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Pedro Queiroz Pereira morreu em Agosto de 2018. Um dos principais empresários portugueses no pós-25 de Abril, era ambicioso, combativo, assertivo — e um dos principais inimigos de Ricardo Salgado. O testemunho explosivo que prestou no Departamento Central de Investigação e Ação Penal (DCIAP), apenas sete meses antes do fatal acidente em Ibiza, Espanha — reproduzido esta terça-feira durante o julgamento do caso Universo Espírito Santo — mostra a forma crítica como Queiroz Pereira olhava para a gestão de Salgado, deixa várias outras revelações sobre as relações do então líder do BES e promete ser uma das principais armas da acusação do Ministério Público para conseguir a condenação por associação criminosa liderada por Ricardo Salgado.
São pouco mais de três horas em que Pedro Queiroz Pereira, também conhecido por Pêquêpê ou PQP desde os seus tempos de piloto de ralis e de velocidade nos anos 80, critica ferozmente a gestão alegadamente fraudulenta do Banco Espírito Santo (BES) e, acima de tudo, do Grupo Espírito Santo (GES). Classifica Salgado como um “mentiroso compulsivo” (por duas vezes), diz que as contas do GES “eram uma vigarice completa” (responsabilizando o ex-líder do BES por esse facto) e explica as conclusões dos investigadores por si contratados para investigar as contas das holdings do GES.
E ainda descreve em pormenor como a ex-namorada do Presidente Marcelo Rebelo de Sousa foi contratada pelo BES para agradar ao agora Presidente da República. “Era uma forma de comprar o professor Rebelo de Sousa”, diz sem rodeios.
Pedro Queiroz Pereira chegou a ser apresentado como o homem que foi decisivo para o Banco de Portugal (BdP) liderado por Carlos Costa investigar o BES e o GES. O ex-governador sempre discordou dessa permissiva. Até porque Queiroz Pereira desistiu da guerra com Salgado após ter conseguido controlo do Grupo Semapa — o seu principal objetivo, como o próprio PQP confessou no DCIAP. Mas isso não o impediu de deixar um testemunho fortíssimo.
PQP vs Salgado: a guerra aberta entre as famílias Queiroz Pereira e os Espírito Santo
Para perceber o contexto da inquirição de PQP de dia 31 de janeiro de 2018, entre 15h10 e as 18h15, é preciso compreender a guerra aberta que se instalou na família Queiroz Pereira, entre Pedro e as suas irmãs Margarida e Maude. Ricardo Salgado, com o seu sentido agudo de poder, meteu-se no meio do confronto familiar e comprou as participações de Margarida e Maude Queiroz Pereira.
Segundo PQP, o objetivo do líder do BES era o controlo da Semapa para “vampirizar” a liquidez de um grupo industrial assente na cimenteira Secil e nas celuloses e papeleiras Portucel, Soporcel e Inapa que, antes da crise das dívidas soberanas, tinha tido um volume de negócios de 1,4 mil milhões de euros e um EBITDA (o indicador que mede a eficiência operacional e os fluxos de caixa de uma empresa) de cerca de 432 milhões de euros em 2007.
No fundo, Salgado estaria a seguir a estratégia que já tinha tido em relação à Portugal Telecom. Diz PQP que tal estratégia tinha uma explicação: o GES tinha problemas financeiros — algo que é hoje uma realidade inquestionável, mas que era completamente desconhecida até 2014 — e precisava da liquidez do Grupo Semapa.
“A certa altura, no início dos anos 2000, os bancos começaram a ser obrigados a cumprir rácios muito mais apertados do que antigamente e começaram a ser obrigados a fazer aumentos de capital. (…) eles colocavam ações e depois diziam assim: ‘Pediram 8 vezes aquilo que havia para vender’. Isso era tudo rigorosamente mentira. Tanto no caso BES, como no caso BCP. (…) Como é que eles faziam? Financiavam sociedades offshores que eram deles com dinheiro do banco, punham as offshores a concorrer ao aumento de capital do banco com dinheiro do próprio banco. E depois vinham para os jornais falar ’em êxito enorme, toda a gente quer ações do BES mas infelizmente não houve para todos.‘ (…) Eu vivia revoltado com essa situação, mas depois de feito o aumento de capital eles ficavam com as sociedades offshores que tinham ações do banco. Tinham que lhes dar um destino e foi assim que eles compraram a minha irmã Margarida em 2000, 2001”, contou PQP no DCIAP.
Ricardo Salgado faz depois algo que Pedro Queiroz Pereira nunca perdoará: escondeu o jogo. Havia participações cruzadas entre o Grupo Espírito Santo e o Grupo Queiroz Pereira “mas escondidas porque o dr. Ricardo Salgado sempre me disse: ‘não, isto é um investidor norueguês”. Mentiu-me durante dez anos!”, disse, indignado, o empresário aos procuradores José Ranito e Cláudia Ribeiro.
Como o “mentiroso compulsivo” escondeu o jogo para tentar controlar a Semapa
Mas quando Queiroz Pereira descobre que a sua irmã mais nova foi “comprada”, já a sua outra irmã (Maude, casada com o antigo campeão de ténis João Lagos) está também já ao lado de Ricardo Salgado. Com a ajuda de players então relevantes e hoje também caídos em desgraça pública, como Joe Berardo.
“Havia outro sócio da Sodim, que era o Joe Berardo. Eles também compraram ações ao Joe Berardo. Ou seja, iam comprando e a mim. O que me indignava é que eu sabia que aquilo [o Grupo Espírito Santo] estava muito mal financeiramente mas iam buscar dinheiro aos clientes para comprar posições nas minhas empresas (…) Quando começo a perceber que a minha irmã está muito próxima dos Espírito Santo, já tinham comprado a minha irmã (…). E o que é que eu assisti? Assisti ao José Manuel [Espírito Santo, primo de Ricardo Salgado e seu aliado na administração do BES], ao Patrick Monteiro de Barros [acionista do GES e próximo de Salgado], ao Rui Silveira [administrador do BES próximo de Salgado], não sei mais a quem, a abordarem outros acionistas da Sodim, a oferecerem o dobro daquilo que as ações valiam para tentarem eles com a minha irmã chegarem ao controlo”, revelou PQP no DCIAP.
A tal “mentira”, que durou uma década, também é digna de revelações pormenorizadas por parte de Pedro Queiroz Pereira.
As suspeitas só tiveram confirmação em 2012, quando Pedro Queiroz Pereira se recusou a aceitar a nomeação de um administrador da Mediterranean (a nova entidade que congregava a participação das offshores Gaunlet, a Allord e a Relcove), para as holdings familiares dos Queiroz Pereira e Salgado foi obrigado a ‘abrir o jogo’ e a assumir que era o BES o dono dessas participações.
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A partir daí iniciou-se a guerra total entre PQP de um lado e a irmã Maude, os primos Carrelhas e Ricardo Salgado do outro, com dezenas de ações judiciais pelo meio. A 31 de agosto de 2013, o Expresso noticia que Maude acusa o irmão de controlar a Semapa de forma ilegal e PQP responde que é Salgado que está por detrás da irmã para controlar o seu grupo.
Pelo meio, PQP tinha criado uma equipa especial de advogados e técnicos da sua confiança que irá ao Luxemburgo investigar as contas das holdings familiares do GES, nomeadamente a ESI e a Espírito Santo (ES) Control. Os laços históricos entre as famílias Queiroz Pereira e Espírito Santo, que remontavam aos anos 30 do século passado, faziam com que o Grupo Queiroz Pereira tivesse uma participação de 7,6% na ES Control que, por sua vez, detinha 50% da ESI.
Mas PQP nada sabia sobre essas empresas porque Salgado mantinha as contas num secretismo total e absoluto. Nem os próprios Espírito Santo sabiam o que lá se passava.
Enquanto explicita sobre o estado das contas do GES antes das falência das principais holdings entre 2013 e 2014, Queiroz Pereira ia descrevendo igualmente o traço da personalidade de Ricardo Salgado.
“O dr. Ricardo Salgado tem características boas e más. Entre as boas, por exemplo, é um homem extraordinariamente trabalhador (…). Entre as más, tem duas que se destacam: ser um ambicioso desmedido (…) e depois a principal característica é que é um mentiroso compulsivo.”
PQP não resiste mesmo a traçar o seu perfil psicológico de Salgado.
“Ele é capaz de chegar aqui e dizer que esta folha de papel [branca] é preta e convencer-se e ficar convencido que convenceu as outras pessoas, o que é doentio, o que é doentio (…) Este é um caso gritante de uma pessoa que diz coisas, convence-se daquilo que diz e acha que o interlocutor ficou convencido também, portanto aquilo passa a ser uma verdade suprema. (…) [Ricardo Salgado] diz determinadas coisas e que quer convencer o interlocutor de que ‘dois mais dois são cinco’”.
O testemunho de Pedro Queiroz Pereira parece encaixar na estratégia de Ricardo Salgado de ‘sacudir a água do capote’ das responsabilidades pela queda do BES e a falência do GES. Quando PQP depôs no DCIAP, a 31 de janeiro de 2018, Ricardo Salgado já tinha sido interrogado pela primeira vez nos autos do processo principal do caso Universo Espírito Santo. E a explicação que deu não diferiu muito do que tinha afirmado em dezembro de 2014, na Comissão Parlamentar de Inquérito do BES, em que defendeu.
- que o GES tinha caído por culpa do Banco de Portugal;
- que a culpa da falsificação das contas era do contabilista Francisco Machado Cruz — que, por seu lado, sempre disse que tinha recebido ordens de Salgado para ocultar a verdade dívida da ESI;
- que o GES era gerido de forma igual pelos cinco ramos da família Espírito Santo e ele, Salgado, nada tinha a ver com a área não financeira do GES;
O mesmo terá dito numa célebre reunião do Conselho Superior do GES em 2013, em que Ricardo Salgado tentou convencer os seus primos, que representavam os restantes quatro clãs dos Espírito Santo, de que a falsificação das contas não passava de meros erros contabilísticos de Machado da Cruz — que já superavam os mil milhões de euros naquela altura —, ou que os problemas financeiros do GES se explicavam com a alegada ausência de registos contabilísticos dos chamados ativos angolanos (imobiliários e não imobiliários).
E a família, tinha “noção dos defeitos de Ricardo Salgado?”, pergunta a procuradora Cláudia Ribeiro a Pedro Queiroz Pereira:
“Ninguém se atrevia porque eles eram um Grupo de cinco ou seis, [mas] ele [Ricardo Salgado] era o único capaz de comandar o Grupo. Os outros não eram capazes, ninguém se atrevia a beliscar, a dizer fosse o que fosse. (…) O Ricardo Espírito Santo Abecassis falei bastante [com ele]. O José Maria Ricciardi falei bastante. Os outros não valia muito a pena. O Manuel Fernando terei falado alguma coisa mas não valia muito a pena, aquilo era a profissão deles, eram os ‘yes man’ do Ricardo Salgado. Nem tinham poder para chegar ao Ricardo Salgado, muito fizeram eles…”
Mais à frente na inquirição, Pedro Queiroz Pereira volta a fazer uma avaliação dos Espírito Santo.
“(…) O dr. José Maria Ricciardi era o mais esclarecido e dizia: ‘é pá, não é bem assim’. O dr. Zé Manel nem percebia, não percebia mesmo (….). O Ricardo Abecassis estava no Brasil, fazia o seu melhor e tal, eu sou amigo dele e gosto dele. O Manuel Fernando não tem capacidade para perceber, não sei se já falaram com ele… vão perceber… ele não tem capacidade para perceber nada.”
Como o GES recomeça depois do 25 de Abril: a ajuda fundamental de Mário Soares
Pedro Queiroz Pereira faz questão de partilhar todo o conhecimento que tinha sobre o GES. O seu pai, Manuel Queiroz Pereira, um dos grandes industriais do Estado Novo, conhecido por mandar construir o hotel Ritz, tinha sido um dos grandes aliados dos Espírito Santo no período pós-25 de Abril. O que o levou a ser um dos acionistas qualificados da Espírito Santo Control — que, juntamente com a Espírito Santo International, era uma das holdings de controlo do GES.
PQP tinha, por isso, um conhecimento profundo da família e do grupo Espírito Santo e quis falar do regresso dos Espírito Santo ao Portugal democrático, nos anos 80.
“Isto tudo começa por acontecer quando, por intervenção política do Governo do dr. Mário Soares, se pretendeu privatizar o BES, entregando o controlo do BES à família Espírito Santo. Naquela época, o GES tinha um Presidente que era o dr. Manuel Ricardo Espírito Santo e o dr. Ricardo Salgado era o CEO mas não eram quem mandava. (…) Houve interferências políticas do dr. Mário Soares, por exemplo, no sentido de trazer os franceses do CréditeAgricole, era por isso que eles são sócios[dos Espírito Santo, no regresso a Portugal]. E são sócios praticamente sem palavra, mas foi nesse sentido.”
A revelação não é propriamente estrondosa. É público que Mário Soares contactou com o ‘seu amigo’ François Miterrand, então Presidente francês, para solicitar ajuda nas diligências entre os Espírito Santo e o Crédite Agricóle — que virão a ser sócios no Banco Internacional de Crédito, a primeira instituição financeira que a família então liderado por Manuel Ricardo Espírito Santo abre em Portugal após o 25 de Abril e que em 2005 foi integrado no BES — privatizado em 1992 durante o Governo de Cavaco Silva.
“Quando o GES se recupera, recupera-se com muitas dificuldades financeiras e quando compra primeiro a Tranquilidade e depois o BES, compra muito alavancado, e muito com a ajuda de amigos que, por uma circunstância ou outra estavam mais abonados (…) portanto, com a ajuda de muitas pessoas, o que fazia com que a ESI, era mãe, a mãe de todas era a Control, como está descrito nos documentos, depois havia a ESI, tinha centenas e centenas de acionistas, eram pessoas do Norte que procuravam colaborar com o nome Espírito Santo para que houvesse uma reabilitação do GES”, conta PQP.
Mas Manuel Ricardo morre em 1991 e pouco depois morre António Espírito Santo. Eram irmãos de José Manuel Espírito Santo, mas este clã da família Espírito Santo vai perder a liderança da família para Ricardo Salgado.
“Foi preciso substituir o chairman e quem o foi substituir foi o comandante Ricciardi. Era completamente conveniente que fosse o comandante Ricciardi a ser o chairman do grupo porque aí o Ricardo Salgado tinha campo aberto para fazer tudo aquilo que quisesse e que bem entendesse sem qualquer tipo de oposição. Ainda lutei um bocadinho para que não fosse assim, porque eu conheço o dr. Ricardo Salgado há muitos e muitos anos e sabia que nas coisas não podiam correr bem, e ainda forcei naquela altura, em 1992, ainda forcei… O dr. Ricardo Salgado ficou muito satisfeito com isso e ficou muito zangado comigo porque eu não tinha sido bem a favor desse tipo de solução. Com uma grande capacidade de angariação de recursos junto de famílias portuguesas do Norte, lá se foi desenvolvendo. O banco nunca verdadeiramente correu tão bem que se tivessem dados dividendos”, revela PQP.
Um almoço e um aviso. O início do confronto entre PQP e Ricardo Salgado
O tempo avança até ao ponto em que Pedro Queiroz Pereira entra em conflito aberto com Ricardo Salgado.
Foi a partir de 2002 que Ricardo Salgado se mete nas guerras da família Queiroz Pereira. Começa por comprar a Margarida Queiroz Pereira a participação de 20% na Cimigest e 10% na Sodim — duas holdings familiares dos Queiroz Pereira que controlavam o Grupo Semapa. Para tal, Salgado utiliza três sociedades offshore — três sociedades veículo na linguagem cifrada dos banqueiros: a Gaunlet, a Allord e a Relcove.
Mas, segundo Pedro Queiroz Pereira, o líder executivo do BES é “esperto” e não entrega ‘cash’ à irmã Margarida. A remuneração pela participação qualificada no Grupo Semapa são ações do BES e do GES, que estavam parqueadas noutras sociedades offshore controladas por Salgado.
Mais: eram sociedades offshore criadas pelo BES para acudir aos aumentos de capital social que o banco e as sociedades da família Espírito Santo tinham feito ao longo dos anos. Dito de outra forma, um forte indício de manipulação de mercado — um crime que é imputado a Salgado na acusação do processo em julgamento por factos que ainda não prescreveram.
“Eu acho que o dr. Ricardo Salgado [a segunda vez que usa a expressão no depoimento] é um mentiroso compulsivo, doente mesmo. Eu perguntava-lhe:
– ‘Mas quem é esse investidor norueguês? Eu gostava de o conhecer’.
– ‘Ele não quer ser conhecido’, dizia o Ricardo Salgado.
A posição era dele, Ricardo Salgado, claro. E um dia eu digo assim:
– ‘Tenho aqui uma proposta irrecusável para esse investidor’.
– ‘Ah, ele não quer receber propostas’” [respondia Ricardo Salgado]
Quer dizer, o investidor era ele, Ricardo Salgado, de uma forma escondida e era o princípio de tomada de controlo do Grupo Semapa. Um negócio hostil. Ou seja, deram à minha irmã a offshore com ações do BES e ficaram com as ações dela do meu Grupo e quanto fizeram isso não me disseram: ‘Olha, fizemos esta operação com a tua irmã.’ Não, nada disso. Disseram: “Não, foi um investidor norueguês e um investidor inglês”.
E quem é que representava esses investidores internacionais? “Rui Silveira [administrador do BES com o pelouro jurídico] e Rita Amaral Cabral [advogada e então namorada de Marcelo Rebelo de Sousa], porque, no fundo, aquilo era tudo do banco [BES]. E quiseram enganar-me desta forma”, explicou PQP.
A contratação de Rita Cabral. “Era uma forma de comprar o professor Rebelo de Sousa”
A procuradora Cláudia Ribeiro interessa-se pela intervenção de Rui Silveira e de Rita Amaral Cabral a mando de Ricardo Salgado. E Pedro Queiroz Pereira conta-lhe uma “história”:
“Isto foi há mais anos — 2006, 2007 e 2008. Mas aqui há uma história. (…) A certa altura, como todos sabemos o professor Marcelo Rebelo de Sousa é uma pessoa influente na sociedade portuguesa e todos sabemos que o dr. Ricardo Salgado é um homem poderoso em Portugal. A certa altura, o professor Rebelo de Sousa entra numa disputa qualquer de eleições dentro do PSD, vai a um congresso do PSD e diz mal do Grupo Espírito Santo. Acontece que a companheira dele [de então], a Rita Amaral Cabral, e a Maria João Salgado, mulher do dr. Ricardo Salgado… ficou ali uma ‘friagem’ muito grande, eles passam férias juntos, não sei quê…”
Os acontecimentos que PQP refere verificam-se quando Marcelo “se candidatou ao PSD e ganhou.” Ou seja, quando Marcelo Rebelo de Sousa foi presidente do PSD, de 1996 até 1999. Queiroz Pereira engana-se nas datas. Refere “2004, 2005, 2006, 2007 por aí”, mas tal terá acontecido muito tempo antes.
“Mas o discurso dele [de Marcelo Rebelo de Sousa] foi conveniente porque se mostrava contra os grandes grupos. Só que os interesses eram grandes de mais, porque o professor Rebelo de Sousa tinha interesses políticos. Portanto, também precisava de ter dinheiro por detrás. O Ricardo Salgado tinha o dinheiro, mas não tinha o poder político. E então encomendaram às mulheres, exatamente como eu lhe estou a dizer. E foi a dra. Rita Amaral Cabral e a Maria João Salgado que começaram a promover um reencontro entre os dois.”
E é aqui que as acusações de Pedro Queiroz Pereira são mais fortes.
“E o dr. Salgado fez o seguinte: pega no Departamento Jurídico e manda entregar trabalhos de cobrança à dra. Rita Amaral Cabral, que tem um escritório de advocacia. Para quê? Para recuperar a relação com o professor Rebelo de Sousa. Se for, por exemplo, ao escritório da dra. Rita Amaral Cabral, mais de metade ou 60% do trabalho era o BES que dava. Era uma forma de comprar o prof. Rebelo de Sousa. Isto é assim mesmo, não é? E ela para ajudar o dr. Ricardo Salgado aceitou ir para a administração da Semapa, para segurar ali, saber o que lá se passava, isso tudo, e veio junto com o dr. Silveira”.
Falando só sobre o período de 2008, PQP é questionado sobre se Rita Amaral Cabral e Rui Silveira lhe transmitiram alguma vezes algum problema com o GES?
“Não, ainda não sabia ainda. Eu desconfiava e dizia à dra. Rita Amaral Cabral ‘isto está tudo falido’ mas eu ainda não sabia”, respondeu Pedro Queiroz Pereira.
O fingimento de PQP termina e começa a guerra a sério
Depois de muitos anos a fingir que não estava a perceber o que o líder do BES estava a fazer com as suas irmãs Maude e Margarida para controlar o Grupo Semapa, o filho de Manuel Queiroz Pereira dá um passo em frente — e começa a guerra com Ricardo Salgado.
“Eu fui à procura de números para mostrar que eles estavam a fazer aquilo tudo sem dinheiro. Estavam a usar dinheiro dos clientes e daquela coisa que não se falou aqui — a ES Liquidez — que eu que dei a informação para o jornal [Público]. Aquilo era uma vigarice completa. E isto tudo com dinheiro que não tinham. Vinham comprar às minhas irmãs as posições para controlar a minha empresas que felizmente era saudável, era boa”, enfatiza Queiroz Pereira.
PQP refere-se a uma notícia do jornal Público — da qual assume ter sido a fonte — que dois dos fundos comercializados aos balcões do BES investiam essencialmente em empresas do GES, o que violava as regras prudenciais. Por exemplo, o ES Liquidez investia 66% do capital dos seus subscritores em dívida do GES.
PQP, que sempre foi conhecido por ser frontal, não hesitou e foi falar diretamente com Ricardo Salgado.
“Apesar de o conhecer há muitos anos, almoçava um vez por ano com o dr. Ricardo Salgado. Fui ter com ele e disse-lhe assim:
– ‘Olha, vai haver eleições na Cimigest [holding familiar dos Queiroz Pereira que controlava o Grupo Semapa] e eu não vou eleger nem o Rui Silveira nem a Rita Amaral Cabral’].
– ‘Mas como, o quê?’, disse ele.
– E eu: ‘Não sei quem são [quem representam]. Sei vagamente que é um investidor norueguês, eu pedi para conhecer o investidor mas não querem ser conhecidos (…) eu gostava de lhes fazer uma proposta concreta de compra das ações deles’.
– ‘Eles não querem receber propostas’, disse-me ele.
“Então eu fiz uma coisa: como o banco [o BES] é que era o representante dos noruegueses e daquelas mentiras que ele dizia, fiz uma carta a dizer que queria comprar a posição e eles compraram-na. Já viu uma coisa destas? Eles eram intermediários financeiros e eles dizem-me: ‘Olha, compramos nós’. Então um banqueiro vai comprar uma posição na minha empresa — posição essa que eu já tinha dito que queria comprar? Aí, as coisas ficaram muito destapadas e a minha relação com o Rui Silveira e com a Rita Amaral Cabral ficou muito afetada, embora o Rui Silveira” seja “um pateta alegre”.
Ricardo Salgado dá ordens para que as participações nas holdings familiares dos Queiroz Pereira passem das sociedades offshore Gaunlet, a Allord e a Relcove para outra offshore chamada Mediterranean Strategical Investiments.
Pelo meio, Salgado inicia uma espécie de guerra das AG’s, furioso que estava com PQP.
“Eles ficaram furiosos. E sabe o que é que eles fizeram? Quando foi AG seguinte da Navigator [Grupo Semapa] apareceram lá com as ações e exigiram que a AG fosse com notário. Uma AG com meia dúzia de pessoas demorou seis horas. Mas não pensaram que eu também podia fazer a mesma coisa e eu disse: ‘Eh pá, a AG do BES vai demorar seis meses!”. Porque a AG do BES eram mil ou duas mil pessoas. (…) não percebiam que ao exigirem que uma AG fosse com notário — tem que identificar as pessoas todas, tem que não sei quê — não percebiam que a eles também lhes podia ser feito isso, eles achavam que não, achavam que estavam imunes, está a ver a estupidez?”, conta PQP.
“Devo-lhe dizer que é muito burro pensar (…) eles achavam que eram Deus na Terra e mandavam no país. O Ricardo Salgado, o Rui Silveira, não sei quê, achavam que mandavam no país, que eram donos do mundo. O Ricardo Salgado chegou a ameaçar o Governador do Banco de Portugal a dizer: ‘Eu já estou há muitos anos e os governadores mudam”. Assim como quem diz: ‘Se calhar tenho que falar com alguém para te tirar’. Uma prepotência desmedida (…)”
13/12/2012. A primeira vez que PQP confronta os Espírito Santo
Depois Pedro Queiroz Pereira dá um passo em frente. E vai até à cúpula da família: o Conselho Superior dos Espírito Santo.
“Aquela data de 13 de dezembro de 2012 diz respeito a uma sessão do Conselho Superior. Eles convidaram-me e eu fui lá a essa reunião para lhes chamar a atenção do que é que estava a acontecer e dizer: ‘Não será melhor nós sentarmo-nos, criarmos um grupo de trabalho, entendermo-nos, do que estarmos aqui a agredir uns aos outros’. Porque eles já estavam ativamente a tentar comprar ações do meu Grupo para o controlarem”.
Quando PQP foi à reunião do Conselho Superior, os restantes membros da família Espírito Santo terão incitado Ricardo Salgado a “entender-se com o Pedro porque isto também não pode ser, tens que te entender, tens que arranjar um entendimento qualquer”, diz PQP.
Como estão os restantes processos do caso Universo Espírito Santo?
“E ele saía da sala e era como se nada tivesse acontecido. Eu não estava nisto para fazer de polícia. Eu estava nisto porque ele mesmo sem dinheiro estava a seduzir sócios meus para controlar o meu Grupo”, explica Pedro Queiroz Pereira aos procuradores José Ranito e Cláudia Ribeiro.
E PQP já sabia então, a 13 de dezembro de 2012, que as contas da ESI estavam falsificadas? Os investigadores que tinha contratado, que incluíam auditores, contabilistas e economistas, já tinha detetado os buracos nas contas das holdings dos Espírito Santo? Queiroz Pereira diz que não sabia que as contas estavam falsificadas em termos de passivo, mas desconfiava de outra coisa.
“Eu sabia que as contas deles estavam mal porque eles consolidavam as contas de umas holdings para as outras e não usavam os valores de cotação, usavam os valores que eles imaginavam. Portanto as contas eram uma vigarice completa.”.
O confronto continua seis meses depois, em junho de 2023, durante duas assembleias gerais (AG) da ES Control — seis meses em que a equipa de investigadores de PQP recolhe ainda mais informação sobre as holdings dos Espírito Santo.
A primeira AG da ES Control ocorreu a 6 de junho de 2013 e aí, diz Queiroz Pereira, os “números não batiam certo”. A reunião foi adiada para oito dias depois e a ata da reunião demonstra que “foram ratificados todos os actos praticados desde 2007, e aprovação de contas, aumentos de capital, alteração da sede social e outros assuntos. sempre com os votos contra de PQP”, lê-se no auto de inquirição.
A reunião prossegue no dia 24 de junho de 2013 e, dois depois depois, Pedro Queiroz Pereira entrega no Luxemburgo um pedido de inquérito judicial às contas da ES Control. Na mesma ação, informa as autoridades luxemburguesas de que o endividamento da ESI é de cerca 3 mil milhões de euros.
“É relativamente simples [fundamentar essa alegação do endividamento de 3 mil milhões], na medida em que eu tinha os balanços, eu via como eram feitas as contas, nomeadamente as consolidações… Por exemplo, a Rio Forte era contabilizada em 1 bilião e 300 milhões de euros. Mas não valia, está a perceber? Aquilo era enganar as contas e porque é que eles punham? Era assim, punham. A Espírito Santo Finantial Group [a subholding que detinha a posição de controle do BES e na qual também estava o Crédit Agricole], isto é um dado importante, estava na bolsa [portuguesa] a 5,24 euros e era contabilizada na consolidação das contas a 22 euros. Eu fazia as contas e dizia: ‘só aqui está um buraco de 3 mil milhões euros.’
Outro exemplo era a Rio Forte: “A Rio Forte estava nas contas consolidada por 1 bilião e 300 mil euros. Eu dizia: “Como é que tudo isto é possível?” Eles devem é 1,3 mil milhões de euros!”.
A colaboração com o Banco de Portugal — que cessou mal chegou a acordo com Salgado
Pouco depois, em setembro de 2013, Pedro Queiroz Pereira pede uma audiência formal no Banco de Portugal para apresentar um dossiê com informação sobre as contas da ES Control e de outras holdings do GES. Mas, quase seis anos depois, não esconde aos procuradores José Ranito e Cláudia Ribeiro o seu verdadeiro objetivo e revela que, naquele momento, já tinha a convicção de que as contas do GES estavam falsificadas.
“Eles queriam tomar conta do meu grupo e eu queria forçar negociações. A minha ida ao Banco de Portugal é para forçar negociações [com Ricardo Salgado]. (…) Entreguei a certa altura ao Banco de Portugal meia dúzia de folhas (…) Eu também conhecia as empresas, eu conhecia a Rio Forte… aquelas contas estavam todas truncadas, e na altura, nós dizíamos que o buraco do GES era de 3 biliões de euros. Viemos a saber mais tarde que era muito mais…”
PQP refere-se a uma carta entregue em mão no Banco de Portugal que se referem à situação financeira da ES Control e da ESI, além da questão dos fundos de investimento, como o ES Liquidez, que estavam a utilizar o dinheiro dos subscritores para investir em dívida das empresas do GES.
A acusação. Anatomia de uma associação criminosa que destruiu o Grupo Espírito Santo
Logo após a primeira ida de Queiroz Pereira ao Banco de Portugal no dia 3 de outubro, onde foi recebido pelo vice-governador Pedro Duarte Neves (que tinha o pelouro da supervisão), por José Gabriel Queiró (diretor dos Serviços Jurídicos) e Luís Costa Ferreira (diretor do Departamento de Supervisão), o líder do Grupo Semapa consegue atingir o seu objetivo: sentar Ricardo Salgado à mesa das negociações.
Alertado pelas perguntas que o Banco de Portugal fez imediatamente, Ricardo Salgado mandata dois homens do BES Investimento — José Maria Ricciardi, CEO do BESI, e Francisco Cary — para negociar com PQP. E chegam a acordo antes da Assembleia-Geral da ES Control que iria aprovar as contas de 2012.
Pedro Queiroz Pereira já tinha deixado claro em anteriores reuniões da ES Control que não se sentia à vontade com as explicações dadas por Francisco Machado da Cruz, o famoso comissaire aux comptes das diversas sociedades do GES no Luxemburgo, mas recua.
Primeiro, PQP chega a acordo com Ricardo Salgado para lhe comprar todas as participações que os Espírito Santo tinham nas holdings familiares dos Queiroz Pereira. E, depois, tem de aceitar duas contrapartidas:
- Vota favoravelmente as contas da ES Control — as que dizia que tinham buracos sérios;
- E escreve uma carta para o Banco de Portugal com a data de 1 de novembro a informar que a Cimigest, a acionista da ES Control, tinha recebido explicações satisfatórias sobre a qualidade das contas e dava o assunto por encerrado.
“Eu fiz essa pressão toda para que ele [Ricardo Salgado] desaparecesse do meu mapa e deixasse de tentar comprar a minha empresa. O acordo era que eu comparava as posições todas, como comprei, mas deixava de ir ao Banco de Portugal. O acordo tinha uma cláusula de confidencialidade com uma penalidade 300 milhões de euros. Fez parte do acordo eu assinar aquelas cartas e aí fui acusado: “Ah, agora já diz que está tudo bem”. Mas fazia parte do acordo, percebe?”
As palavras premonitórias de Pedro Queiroz Pereira e a “culpa de 99,99% de Salgado”
O final da inquirição a Pedro Queiroz Pereira — que ocorreu a 31 de janeiro de 2018 — antecipa o que se veio a saber posteriormente. A equipa liderada pelo procurador José Ranito já levava três anos e meio de investigação. Ainda demoraria mais de dois anos a terminar a investigação mas naquela altura, em janeiro de 2018, já tinha um ‘desenho’ bastante nítido do que tinha acontecido no BES e no GES.
O Ministério Público não duvidava da responsabilidade concreta de Ricardo Salgado, mas queria saber se PQP, que conhecia como poucos a família Espírito Santo e tinha recolhido informação concreta sobre a gestão do BES e do GES, tinha provas do envolvimento dos restantes Espírito Santo naquela que viria a ficar conhecida no momento da acusação como a “associação criminosa” liderada por Salgado.
“A responsabilidade foi sempre do dr. Ricardo Salgado. Embora o José Manuel Espírito Santo fosse o responsável pelo banco na Suíça, não fazia nada sem o Ricardo Salgado (…) Para mim, a culpa é de 99.99% do Ricardo Salgado. Porque era quem mandava em tudo e agora vem dizer…. A facilidade com que ele atirou para cima do empregado Francisco Machado da Cruz a responsabilidade pela falsificação das contas. Como é possível uma pessoa a fazer isso, percebe? ‘Ah, isso foi o contabilista que se enganou’. A mim o que mais me impressionou mais é que eu tenho mais de 6 mil empregados e eu tenho respeito por essas pessoas. Eu era incapaz de dizer a uma pessoa que ‘Assume tu a responsabilidade disto que foste tu’, como o Ricardo Salgado fez [com Francisco Machado da Cruz]. É mau de mais!”
“Porque é que os outros Espírito Santo não terão visto?”, ainda insistiu a procuradora Cláudia Ribeiro. Mas PQP manteve-se coerente com a sua posição e disse que, tendo em conta “os erros” que estavam em causa, não acreditava que a culpa fosse do contabilista e Ricardo Salgado não tivesse percebido nada. E deu ainda outro exemplo: a falência do Banque Privée Espírito Santo na Suíça, que anteriormente se chamava Compagnie Financiére Espíritio Santo.
“Como é possível que um banco na Suíça, a Compagnie Financiére Espírito Santo, onde eu e centenas de pessoas tínhamos dinheiro e, de repente, o banco tem dificuldades, fecha as portas e não dá para pagar às pessoas os depósitos. Paga-se só 10%, 20%, 30% ou 50%. Um banco tecnicamente falido paga 50%. Aquilo não foi falência, aquilo foi um roubo descarado — que o dinheiro foi para algum lado”.
No final, ficam palavras que podem ser vistas por uns como premonitórias e por outros como de alguém que era encarado como um inimigo de Ricardo Salgado.
“Acho que tudo o que tenho dito e descoberto acho que é exatamente aquilo que se passou. Não sei mais o que dizer mas acho que estão a tratar com uma pessoa doente, que vai mentir até ao fim da vida, que está a claramente a ver se isto se prolonga uma série de anos que é para se calhar morrer antes de chegar a alguma conclusão. Isto é muito mais grave do que aquilo que parece, porque por mais grave que o Ministério Público considere este assunto, eu vou-lhe dizer: ainda vão ter surpresas e muitas!”