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Chega mesmo em cima das nove da manhã, hora marcada para a entrevista ao Observador para o ar, em direto. Ainda há tempo para um café rápido, enquanto se fazem os últimos ajustes técnicos. Tem-se multiplicado em entrevistas nos últimos dias, mas a realidade muda a cada dia e neste em concreto havia o arranque do terceiro período do ano letivo, o mais diferente de sempre, com aulas à distância por causa do vírus que suspendeu o país e o deixou em estado de emergência. O primeiro-ministro deixa antever que o próximo ano letivo poderá continuar em moldes extraordinários. As restrições de circulação são para manter, com António Costa a levantar já a ponta do véu do plano do Governo para levantar, “de forma gradual”, o confinamento.
Algumas regiões primeiro, alguns setores de atividade a normalizar e os mais velhos em casa por mais tempo do que a restante população. Estas são algumas das ideias que estão a ser desenhadas pelo Governo para a renovação do estado de emergência por mais quinze dias na próxima sexta-feira. Depois da deixa da Comissão Europeia, admite nacionalizar algumas empresas portuguesas, incluindo a TAP, se for preciso. Mas nem tudo o que Bruxelas diz é para escrever. Se Ursula Von der Leyen recomendou aos europeus que não fizessem planos para férias, Costa pede aos portugueses que esperem apenas umas semanas. E já agora, que planeiem as férias cá dentro. É mais “seguro e há menos incertezas”.
[O essencial da entrevista a António Costa:]
“No próximo ano letivo estaremos preparados para uma situação como esta e de forma mais prolongada”
Hoje é o dia em que terminam as medidas excecionais para o período da Páscoa, considerado um período mais de risco dentro deste mês de abril que é visto como decisivo pelo governo. Já é possível fazer um balanço de como correu?
Creio que o balanço genérico destes cinco dias é essencialmente positivo. Não houve um número anormal de situações de incumprimento. Há sempre alguma resistência, mas as pessoas, como tem sido nota desde o início desta crise, têm sido muito conscientes que o melhor apoio que podem dar aos profissionais de saúde, que estão na linha da frente do combate ao Covid, é manterem-se isoladas, evitarem circular excessivamente. E acho que toda a gente tem acatado isso de uma forma genérica.
Hoje também arranca o terceiro período do ano escolar. Uma das grandes certezas é que o método encontrado para resolver o problema para este terceiro período vai provavelmente agravar as desigualdades de acesso ao ensino. É possível resolver esta questão ainda neste terceiro período?
Começo por desejar a toda a comunidade científica, que inicia este terceiro e último período, uma boa conclusão deste ano letivo desta forma tão difícil, tão diferente do que é habitual, mas tão importante para o futuro das nossas crianças e dos nossos jovens. Há uma coisa que ficou mais evidente: a escola é um local que ajuda a combater as assimetrias e a separação de cada um para os seus domicílios expõe-nos naturalmente de uma forma mais evidente às desigualdades pré-existentes fora da escola.
Quem tem famílias mais desfavorecidas, que não tenha acesso a equipamentos, como computador ou internet, vai claramente sair prejudicado neste terceiro período.
Claramente. Por isso procurámos neste terceiro período introduzir uma nova ferramenta que irá para o ar já a partir da próxima segunda-feira e que é um apoio através da televisão e da TDT, acessível a todas as pessoas, utilizando um canal que já está programado, sem necessidade sequer de haver sintonização da caixinha da TDT para mitigar essa desigualdade quer no acesso à rede, quer aos equipamentos. Agora, a consciência disso levou-nos a acelerar aquilo que tínhamos previsto no programa do governo e fixámos o objetivo de no início do próximo ano letivo assegurar a universalidade do acesso às ferramentas digitais a todos os alunos do ensino básico e secundário.
Neste ano letivo esta ferramenta que o governo arranjou, a Telescola…
…não é Telescola porque a Telescola, quando existia, era um sistema semi-presencial porque poucas pessoas tinham televisão em casa. E, portanto, havia uma televisão numa sala de aula e havia quem os acompanhasse.
A outra diferença é que agora é apenas complementar. A questão da desigualdade vem por aí. Não há só o problema de muitas famílias não terem equipamentos para os filhos poderem assistir às aulas, há muitos professores que também não estão preparados para depois preencherem a outra parte do complementar.
Os professores em particular deram uma prova extraordinária de capacidade de adaptação e acho que nós verificámos em 15 dias um avanço na literacia digital que não pensámos ser possível sequer numa ação programada. E houve um esforço extraordinário que os professores fizeram, por si próprios, com o apoio muitas vezes dos seus filhos, e encontraram as ferramentas mais diversas. A verdade é que encontrámos a demonstração, seja por via digital, seja por via do telemóvel, do telefone ou até do correio, de que os professores fizeram um enorme esforço de manter o contacto com as turmas, com os seus alunos. É importante que esse esforço se mantenha e prossiga por uma questão, aliás, que tem a ver com a igualdade. Com a autonomia, os programas não são dados como eram dados antigamente com os blocos do primeiro, segundo e terceiro período.
As matérias variam.
Variam de acordo com a escolha do próprio professor ao longo do ano letivo. Obviamente que as emissões que vamos fazer não podem ter em conta os diferentes ritmos de distribuição das matérias. São de largo espectro. Portanto, a afinação daqueles conteúdos àquilo que é a aprendizagem já efetuada pelo aluno só pode ser feita pelo professor. Segundo lugar: precisamente porque temos em conta que neste terceiro período e a parte final do segundo período foram feitos em condições diferentes do que é tradicional, é que valorizámos muito os processos de avaliação através da escola e do próprio professor. Porque é aquele que melhor conhece o aluno e, portanto, melhor pode compreender, quer o esforço maior pelas condições que tem, quer também ter em conta as condições mais adversas em que está a trabalhar. Os professores conhecem os alunos pelo menos do primeiro período, grande parte do segundo período e muitos deles até de anos anteriores. Portanto, são eles que estão nas melhores condições possíveis para faze a avaliação.
Mas vai haver uma exigência para os professores fazerem um acompanhamento específico dos alunos? Vai haver essa fiscalização?
Não vivemos num Estado policial em que temos de nos estar todos sempre a fiscalizar uns aos outros. E acho que se há algo de que nos devemos coletivamente orgulhar enquanto país é que, sem ter a necessidade de pôr as Forças Armadas na rua de metralhadora em punho e tanques em cada esquina, as pessoas têm cumprido pacatamente e com enorme sentido cívico os seus deveres. Nós estamos em estado de emergência e até agora não tivemos de requisitar um único equipamento, uma única instalação, não tivemos de obrigar ninguém a ir trabalhar.
Embora a situação esteja longe de ser normal.
A situação que estamos a viver é evidente que é profundamente anormal. Dentro desse contexto, acho que tem sido um esforço feito positivamente por todos. Especificamente no processo de avaliação, os professores terão em conta as matérias que lecionaram, as matérias que não lecionaram e por isso restringimos a existência de exames nacionais ao mínimo que era absolutamente essencial, que são os de acesso à universidade porque não o fazer seria um enorme fator de injustiça relativa. Ou impedíamos uma geração toda de entrar na universidade quando tinham a expectativa de entrar ou não assegurávamos as condições mínimas de igualdade a todos no acesso à universidade.
Para os restantes anos já aqui falou da promessa de garantir equipamentos e ligações à internet no próximo ano letivo, mas consegue garantir que esses equipamentos e ligações estarão todos entregues a quem precisa no arranque do ano letivo?
Temos de trabalhar para isso, é esse o objetivo a que nos propusemos. E é com base nisso que estamos a trabalhar com a indústria, com os editores e produtores de conteúdos pedagógicos, com os agentes comerciais de forma a garantir o número de equipamentos suficiente e a trabalhar com as operadoras de forma a assegurar um reforço da cobertura do espaço escolar, das zonas de residência, de forma a termos uma cobertura mais robusta do que a que existe.
Já tem uma estimativa dos custos? Quanto é que esse reforço vai custar?
Não, neste momento ainda não temos. Estamos a fazer esse levantamento. Mas este era um programa que tínhamos para desenvolver ao longo da legislatura, temos obviamente de o acelerar.
E vai ser preciso? O próximo ano letivo vai ser nos moldes em que está a terminar este ou acredita que vai haver um regresso mais ou menos normal à escola com as aulas presenciais para todos os anos de ensino?
O avanço para a transição digital é sempre necessário. É um investimento que seria sempre necessário e vamos ter de o antecipar. Não me peça agora adivinhação. Temos de olhar para o próximo ano letivo da mesma forma que temos olhado para estes dias que estamos a viver: desejando o melhor, mas preparando-nos sempre para o pior. Por isso, temos de estar preparados para responder a uma situação como esta, que decorra de forma mais prolongada, e não ter de improvisar, como temos improvisado ao longo destes meses, porque ninguém estava à espera que nos acontecesse uma coisa destas. Para o ano já sabemos que o vírus não acaba antes do início do próximo ano letivo, e com grande probabilidade não teremos vacina antes do final do próximo ano letivo. Não podemos estar um ano letivo inteiro fechados em casa, mas temos também de ter melhores ferramentas para prosseguir as nossas atividades. Havendo o vírus, por muito controlada que esteja a pandemia, nada nos pode garantir que não haja picos. Para essas situações temos de ter uma rede de segurança para podermos continuar a funcionar.
Renovação do estado de emergência: “Não antevejo alteração nas limitações à circulação”
Na sexta-feira termina este estado de emergência, já sabemos que o Presidente da República tenciona renová-lo e que o governo apoia essa decisão. Admite levantar algumas das medidas de restrição que estão em vigor?
Felizmente chegámos à fase em que se começou a debater qual deve ser o momento e a estratégia de saída, mas o processo de saída há de ser sempre gradual e progressivo. Não podemos levantar estas medidas restritivas enquanto o risco de contágio não tiver sido reduzido para um nível controlável. Temos vindo a diminuir o risco de expansão da pandemia, mas ainda não chegámos à fase de declínio da pandemia. Portanto, é prematuro tomarmos uma decisão e os cientistas não são ainda capazes de antecipar com suficiente precisão quando é que lá chegaremos. Será no final deste mês? Será em meados do próximo mês? Será no final? Não sabem dizer.
Portanto, não conta mudar nada do que está em vigor neste momento?
Para já, não sabemos quando vamos ter uma condição de pandemia diferente da que temos agora. Afastámo-nos claramente do crescimento exponencial, temos estado aparentemente naquilo a que os cientistas designam de planalto. Ou seja, mantivemo-nos sempre ali na casa dos 6%, embora na sexta tenha havido números anormalmente altos e ontem [segunda-feira] anormalmente baixos. Temos de ir acompanhando, porque todos os números são prematuros. E se as pessoas vão achando que as coisas estão bem e vão elas próprias aligeirando o seu comportamento e as suas defesas, isto passa a correr mal. Também sabemos que no dia em que começarmos a retirar essas medidas, os contactos vão aumentar e, aumentando os contactos, o risco de subida dos contágios também aumenta.
Por isso ainda é cedo para retirar essas medidas.
Hoje é cedo, sim. Mas mesmo quando começarmos a retirar, o vírus ainda não desapareceu. Não vamos poder esperar pelo dia da vacina.
Espera até sexta [dia em que terá de ser renovado o estado de emergência] ter alterações assim tão grandes?
Vamos ter sempre de retirar as medidas de forma gradual e progressiva porque o que acontecerá sempre e inevitavelmente é que, quando começarmos a tirar, o nível de contágio vai de novo aumentar. Isto para garantir que esse aumento nunca ultrapassa o limite do que é controlável, porque se perdermos o controlo voltamos a ter de adotar estas medidas. Hoje mesmo a Comissão Europeia está a discutir uma recomendação sobre uma estratégia comum de saída, com um conjunto de princípios e orientações onde isso é claramente afirmado. Tem que se ter em conta que, de cada vez que retirarmos uma medida, o risco de aumento do contágio vai aumentar.
Sexta-feira é o dia para serem retiradas algumas dessas medidas, de forma gradual? Hoje já é terça, imagino que nesta altura já tenha essa reflexão feita.
O estado de emergência tem um processo institucional que temos de respeitar: é da iniciativa do senhor Presidente da República, e é o senhor Presidente da República que propõe o desenho concreto do conteúdo do estado de emergência no projeto de decreto que submete ao governo para o governo se pronunciar. Logo, o governo só se deve pronunciar depois de ser apresentado o decreto por parte do senhor Presidente da República. Depois ele segue para a Assembleia, e a Assembleia da República autoriza ou não autoriza. Agora, o Presidente da República tem trabalhado sempre com o Governo na preparação do decreto, isso tem sido um trabalho de grande proximidade, e eu diria que haverá algumas restrições institucionais, designadamente em matéria de direitos coletivos dos trabalhadores, que provavelmente serão eliminadas. Mas, relativamente às limitações à circulação e ao conjunto do funcionamento das atividades, não antevejo que irá existir qualquer alteração.
Mas já existe um plano? Quando fala nesse gradualismo, e nas balizas que vão ser concertadas a nível europeu, em Portugal planeia que aconteça o que está a acontecer em Espanha, onde alguns setores de atividade vão começar a regressar mais cedo ao trabalho?
Em Portugal nunca chegámos a encerrar todos os setores de atividade, é diferente de Espanha. A atividade industrial, por exemplo, manteve-se em funções. A que está encerrada é por falta de procura ou de fornecimentos. Mas, desde que tenham condições de segurança no interior das instalações, as fábricas podem funcionar. No setor dos transportes, idem. Basicamente, o que foi encerrado foram os serviços de atendimento ao público, ou de grande concentração de pessoas, como é o caso das lojas que não sejam de bens essenciais alimentares. O comércio em geral foi encerrado. A restauração foi encerrada, as cafetarias foram encerradas, as escolas…
Mas em Espanha, estando numa situação muito mais dramática, foi definida uma data para o regresso à normalidade, que é 26 de abril. Em França é 11 de maio. Há uma data na sua cabeça para começar a retirada gradual de medidas?
Como lhe disse, a generalidade das áreas não foram encerradas. Mesmo na área dos serviços, desde que se possam manter em teletrabalho, podem continuar a funcionar. Esse é o primeiro ponto. Em segundo lugar, relativamente às escolas já definimos o calendário: eu não tenho escondido que nós gostaríamos que as aulas presenciais do secundário pudessem começar o mais cedo possível a partir do dia 4 de maio. Porque quanto mais cedo começarmos, mais conseguimos recuperar o número de semanas em que não tivemos aulas presenciais. Portanto, menos afetaríamos todo o processo educativo. Acho que nós, políticos, temos de nos impor uma enorme disciplina neste processo, aceitando que temos de respeitar o que é a orientação técnica dos cientistas, porque isto é, antes de mais nada, uma questão de saúde pública.
Mas Espanha e França também respeitam orientações técnicas, porque é que eles têm uma data e Portugal não estabelece essa data? Não era importante haver essa linha no horizonte?
Porventura, a comunidade científica em Espanha ou França está em condições de ser mais precisa do que a nossa está. Talvez porque começaram a sentir os efeitos da pandemia mais cedo, e chegarão mais cedo ao final desta curva. Não me quero pronunciar sobre as decisões dos outros, mas sei qual é o nosso método de decisão. O nosso método de decisão tem sido assente no conjunto de estudos das equipas de epidemiologistas que têm trabalhado para a DGS, e tem sido aliás uma informação aberta e partilhada semanalmente. Mas nem no seio da comunidade científica há total acordo, há quem entenda que já atingimos o momento de maior risco de contaminação, há os que entendem que estamos na fase de planalto, há os que entendem que o planalto está subestimado, enfim, não há entendimento…
Isso impede que se avance?
Os políticos devem é ter o cuidado de evitar que a sua vontade se sobreponha ao conhecimento da ciência, precipitando decisões que depois podem ter custos elevados. Eu acho que quando lerem hoje as recomendações da Comissão Europeia todos vão ficar a perceber melhor qual deve ser o processo de decisão. Não querendo concordar com tudo o que a Comissão Europeia diz, o método corresponde exatamente àquele que nós definimos. Porque há uma coisa que nós sabemos: é que, insisto nisto, conforme formos levantando as medidas o risco de contaminação aumenta. E, portanto, não podemos deixar esse risco aumentar para um nível superior. Por exemplo, há quem sugira que entre o levantamento de uma medida e o levantamento de outra deve demorar pelo menos umas semanas a um mês, de forma a medir bem o efeito desse levantamento.
E isso parece-lhe razoável?
Este vírus é novo, mas há coisas que vamos sabendo. Sabemos que entre a contaminação e a essência dos primeiros sintomas demoram pelo menos cinco dias. Sabemos que há muitas pessoas que podem ter a contaminação sem terem quaisquer sintomas. E é isso que torna tudo mais perigoso. Por exemplo, quando temos uma doença o que é que fazemos? Sentimos a doença e mantemo-nos em casa para nos tratarmos. E, portanto, não andamos por aí. Agora, nós estamos aqui, cinco pessoas neste espaço, com bastante distanciamento entre nós, todos nós julgamos não estar infetados, mas nenhum de nós pode garantir isso.
“Restrições vão ser mais exigentes” para a população idosa
Ainda esta semana a presidente da Comissão Europeia dava algumas dicas sobre aquilo que serão as orientações de Bruxelas nessas matérias e uma das que avançou é que provavelmente as restrições para os mais velhos devem ser mantidas pelo menos até ao final do ano. Essa será uma medida que entrará em vigor aqui em Portugal?
Os mais idosos são o grupo de maior risco e o grupo daqueles em quem, sendo infetados, mais graves consequências a doença tem. Basta comparar a taxa de mortalidade entre os maiores de 70 e 80 anos e o resto da população para perceber como, de facto, as consequências são radicalmente distintas. Bem sei que muitas das pessoas certamente não morreram por causa do Covid, mas com o Covid, porque teriam outras doenças associadas. Até podermos viver em total segurança com o vírus, e isso só acontecerá quando houver uma vacina ou um tratamento que inequivocamente permita dar uma resposta pronta a esta doença, é evidente que vamos ter de manter essas restrições — e serão tanto mais exigentes para quem tem um maior risco.
Portanto, pode haver um país a duas velocidades, mais velhos em casa ainda quando o resto das pessoas já voltou ao trabalho?
Sim, vamos ter seguramente um país com múltiplas velocidades. De regiões diferentes, de setores de atividade diferentes, de pessoas com riscos diferentes.
Admite levantar restrições, por exemplo, em zonas diferentes do país?
Pode ser, é uma hipótese que não devemos excluir neste momento.
O Presidente da República alertava no outro dia, falando nos idosos que representam um terço da população portuguesa, que podia criar-se um gueto, um fosso. Tem essa preocupação? Como é que se evita isto, tendo em conta que está a dizer que há a possibilidade de a população idosa ter de ficar mais tempo isolada do que o resto?
Qual tem sido o princípio que nos tem guiado? O máximo de contenção com o mínimo de perturbação. Devemos procurar impôr o menor número de restrições possíveis. A restrição deve ser a exceção. Agora, porque é que existe o isolamento obrigatório de quem está contaminado, cuja violação é crime? Porque quem está contaminado tem um risco para o conjunto da comunidade. Para os idosos, o que estabelecemos foi um dever de proteção especial. Não se trata de serem um perigo para a sociedade, estão é expostos a um risco especial porque são mais frágeis e podem ser contaminados. E essa contaminação pode ter consequências mais graves. Neste caso, do que estamos a falar não é da proteção da sociedade, mas da proteção dos próprios.
Mesmo que corra o tal risco do gueto, de que falava o Presidente da República?
Este vírus não anda sozinho, somos nós que o transportamos. E vai circulando entre nós consoante a nossa proximidade. Quando dizemos às crianças que não é altura de visitarem os avós, não é por maldade para com os avós, nem para pô-los num gueto. É para protegê-los. A minha mãe, que em toda a sua vida foi a pessoa mais indisciplinada que alguma vez conheci e a maior amante da liberdade, tem sido nestes momentos de uma extraordinária disciplina, E com um argumento inteligente: “Eu estou aqui a ganhar anos de vida”. E é verdade. Temos o dever especial de proteger os nossos idosos se queremos ser uma sociedade decente, onde nos ajudamos uns aos outros. Não se trata de guetizar, trata-se de proteger.
“Esperem mais umas semanas, mas não deixem de pensar nas férias de verão”
Retomo as palavras de Ursula Von Der Leyen que, na mesma entrevista a um jornal alemão, aconselhava os europeus a não planearem as suas férias de verão. O senhor também dá o mesmo conselho aos portugueses, não fazerem grandes planos para as férias de verão e não planearem já as férias no Algarve?
Não querendo correr o risco de ser otimista, eu diria: esperem mais umas semanas, mas não deixem de pensar nas férias de verão. Aliás, para a economia portuguesa seria um dano imenso se o próximo verão fosse um verão onde o turismo não tivesse condições de funcionamento mínimo. Quero crer que até ao verão a situação estará suficientemente controlada para podermos ter as férias e para as podermos gozar o melhor possível. Agora, obviamente que, tal como aconteceu quando foi o ataque às Torres Gémeas, em que durante bastante tempo houve um impacto na retoma da aviação, porque as pessoas tinham medo, seguramente não creio que a primeira coisa que as pessoas vão fazer é marcar férias para locais muito distantes, sabendo que podem ser surpreendidas como aconteceu agora a milhões de pessoas em todo o mundo, em pleno gozo de férias, e ficar isoladas pelo encerramento de fronteiras, pelo cancelamento de voos. Para já, aos portugueses eu daria um conselho que é: planeiem as férias cá dentro porque estamos sempre mais seguros cá dentro nesta fase e menos sujeitos à incerteza.
A comissária europeia da Concorrência, Margrethe Vestager, falou recentemente da possibilidade de os países poderem tomar participação acionista nas empresas privadas, para antecipar qualquer tomada de posição por parte de empresas chinesas. Já está a rir-se enquanto lhe faço esta pergunta. Porquê?
Porque vejo que esta crise deve ser de tal forma perturbadora que até as mentes mais liberais, de repente, redescobriram o papel do Estado. Como social-democrata só me posso regozijar com isso. Creio que o que a comissária Vestager tinha em mente era o facto de esta crise ter desvalorizado na bolsa muitas empresas e, por isso, terem ficado expostas a OPAs mais ou menos hostis, designadamente por investidores externos. Quis alertar para que a Europa não corra riscos de, em alguns setores estratégicos, o capital dessas empresas se transferir massivamente para capital de origem chinesa.
E essa é uma possibilidade para empresas portuguesas, que o Estado nacionalize algumas delas?
Não há razão para excluir nenhum instrumento de ação pública que se venha a revelar necessário.
Mas isso é em tese ou, numa empresa como a TAP, por exemplo, é uma hipótese em cima da mesa?
Seguramente não está na nossa mente nacionalizar o Observador. Isso não está em cima da mesa. Relativamente à TAP, onde o Estado já é, felizmente, acionista, todos sabemos que o setor da aviação civil sofreu de uma forma devastadora. Já havia vontade de alguns acionistas em poder alienar as suas posições. E esta é uma empresa absolutamente estratégica para o país. Quando tudo parou, quando muitos portugueses estavam isolados — até aqui ao lado em Marrocos — foi a TAP que os foi lá buscar. Quando é preciso montar uma ponte aérea para importação de bens provenientes da China, de equipamento médico ou de proteção individual, é com a TAP que temos contado. Sem desprimor para as outras companhias nacionais que têm dado uma contribuição extraordinária, a TAP é fundamental.
Portanto, esta pandemia também pode estar a acelerar um processo que já estava em curso.
Não havia conversas com o Estado, mas havia negociações com uma outra companhia que, naturalmente, suspendeu as aquisições, como é normal. Aliás, não creio que haja alguma companhia aérea que esteja a pensar em novos investimentos, estão todas a pensar como é que se vão poder reerguer depois desta paralisação global. E, neste quadro, não podemos excluir a necessidade de nacionalizar a TAP ou outra empresa que seja fundamental para o país, para não correr o risco de a perder no final desta crise. Isto é uma crise de saúde que se está a transformar numa crise económica. Não a podemos deixar agravar, sob pena de as consequências desta crise sanitária serem muito mais profundas e prolongadas.
“Seria uma estratégia profundamente errada na atual circunstância” cortar salários e pensões
Mas não há um fim à vista para esta crise, até porque pode haver novos surtos. Mas já se comprometeu a não aplicar em Portugal a receita que foi aplicada nos anos da troika. Para sermos claros, o que se comprometeu foi a não aumentar impostos, não cortar salários e pensões, não vai fazer cortes na despesa pública naquela dimensão. É isso?
Sem querer reabrir as polémicas de há dez anos, há uma coisa que é certa. Hoje temos uma doença que é distinta da que tínhamos então. Se a doença é diferente, a terapia também tem de ser diferente. Temos uma crise económica com origem não económica e temos de fazer tudo para a conter, como sendo um episódio conjuntural e que não crie danos estruturais na nossa economia e nas nossas finanças. Por isso, a prioridade foi procurar defender as empresas para que elas existam no final deste túnel, depois proteger os empregos e os rendimentos. É fundamental evitar destruir estes três aspetos, para que todos estejamos nas melhores condições possíveis para poder relançar a economia no final deste período.
O problema é que ainda não se sabe até quando vai durar a crise.
Não, mas há uma coisa que sabemos: se começarmos a cortar rendimentos, quando tomarmos a decisão de que os restaurantes podem reabrir, os restaurantes reabrem mas continuam sem clientes. Já não porque estão obrigados a estar em casa, mas porque deixaram de ter dinheiro para ir aos restaurantes.
Portanto, aconteça o que acontecer não há cortes salariais, de pensões, não há aumentos de impostos.
Essa seria uma estratégia profundamente errada na atual circunstância. E por isso é que é fundamental no debate que está em curso na União Europeia….
Está a ter muitos cuidados em comprometer-se para o futuro, porque está a falar “na atual circunstância”. Provavelmente daqui a seis meses a circunstância será bastante diferente.
Infelizmente, ninguém pode saber com rigor qual é a situação em que estaremos dentro de uma semana. Isso dá um grau de imprevisibilidade muito grande. Agora há coisas que são certas: tudo o que seja medidas que asfixiem os agentes económicos, as famílias ou as empresas, são más receitas para o futuro. É muito importante que na semana passada, o Eurogrupo tenha conseguido abrir um conjunto de linhas de financiamento importantes para que os Estados se possam financiar nesta situação de emergência sem ter de recorrer a cortes nas despesas ou ao aumento de impostos. Também é importante que se faça aquilo que o Eurogrupo abriu a porta para o Conselho Europeu fazer, que é começar a trabalhar num programa de relançamento da economia — é a forma de podermos agir, quer sob a oferta, que sob a procura sem a estar a asfixiar. Todas as medidas de austeridade que viessem asfixiar, seriam contraproducentes nesta fase de relançamento.
O aumento prometido dos salários para a função pública em 2021 está garantido?
Nós temos seguramente antes do Orçamento do Estado para 2021 de discutir um Orçamento suplementar para 2020 que incorpore o aumento brutal da despesa que resultou seja dos investimentos no SNS, seja nos custos de medidas sociais, nomeadamente as de apoio aos rendimentos e ao emprego. Lá chegaremos ao de 2021.
Mas admite não haver condições para isso neste momento?
Se me pergunta assim se pode não haver condições. Pode não haver condições, como também pode ser que haja. O mix das políticas que nós teremos de adotar é algo que está em aberto. Hoje vou começar a ouvir um conjunto de economistas, quer de instituições que habitualmente produzem e procedem às projeções económicas (Banco de Portugal, o Instituto Nacional de Estatística, a universidade Católica Portuguesa, ou o Instituo Superior de Economia e Gestão). Vou também à tarde fazer um brainstorming com cerca de 20 economistas de diferentes escolas para poder também ouvir as suas perspetivas. E tenho estado a participar também nos debates na União Europeia sobre os mecanismos e instrumentos para o relançamento. Não somos uma autarcia, somos parte de uma União Económica e não é indiferente saber com que ferramentas é que contamos. Uma coisa é a UE dar-nos umas fisga ou termos uma bazuca.
“Vamos manter o calendário de investimento como o previsto” para construir novo aeroporto
Investimentos considerados essenciais que já estavam numa fase avançada de desenvolvimento, como o aeroporto do Montijo, faz sentido continuar ou isso agora tem de ficar congelado até porque é expectável que o número de turistas que se estava à espera não venha a concretizar-se nos próximos tempos?
Haverá seguramente uma quebra no turismo nos próximos anos e essa quebra não compromete os cenários de desenvolvimento de infraestruturas essenciais como o novo aeroporto internacional. Esse novo aeroporto será sempre necessário porque como vimos, no passado, o crescimento ultrapassou muito as previsões. Este não é o momento de desinvestir, é mesmo o momento de investir. Há aliás obrigações contratuais nesse sentido e têm de ser criadas condições institucionais para que esse investimento seja possível de realizar. Seguramente a quebra que é previsível que se mantenha durante algum tempo da aviação vai ser absorvida pela expansão que também está programada do aeroporto da Portela e pela diminuição do caos que já víamos em muitos dias no aeroporto da Portela. Mas continua sem dispensar a necessidade de termos uma maior capacidade aeroportuária. Desse ponto de vista ganhámos tempo em relação ao atraso que tínhamos.
Portanto, a obra começaria neste ano como está feita a referência no Orçamento.
Essa verba não está no Orçamento do Estado porque é um investimento privado, mas os contactos que tenho tido com a ANA, não obstante o gigantesco prejuízo diário que a ANA está a ter, é manter o calendário de investimento como o previsto. E nós vamos manter o diálogo que tínhamos iniciado com as câmaras municipais, designadamente com a da Moita tendo em vista a garantia absoluta que os problemas de impacto ambiental serão devidamente mitigados.
“Quem tem de expressar a voz de Portugal é quem representa o país que tem sido o secretário de Estado Ricardo Mourinho Félix”
Falou já da reunião do Eurogrupo, neste momento em que estamos é mais favorável para Portugal ter um ministro das Finanças a dirigir o Eurogrupo ou seria mais interessante ter um ministro das Finanças português a defender os interesses de Portugal?
É uma sorte para a Europa ter o presidente do Eurogrupo que tem tido, capaz de gerar consensos. Mas Portugal está representado nas reuniões do Eurogrupo não pelo ministro das Finanças mas pelo secretário de Estado Adjunto e das Finanças Ricardo Mourinho Félix. E isso é muito importante para que Portugal mantenha sempre a sua voz autónoma defendendo a sua posição sempre em conjunto com outros estados membros sem que o presidente do Eurogrupo perca a sua capacidade de arbitragem que tem que necessariamente ter. As posições de Portugal…
… têm sido defendidas pelo secretário de Estado portanto não era necessário Mário Centeno paras as defender.
A Mário Centeno compete-lhe, agora como presidente do Eurogrupo, o interesse comum da União Europeia e estabelecer pontes e acordos, proximidades, mobilizar o conjunto dos estados membros. Quem tem de expressar a voz de Portugal e o ponto de vista de Portugal é quem representa o país que tem sido o secretário de Estado Ricardo Mourinho Félix que ainda esta semana disse que tínhamos dado apoio à solução encontrada, não obstante termos um conjunto de propostas que vão mais além do que foram os compromissos. Os compromissos ficam sempre aquém das posições de cada um.
Havia um cenário formulado de substituição do ministro das Finanças este verão porque era precisamente quando havia uma vaga para o governador de Banco de Portugal. Esta continua a ser altura para essa substituição acontecer?
Mas essa hipótese que está a dar como adquirida, dizia-se que havia.
Nunca o ouvimos dizer que não era assim.
Tal como se dizia, pode-se continuar a dizer. Tal como não era realidade, continua a não ser. Tal como não estava garantido que fosse, continua a não estar garantido que assim seja.
Mas está a fazer os contactos para a substituição a tempo do Governador, já que o mandato está a acabar?
Esses contactos serão feitos no momento próprio. O senhor governador está no pleno uso das suas competências, está a cumprir o seu mandato, não há nenhuma razão para alterar ou limitar as competências ao mandato do atual governador que devemos respeitar até ao final. Tem, aliás, tido um papel particularmente importante, tendo em conta que o BCE foi fundamental no primeiro impacto da resposta a esta crise, travando os riscos de uma nova espiral que pudesse criar o risco de dívidas soberanas. A ação pronta do BCE foi importante e a participação do governador no Conselho Governador do BCE é obviamente importante e devemos manter e respeitar esse calendário.
O ministro das Finanças, na entrevista que deu ontem à TVI não recusou a hipótese de abandonar o Governo mesmo nesta fase para ir para o BdP. Para o primeiro-ministro, nesta fase, faz sentido que o ministro das Finanças mude?
Há uma coisa que lhe posso garantir, se e quando houver qualquer alteração do Governo serei eu a decidir e eu a comunicar.
Mas não afasta essa possibilidade, mesmo nesta crise.
Há uma possibilidade que afasto totalmente que é discutir a composição do Governo numa entrevista.
A situação é delicada e o atual ministro das Finanças é presidente do Eurogrupo. Porque não é claro nesta altura sobre isto já que há um ponto de interrogação neste assunto?
Aquilo em que devemos concentrar toda a nossa atenção é continuar a fazer o nosso melhor para estancar esta pandemia, criar as melhores condições para retomar essa normalidade sabendo que ela será sempre condicionada pela presença de um vírus para o qual ainda não temos armas para combater de outra forma que não seja a contenção dos movimentos e o afastamento social. Começar a pensar na melhor estratégia de saída da crise, que portas abriu e fechou e ver qual a situação económica e social das empresas e das famílias. São danos que estão ainda relativamente silenciosos mas já são profundos. Esses debates políticos sobre o que vai acontecer…
É indiferente para o que quer fazer?
[Continua]… como é que o Governo vai agir, se o Presidente da República vai ou não recandidatar-se, são mesmo as últimas questões que estão na ordem do dia. Percebo essa ambição de recuperação da normalidade, mas os temas que estavam na agenda ficaram lá atrás no passado.
Não é claro a tirar esse tema da agenda.
Há uma coisa que sabemos na vida política é que não há nenhum cargo político que não seja a prazo, seja do ministro da Defesa, da Educação seja o de primeiro-ministro ou o das Finanças. As pessoas não são primeiros-ministros, ministros das Finanças ou da Defesa, eles estão no exercício dessa função. Não vale a pena andar a especular.
O mandato do governador do Banco de Portugal disse que não será limitado. Mas será prolongado? Há essa necessidade?
Se for, assim será. Devemos procurar manter a maior normalidade possível no funcionamento das instituições. O estado de emergência que a Constituição nos permite não altera a normalidade constitucional nem suspendeu a democracia. E temos sido bastante parcos no recurso à limitação das liberdades, no âmbito deste estado de emergência ao contrário de outros países onde as múltiplas liberdades têm sido suspensas e comprometidas, com conferências de imprensa com perguntas selecionadas. Aliás, o número de levantamento de autos por desobediência ao longo deste quase mês e meio é uma pequena gota de água neste enorme oceano de civismo com que os portugueses têm respeitado as regras.
Não são números preocupantes, para já.
Não só não são como se o país não tivesse um excessivo gosto pela auto-flagelação devia ser mesmo um motivo de orgulho. Tivéssemos nós o espírito de outros povos e celebraríamos coletivamente esta auto-disciplina. Estas atividades que encerraram, encerraram antes mesmo de ter sido decretado o estado de emergência. Todos percebemos que é agora o momento em que não podemos desistir. Se não havia dúvidas que era aquela momento exato para começaremos o estado de emergência, há uma cosia que é segura: ainda não é o momento para começarmos a aliviar medidas. Sei que isto custa porque a fadiga psicológica é grande. Este mês de abril é o mais difícil: a fadiga psicológica é pior, os custos económicos e sociais começam a sentir-se mais e é agora que temos de ser resilientes.
[A entrevista a António Costa na íntegra:]