgulho LGBTQIA+, Gonçalo partilhou nas suas redes sociais uma espécie de manifesto, em que revelava alguns episódios que essa sua forma de estar na vida lhe reservou: o padre que lhe pediu recato; o político que o aconselhou a deixar de publicar “certas coisas” (Gonçalo foi vice-presidente do PSD da Mealhada e candidato à Junta de Freguesia); o professor que lhe recomendou silêncio, porque entre a classe da Agronomia o percurso seria mais difícil. Ou o colega enólogo que lhe disse textualmente que o seu “sucesso também passa pelo [seu] silêncio”. Além das responsabilidades nos escuteiros, Gonçalo é catequista e ministro da Palavra e da Comunhão, na freguesia da Pampilhosa.
“Se formos analisar em profundidade, a Igreja advoga uma sexualidade para anjos. Porque diz que um homem e uma mulher só podem ter relações sexuais para procriar. Ora, isso é um tipo de sexualidade que não interessa nem ao ‘menino jesus’”, ironiza. “Há aqui um farol que acho importante, o da moralidade. Mas dentro dele poderá haver pessoas mais tradicionais e queiram viver o seu celibato, a sua castidade, dentro dos valores (muito assexuados, quase) da Igreja, e aqueles que querem fazer uma vida dita normal, esses também têm espaço”.
Gonçalo sublinha que nunca se sentiu castrado dentro da Igreja, tanto mais que todos os cargos que desempenha dentro da estrutura lhe foram passados pelo bispo diocesano. Na comunidade, sente que tem o respeito de todos. Na família ainda mais. “Mesmo sendo tradicional, cristã, católica e praticante, a sexualidade foi sempre uma coisa natural deste ponto de vista: amas alguém, está tudo bem”. Nesse pressuposto, a homossexualidade “nunca foi um problema, e também nunca foi uma bandeira. Não quero dizer com isso que sou contras as marchas e manifestações, mas não me identifico. Acho que faço um ativismo totalmente distinto, de outra forma, dizendo sempre o que penso e o que sinto, aquilo em que acredito: o amor completamente livre”.
Não é esse o entendimento do padre que o aconselhou a ter recato, e que, curiosamente “tem um cargo de algum prestígio dentro da organização da JMJ”. E o que lhe respondeu Gonçalo? “Que era tonto. Estar dentro de uma organização juvenil e ter um pensamento destes… não tem lógica. E esse confronto é preciso, muitas vezes. Até porque isso não está escrito em lado nenhum, que uma pessoa homossexual, bissexual ou o que for, não tem lugar na Igreja. Porque mesmo o matrimónio entre um homem e uma mulher serve para um fim muito específico, que é a procriação. Por isso, basicamente, a Igreja não diz que dois homens ou duas mulheres não podem estar juntos. Quem o diz são alguns padres, que se baseiam em algumas passagens bíblicas. Mas eu não posso pegar na bíblia e interpretá-la à luz dos dias de hoje quando me dá jeito, e quando não dá, remeter para dois mil anos atrás.”
Gonçalo vai à JMJ apenas nos dias 5 e 6, na Vigília e na Missa do Envio, respetivamente. Mas ao longo dos “dias da diocese”, estará a colaborar na receção aos grupos que chegam à sua região. Tal como Carolina, André e Miguel, espera que haja um antes e um depois da Jornada de Lisboa.
A vida após o divórcio aos olhos da Igreja: há muita estrada para andar
Mas há outras pessoas que esperam ventos de mudança vindos de Lisboa. E, no caso delas, nada tem a ver com a orientação sexual. Ricardo Dias perdeu a conta aos dias e horas em prol da organização da JMJ na paróquia onde agora reside (Pombal), na diocese de Coimbra. O médico dentista, com 41 anos, estará na Jornada ao leme de um grupo de jovens, incluindo a filha e uma das enteadas. Porque é casado em segundas núpcias, depois de um primeiro casamento que acabou em divórcio, e que conseguiu ver anulado pela Igreja Católica.
“Para mim não fazia sentido ser de outra forma. Mal começou a correr o processo civil, dei entrada com o processo canónico”, recorda.
Mas foram anos de muito sofrimento interior, de uma luta consigo próprio, até aceitar que as palavras do padre proferidas a 11 de novembro de 2006 já não faziam sentido, pelo menos com a mulher com quem casara: “Não separe o homem o que Deus uniu”. É a esse ensinamento bíblico que a Igreja se agarra para inviabilizar o divórcio. Mas Ricardo, desde sempre ativamente envolvido nas atividades religiosas da sua paróquia, em Arganil, e mais tarde nos Escuteiros, sabe hoje que o caminho pode ter pelo menos dois sentidos. Depois da infidelidade — igualmente condenada pela Igreja — aguentou o casamento por quase uma década.
“O mais complicado foi mesmo o processo canónico”, relata ao Observador, dando conta dos (muitos) passos a que obriga. Porém, persistiu até ver o tribunal eclesiástico anular o matrimónio. De permeio, renunciou às responsabilidades no CNE, ao perceber que “quem quer viver na verdade por vezes é marginalizado”. Mas foi lá, no movimento escutista, que encontrou a segunda mulher, também ela já divorciada, igualmente ativa na comunidade religiosa. A 29 de maio de 2021, ainda com o processo canónico em marcha, casaram pelo civil. “Preparámos tudo como se fosse uma cerimónia religiosa, com cânticos, leituras. Para nós, só fazia sentido assim”.
“Existe um caminho de acolhimento aos casais divorciados, dentro da Igreja Católica, ao contrário do que muitos julgam. Também porque muitas vezes os próprios padres não fazem essa divulgação”, sublinha Ricardo. “É preciso também estar disposto a fazer esse caminho, que é um trabalho pessoal, e do casal, com o padre assistente”. Enaltece igualmente o papel que o Papa Francisco tem desempenhado nesse domínio, nomeadamente através do Sínodo.
Ainda assim, reconhece que há ainda muita estrada para andar. Porque “a Igreja Católica continua desaptada da realidade atual”, ao contrário do que sucede noutras igrejas, que vão ganhando espaço”. Por ele, está pronto a ajudar nessa mudança. E a casar de novo, logo que lhe seja possível.