Já foram muitos os anúncios de morte (alguns manifestamente exagerados) da ex-geringonça, mas nunca se fizeram ouvir em voz tão grossa — e vinda diretamente dos antigos parceiros do Governo — como agora. A opção de António Costa por enviar os apoios sociais aprovados pelo Parlamento para o Tribunal Constitucional despertou traumas antigos à esquerda, mas também trouxe avisos novos, com importância redobrada num ano de pandemia e sérios riscos de instabilidade política. O PCP, que viabilizou o Orçamento que está em vigor, é claro: “É muito relevante, nestas circunstâncias, o Governo criar um conflito com base em medidas de apoio social. E se a resistência do Governo aumenta, o confronto também aumenta”, alerta João Oliveira, em declarações ao Observador.

A importância deste conflito é tal que as declarações das figuras de topo vieram acompanhadas por avisos constantes sobre a necessidade de assegurar estabilidade política — neste Orçamento e no que há de vir, em 2022, até esta legislatura terminar. Se António Costa se mostrava confiante em que o envio dos diplomas para o TC não abriria uma crise política quando, esta quarta-feira, leu a sua declaração ao país — o primeiro-ministro disse “não ver razão” para que isto prejudique as negociações do OE2022 –, Marcelo Rebelo de Sousa tem tantas dúvidas que avisou, logo na promulgação dos apoios, que seria preciso assegurar a estabilidade governativa e levar a legislatura até ao fim. Em declarações ao semanário Expresso esta quinta-feira, concretiza: “A recuperação do país implica viabilizar os dois próximos Orçamentos”.

Ora se a ideia é viabilizá-los à esquerda, o envio dos diplomas para o TC veio dar um mau sinal aos partidos que faziam parte da geringonça e criar uma nuvem que assombrará as próximas negociações. Com leituras diferentes, até porque os partidos partem de posições diferentes: o Bloco de Esquerda rompeu com o Governo no último OE, precisamente por considerar que os apoios sociais não chegavam e que a crise social acabaria por rebentar em 2021; o PCP viabilizou esse Orçamento e acompanha agora a sua execução — e as falhas desse processo –, com uma preocupação crescente relativamente aos incumprimentos do Executivo. Num ponto, as análises coincidem: a opção do Governo mostrou que as prioridades à esquerda, que na recuperação da crise anterior estavam alinhadas graças à necessidade de recuperar rendimentos e repor direitos, deixaram de ser comuns. E isso torna os próximos processos negociais (ainda) mais difíceis.

As queixas do PCP: limitações, atrasos, obstáculos

Por um lado, o PCP, que tem o peso acrescido de ter viabilizado o OE2021, faz o equilíbrio entre defender essa opção e deixar alertas claros ao Governo: o que está a acontecer, nomeadamente em termos de apoios sociais, não era o que estava combinado. Ao Observador, o líder parlamentar comunista faz o balanço: “O que ficou taxativamente escrito no OE não tem como não ser cumprido”, e por isso o partido congratula-se com o facto de haver 280 mil trabalhadores em lay-off a receber o salário por inteiro — uma das grandes conquistas dos comunistas neste Orçamento. História diferente é tudo o que depende de concretização do Governo, e que Oliveira resume a isto: “Limitações, concretizações a meio tempo, feitas de forma difusa, atrasada, obstaculizando”.

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O PCP ajudou a viabilizar o Orçamento do Estado para 2021, através da abstenção

Conclusão? À medida que o tempo passa, a relação fica mais difícil… e está nas mãos do Governo dar uma guinada à esquerda. “As dificuldades vão-se tornando claras; as medidas ou não são concretizadas ou são-no de forma distorcida”. O caso dos apoios sociais traz alguma novidade? “O que tem de relevante é confirmar que numa situação como esta a prioridade do Governo não é dar resposta aos problemas das pessoas, mas responder às metas do défice. Esta é uma confirmação às claras. Convenhamos que não é surpresa para ninguém, mas é muito relevante que nestas circunstâncias crie conflito com medidas de apoio social”.

Se o PCP deixa a um Governo do PS um recado claro — o confronto vai “aumentar” — também não se coíbe de responder aos apelos de Marcelo sobre a viabilização dos próximos orçamentos. “Não estou a ver que essa declaração tenha alguma coisa a ver com o PCP. Calculo que seja mais para o Governo e para a intransigência do Governo. Não somos permeáveis a avisos”. Em resumo: “A persistência do Governo só pode levar a mais confronto. A estabilidade que é relevante e determinante é a da vida das pessoas. Se a opção é contrária ao interesse das pessoas, a situação é de instabilidade. O Governo é que é responsável pelas suas opções”.

O “bem te avisei” do Bloco (e o perigo de explosão)

As respostas são de um partido indignado com a opção do Governo, mas comprometido com a execução deste Orçamento, uma vez que foi a peça chave para o aprovar, dando assim ao Governo minoritário de Costa um balão de oxigénio de mais um ano. Mais de longe assiste ao Bloco, mas com pelo menos uma satisfação: cumpre-se aqui uma espécie de “eu bem te avisei”, meses depois de o partido ter votado, pela primeira vez, contra um Orçamento de Costa e de ter sido rotulado como “desertor” pelo PS.

Na altura, as conversas com dirigentes do Bloco levavam a uma conclusão: o BE estava preparado para a onda de críticas de responsáveis do Governo e do PS e para a animosidade de Costa, mesmo que isso o levasse a uma queda nas sondagens (o partido sofreu uma derrota pesada com o fraco resultado de Marisa Matias nas eleições presidenciais, mas agarrou-se aos estudos de opinião que mostravam que, numas legislativas, o cenário seria melhor). A previsão? Daí a meses, os apoios sociais não chegariam, a pandemia pioraria em janeiro e as falhas na Saúde tornar-se-iam evidentes.

O Bloco de Esquerda votou contra o Orçamento do Estado para 2021

A confirmação de pelo menos parte dessas previsões — que começou logo em janeiro, quando o Governo regressou a alguns dos apoios sociais que o BE vinha defendendo — não trouxe boas notícias, mas ofereceu argumentos ao Bloco que o partido espera agora capitalizar junto da opinião pública. Por um lado, o envio dos apoios sociais ao TC é uma medida que o próprio primeiro-ministro reconheceu ser impopular. Por outro, se no eleitorado do BE havia quem não percebesse a decisão de votar contra o último OE, as falhas nos apoios sociais devolvem ao partido a esperança de que a opção seja agora compreendida e evidenciada pela curta execução orçamental.

A atenção dos responsáveis bloquistas com quem o Observador falou está também virada para os efeitos deste episódio nos outros eixos da esquerda, principalmente no PCP. Na visão do partido, os comunistas, ainda para mais num tema tão sensível à esquerda, ficam encurralados entre um Governo que até agora não quiseram fazer cair e uma opção que trava apoios sociais para quem deles precisa.

Para o BE, se o PCP fica assim num dilema político, o Executivo acaba por criar um problema a si próprio, colocando numa situação difícil o seu parceiro mais estável. Até porque o BE não acredita que o Executivo se vire para os bloquistas de novo… a não ser que o clima com PCP e PAN azede, e os meses de pandemia que restam até ao próximo Orçamento podem criar condições para isso. Para os bloquistas o Governo está a brincar com o fogo.