Índice
Índice
“Os Pesce tinham concluído havia já muito que, sendo o cemitério de Rosarno o lugar mais óbvio para depositar um cadáver, seria o último sítio onde alguém procuraria. Lá em cima, sepultado por baixo do chão da capela da família, estava o avô de Giuseppina, Angelo Ferraro, assassinado por ter tido uma aventura romântica. Ao lado dele estava Annunziata Pesce, prima de Giuseppina, que traíra o marido e toda a ‘Ndrangheta ao fugir com um polícia. Sequestrada na rua em 1981, em plena luz do dia, fora alvejada no pescoço pelo chefe, Antonino Pesce, com o irmão mais velho dela, Antonio, a assistir. E a recompensa de Antonio pela sua lealdade impassível? Promoção a uma posição dominante no seio da ‘ndrina para ele e para a sua família mais próxima.
Mortes como esta não deixavam dúvidas acerca do preço da traição.”
A família Pesce sempre foi uma das famílias mais poderosas entre toda a máfia calabresa, a ‘Ndrangheta. E, à semelhança das outras que compõem o clã, sempre soube esmagar a dissidência interna com toda a determinação, quer viesse de um jovem imberbe das suas fileiras, quer viesse das suas próprias mães e filhas. Tem sido assim há décadas.
Até que uma das filhas do clã Pesce, Giuseppina, ousou romper com tudo e denunciar a própria família, na esperança de conseguir afastar-se, a si e aos seus filhos, do crime do Sul de Itália. Pesce, juntamente com Lea Garofalo e Maria Concetta Cacciola, compõe uma trindade de mulheres calabresas que viraram as costas às próprias famílias, onde o crime não é apenas parte do dia-a-dia, mas sim modo de vida. Pesce, Cacciola e Denise, filha de Lea, acabaram por colaborar com as autoridades e deram um golpe profundo na ‘Ndrangheta. Duas mulheres acabariam mortas, como Annunziata em 1981. A grande diferença é que, desta vez, Itália importou-se e chorou os assassínios — no funeral de Lea Garofalo, milhares de italianos juntaram-se às cerimónias e protestaram contra a máfia, usando o lema “Vejo, sinto, falo”.
O jornalista Alex Perry ficou impressionado pelo facto de esta história não ter galgado fronteiras. Ao longo da carreira escreveu para publicações como a Newsweek, a New Yorker ou a Time, como correspondente em países asiáticos e africanos; mas foi em Itália que encontrou uma história tão impressionante que uma série de artigos não chegava para cobri-la. Mesmo não falando italiano fluentemente, Perry pediu ajuda a uma tradutora, consultou dezenas de processos, fez muitas entrevistas e decidiu não só homenagear as vidas de Garofalo, Cacciola e Pecce, como também dar a conhecer as raízes profundas da ‘Ndrangheta. É a irmã desconhecida da máfia italiana, que prolifera na sombra e que, garante o britânico, “é a mais poderosa” das organizações de crime organizado vindas de Itália. O resultado está no livro “As Boas Mães” (ed. Vogais), que chega às livrarias no dia três de setembro.
“As pessoas ouviram falar dos sicilianos, da Cosa Nostra, e Hollywood ajudou a isso. A Camorra de Nápoles é vistosa como tudo, os casamentos deles parecem eventos de sociedade que aparecem nos jornais. A ‘Ndrangheta não faz nada disto”, explica o autor ao Observador. “Eu, que sou correspondente internacional e já estive em muitas partes do mundo, nunca tinha ouvido falar deles antes de decidir fazer este livro.” Levanta-se assim a ponta do véu que ainda permanece estendido sobre o submundo da Calábria: um lugar de ruas quase desertas e portas fechadas, onde crianças de 13 anos já não vão à escola, mas sabem disparar armas de fogo, e onde as mulheres são remetidas à sua condição de esposas, mães e donas de casa — nada mais.
Nascer mulher na ‘Ndrangheta, uma sentença de prisão perpétua
A cultura da ‘Ndrangheta relativamente às suas mulheres é a peça fundamental do livro, já que, em parte, foi por encarar as mulheres como cidadãs de segunda que a máfia calabresa foi apanhada na curva, ao ser denunciada publicamente por três delas. “As mulheres não existem na sociedade da ‘Ndrangheta”, resumiu a deputada do Partido Democrático Laura Garavini. “Estão silenciadas. Não podem participar nas atividades da organização. São como objetos.”
Foi por saber isto mesmo que Alessandra Ceretti arriscou uma nova abordagem no combate à máfia calabresa. A procuradora tentou aproveitar as mulheres silenciadas e magoadas que tudo sabem sobre os crimes que se passam à sua volta, mas que são subestimadas pelos maridos e pelos pais. “As Boas Mães” é, por isso, um livro sobre as mulheres que denunciam as suas famílias, mas também sobre a mulher que as leva a denunciá-las, tornando-se personagem de pleno direito. “Alessandra é uma pessoa excecional”, comenta o autor. “Não há muitas miúdas que aos oito anos na Sicília decidam que querem ser procuradoras anti-máfia quando forem grandes.”
Já as histórias de Lea, Giuseppina e Maria começaram como as de tantas outras mulheres da Calábria. Casadas aos 16, aos 14 e aos 13 anos respetivamente, as três mulheres conheceram matrimónios onde as sovas eram procedimento habitual e onde o descanso só surgia a espaços, quando os maridos cumpriam pena na prisão ou andavam desaparecidos durante dias, depois de uma lupara bianca (nome dado aos desaparecimentos realizados pela máfia onde o corpo nunca é encontrado). Quando, numa visita à prisão, Lea sugeriu ao marido, Carlo Cosco, que denunciasse os camaradas, ele apertou-lhe o pescoço até os guardas os virem separar. Sem o apoio do marido, Lea acabaria por pegar na própria filha, Denise, e “desaparecer” — até Carlo conseguir orquestrar uma reconciliação, que acabaria com Lea morta. Coube à filha, adolescente, testemunhar contra o pai e enviá-lo para a prisão.
“A Lea Garofalo era uma personagem tão assertiva, parece que ela foi uma rebelde desde o primeiro momento em que teve consciência de alguma coisa”, recorda Alex Perry sobre o processo de descobrir a história de Garofalo. “Ela foi um caso invulgar e não tinha nenhum exemplo para seguir. E, quando se rebelou, durante muito tempo não pediu ajuda às autoridades, andou em fuga sozinha com a filha. Isso demonstra a sua resiliência, a sua astúcia, a sua inteligência. E também a sua autonomia.”
No caso de Concetta, também havia um histórico de violência familiar, mas a rebeldia desta mulher manifestou-se de forma mais tímida. Quando o marido Salvatore lhe apontou uma arma à cabeça, foi a gota de água que a fez queixar-se ao pai. Este, contudo, respondeu-lhe apenas “é o teu casamento e a tua vida. Desenvencilha-te.” Concetta acabaria por fugir e denunciar a família às autoridades, mas a chantagem emocional dos Concetta foi mais forte e a filha acabou por regressar. Daí à sua violenta morte, pouco tempo passou. “A Maria Concetta Cacciola é uma personagem muito mais passiva”, diz Perry, que considera Cacciola a mulher destas três que tem a história mais “trágica”. “Ela nunca esteve totalmente em controlo do que estava a fazer, só conseguiu durar dois meses em fuga até ceder e voltar para a sua família, mesmo sabendo que vai ser morta — mas fá-lo para voltar para junto dos filhos.”
Já Giuseppina não teve exatamente o mesmo destino. Uma “gangster de trazer por casa”, nas palavras de Perry, a sua motivação para colaborar com os procuradores resume-se à tentativa de “conseguir a vantagem para si e para os seus filhos”, segundo o escritor. O que, para Perry, não faz dela menos corajosa.
Embora aos 15 anos já fosse mãe e tenha tido de criar os três filhos praticamente sozinha, enquanto o marido Rocco entrava e saía da prisão, Giuseppina não aceitou aprisionar-se apenas entre as tarefas domésticas e rapidamente forçou a família — uma das mais poderosas de toda a ‘Ndrangheta em Rosarno — a deixá-la participar nas atividades do grupo. Impedida de participar nos crimes violentos da organização, Giuseppina tratava da contabilidade e passava recados. O volte-face dar-se-ia com uma operação policial onde foi apanhada na rede e pela qual o seu caso amoroso com um amante foi exposto, deixando-a vulnerável à ira da família. Para evitar ter o mesmo fim da prima Anunzziata, morta a tiro no meio da rua, Giuseppina decidiu colaborar com as autoridades. “Se tentarmos tirar uma lição deste livro, o que sabemos é que a única que sobrevive é a que, na verdade, é a mais calculista e mais fria. Aí está uma mensagem um pouco horrível”, confessa Perry, de olhos vidrados no tampo da mesa, como que olhando para o seu próprio livro a uma nova luz.
Certo é que, de forma apaixonada ou calculista, as três mulheres protagonizam uma história que rompe com tudo o que é habitual para quem nasceu mulher em berço da ‘Ndrangheta. “Estamos numa altura em que há muitas histórias sobre a coragem e a assertividade feminista, o #MeToo e etc. Mas quando ouvimos falar em duas atrizes de Hollywood a discutirem sobre o facto de não se apoiarem mutuamente, parece-me que essa pode ser uma discussão um pouco trivial entre duas mulheres privilegiadas”, reflete o autor, que diz ter encontrado nas histórias destas mulheres um novo significado para a palavra “feminismo”. “Aqui estão mulheres que expuseram uma das maiores organizações criminosas do mundo e que enviaram alguns dos homens mais poderosos do seu clã para a prisão. Isto sim é feminismo do caraças!”
Da infância isolada aos ritos de iniciação
O caldo onde Garofalo, Cacciola e Pesce foram criadas tinha todos os ingredientes para que as três mulheres não se virassem contra a própria família: “Estas são comunidades muito isoladas, em aldeias muito pequenas, onde a língua é outra. Sair dali é muito difícil e é quase impossível quando se foi retirado da escola aos 12 anos e quando as únicas pessoas que conhecemos ou são da nossa família ou estão dentro do grupo”, analisa o autor. “O que estas mulheres têm em comum — e que é raro — é a capacidade de imaginarem uma vida diferente para si. O contraste entre elas e as próprias mães é muito grande: as mães delas estão dentro do culto e não conseguem ver para lá dele. Na prática, são elas próprias os carrascos desse culto.”
Tudo começa no nascimento. Aos bebés é dada a escolher uma chave — que representa o Estado — e uma faca — que representa a ‘Ndrangheta —, com as mães a incentivarem os filhos a aproximarem-se da faca. Chegados ao final da infância, o isolamento já se agudizou: neste mundo tão fechado, garante Perry, a maioria dos adolescentes não ouve a Lady Gaga e prefere antes dançar ao som da Tarantella, música do folclore local, tocada em ritmo acelerado. Aos 15 anos, a maioria das raparigas já fugiu com os namorados e foi dada em casamento pela família, entregues à domesticidade. Os rapazes, esses, ou já começaram a ser preparados para o futuro dentro da ‘Ndrangheta ou já estão imersos no dia-a-dia da organização.
Incentivado pelo caso de Maria Concetta Cacciola e dos seus filhos, o juiz Roberto di Bella decidiu iniciar uma cruzada para retirar os filhos a alguns clãs da ‘Ndrangheta por maus tratos. Com a realizadora Helen Fitzwilliam, partilhou alguns dos casos mais chocantes que encontrou ao longo da sua carreira: “Um chefe da máfia foi apanhado nas escutas a dizer ao seu filho mais velho que ele teria o mesmo estatuto que o pai aos 14 anos. Noutra escuta, ouve-se um pai e o filho de 12 anos a terem um momento de convívio disparando uma Kalashnikov. As crianças são usadas como vigias durante assassínios e as raparigas ajudam a adulterar e a embalar droga. Alguns dos adolescentes, dos 12 aos 16 anos, que apareceram no seu tribunal tinham assassinado ou roubado, incendiado carros da polícia ou exigido dinheiro recorrendo a ameaças. ‘Comportavam-se como crianças-soldado’, disse-me o juiz.”
Muitos deles já terão passado pelo “batismo”, o ritual de iniciação da ‘Ndrangheta que se baseia no folclore local. O iniciado, acompanhado de um padrinho, coloca-se em “posição de ferradura” enquanto escuta o código de honra que terá de seguir, anunciado pelo capo società. De seguida, o seu dedo é cortado e uma gota do sangue é derramada sobre uma imagem do arcanjo São Miguel, santo padroeiro da ‘Ndrangheta. A imagem é depois queimada, enquanto o capo pronuncia as palavras “tal como o fogo queima esta imagem, também tu deverás arder se te manchares com a infâmia”.
Para Perry, estes ritos, entretanto expostos em vídeos da polícia divulgados em 2014, não passam de uma artimanha da própria organização, uma mitologia criada pela própria ‘Ndrangheta e não uma tradição ancestral. “Esta lenda, esta ideia dos ‘homens de honra’, é tudo uma mentira! É uma mentira, uma invenção”, diz, tão exasperado quanto a procuradora Ceretti, que se indigna com a romantização da máfia feita por filmes como ‘O Padrinho’ ou ‘Tudo Bons Rapazes’.
Os rituais, contudo, têm um propósito muito concreto, como o próprio autor reconhece: “Isto só existe porque não é possível manter uma organização chamando toda a gente e perguntando-lhes ‘então, que coisa horrível é que vamos fazer hoje?’. Isto não inspira ninguém. Mas se lhes dissermos ‘temos uma grande herança que vem desde os Templários e blá blá blá’, subitamente tornámo-nos guardiões de uma tradição e servidores honrados dessa tradição.”
O segredo é a alma do negócio de milhões
As mortes de Garofalo e Cacciola são apenas a ponta de um icebergue de violência da ‘Ndrangheta para com as suas mulheres, sujeitas a espancamentos rotineiros pelos maridos e ameaçadas pelos próprios pais caso ponderem a possibilidade de divórcio. Numa organização onde apenas se entra por laços de sangue ou casamento, é fulcral garantir que a família se mantém como um compartimento estanque, de onde não sai informação que possa pôr em causa a família.
A omertà, o código de silêncio da máfia, é particularmente levado a sério na ‘Ndrangheta, onde a quebra do código representa não apenas uma traição à máfia, mas à própria famiglia. Só assim se explica que Maria Concetta Cacciola tenha acabado morta com a garganta queimada por ácido, depois de ter tentado alcançar o mundo exterior — primeiro pelo Facebook, onde conheceu o amante, depois através dos procuradores, com quem decidiu colaborar.
“O sucesso deles assenta no secretismo. E o secretismo é algo muito difícil de manter, já que comunicar é um impulso humano”, avisa Perry. “O que é de génio por parte da ‘Ndrangheta é que eles aplicam esse secretismo através da família. E isso torna-se uma ferramenta incrivelmente poderosa, porque não se trai a própria mãe, não se trai o próprio irmão e porque o pai será sempre uma figura de autoridade na vida destas mulheres. Quando se trai a família, especialmente num país como Itália, onde a família está no centro de tudo, abre-se a possibilidade de se vir a viver uma vida bastante vazia e sem sentido.”
Com raízes que remontam ao final do século XIX, a ‘Ndrangheta (palavra que vem do grego andragathía, sinónimo de heroísmo ou virtude) desenvolveu-se na Calábria, a região isolada do Sul de Itália correspondente à “ponta da bota” que é o país. Os seus métodos são em tudo semelhantes aos da Cosa Nostra ou da Camorra, funcionando em clã fechado, alimentando-se do tráfico de droga e da extorsão e apoiando-se na omertà para enganar as autoridades. A grande diferença está no facto de a ‘Ndrangheta ter florescido na sombra, conseguindo aplicar o código de silêncio de forma mais eficaz.
A prova disso mesmo está no número de pentiti (nome dado aos membros da máfia que colaboram com as autoridades), que no caso da ‘Ndrangheta não deverá ir além de umas quantas centenas, segundo explica o jornalista especialista em Itália e correspondente da Economist no país, John Hooper. Dados da Justiça italiana de 2008, citados pela Der Spiegel, davam conta de apenas 42 pentiti da ‘Ndrangheta — contrastando com os mil da Cosa Nostra e os dois mil denunciantes da Camorra.
É graças a esta coesão interna que a ‘Ndrangheta tem conseguido aumentar exponencialmente o seu negócio. A partir da pequena base na Calábria e com o apoio dos membros da comunidade espalhados por todo o mundo, atua em centenas de países e regista um volume de negócios que poderá corresponder a cerca de 3,5% do PIB italiano. É responsável por cerca de 70% do tráfico de cocaína na Europa, protagoniza uma guerra entre máfias no Canadá e vende até armas para o conflito na Síria.
“Foi uma descoberta incrível, até ao nível pessoal”, admite o autor de “As Boas Mães” sobre o nível de sofisticação do crime da ‘Ndrangheta. “Imaginar que existe este grupo criminoso internacional com presença em 120 países e uma receita entre os 50 e 100 mil milhões de euros e nenhum de nós ter ouvido falar disto… Estamos numa era em que, mais do que nunca, distraímo-nos com o espetáculo, seja com o terrorismo, com Donald Trump ou com os icebergues a derreter. Estamos menos atentos aos fenómenos organizados, subtis e deliberados.”
Um dos elementos mais fascinantes do modus operandi da ‘Ndrangheta é a forma como espalhou os seus tentáculos um pouco por todo o mundo, aumentando assim a sua receita para valores duas vezes superiores aos da Cosa Nostra. Parte desse sucesso assenta no facto de 80% dos seus lucros virem de fora de Itália, segundo Hooper, contra os 40% dos rivais. As estratégias para fazer lucro são muitas e variadas, como Perry explora na sua própria obra:
“A ‘Ndrangheta procurara sempre debilitar o poder e a autoridade estatal italianos. Estava agora a fazer o mesmo noutras partes do mundo. Fazia-o comprando grandes frações de dívida de países estrangeiros e ameaçando depois esses países com a venda a desbarato dessa dívida, promovendo com isso a reputação de incumprimento financeiro. A única opção de uma nação devedora era consentir que a ‘Ndrangheta usasse o seu território como base e sede de branqueamento de dinheiro. Até então, os procuradores tinham recolhido provas de que a ‘Ndrangheta chantageara desta maneira a Tailândia e a Indonésia.”
Mas a grande fatia dos rendimentos da organização vem mesmo do tráfico de droga, sobretudo via América Latina. Países como a Alemanha — e Portugal — já responderam com operações policiais a fim de tentar mitigar o uso dos seus portos como canais de entrada da droga da ‘Ndrangheta na Europa. “Não há outro grupo criminoso com a mesma capacidade de se imiscuir em ambientes sociais pouco familiares através da infiltração no dia-a-dia”, resumiu a Hooper o procurador de Reggio Calabria, Federico Cafiero de Raho. “A ‘Ndrangheta coloniza.”
Em “As Boas Mães”, Perry dá conta de que como a máfia calabresa subornou “quase por inteiro” a alfândega de Moçambique e o próprio Governo da Guiné-Bissau, país onde “soldados afastavam o tráfego das autoestradas públicas para que os aviões dos narcotraficantes pudessem aterrar.” As ex-colónias serviriam de ponto intermédio entre o Brasil, de onde a droga seria enviada, e Portugal — por onde entraria na Europa. Um relatório da Europol de 2009, citado pelo Diário de Notícias, atribuía a Portugal um “papel significativo” na rota da droga da ‘Ndrangheta, enquanto que o Expresso noticiava há apenas dois anos que a Polícia Judiciária já investiga a presença do grupo em Portugal, que se alastra também às apostas online em jogos de futebol, desde 1991.
Que os governos europeus estão mais atentos à ação da ‘Ndrangheta, Alex Perry não tem dúvidas: “A grande exceção é o meu próprio país, o Reino Unido. É a máquina de lavar e o motor financeiro não apenas da ‘Ndrangheta, mas de grande parte do crime organizado global”, lamenta o jornalista. “Espero que um dos efeitos do livro possa ser o de levar as pessoas a questionarem-se sobre a presença do crime organizado nas suas vidas”, acrescenta. E deixa como conselho um exercício que ele próprio passou a fazer: “Toda a gente sabe de um exemplo de uma loja na esquina que nunca tem clientes, mas que, no entanto, consegue pagar uma renda caríssima… O que é que se passa aí? Ou aquele político, de onde é que lhe vem o dinheiro? Deem ouvidos às vossas dúvidas interiores e tentem arranjar respostas a essas perguntas.”
‘Ndrangheta, “o paladino do Sul pobre” ou “um cancro que se alastrou a toda a Itália”?
Nada é por acaso na ‘Ndrangheta, da mesma forma que a sua riqueza disfarçada, escondida atrás de roupas simples e de uma região sub-desenvolvida, cumpre apenas o propósito de preservar a continuidade do grupo. A Calábria é ainda hoje uma das regiões mais pobres de toda a Itália, onde o desemprego entre os jovens atinge os 40% e o PIB per capita é o mais baixo de todo o país. A máfia tem uma explicação simples para esta situação, explorando uma ferida aberta da história do país: a culpa é “do Norte”. “A verdade é que o Governo ‘do Norte’ e a União Europeia despejaram dinheiro na Calábria e a máfia absorveu todo o que pôde e esmagou qualquer tipo de desenvolvimento”, acusa Perry. “A ‘Ndrangheta apresenta-se como o paladino do Sul pobre, mas a verdade é que é precisamente o oposto.”
Os casos de má gestão de fundos europeus sucedem-se. Desde 2007, a UE enviou mais de três mil milhões de euros para projetos na Calábria, como o da construção do porto de Gioia Tauro. Antes disso, nos anos 90, a comunidade europeia disponibilizou 10 mil milhões de euros, quase todos tendo em vista a auto-estrada A3. Ambos os projetos viram-se sugados pela própria ‘Ndrangheta, que explora as empresas envolvidas nos projetos através da aplicação do pizzo, o chamado “imposto” pago à máfia para garantir “que tudo corre pela melhor”.
“Não vejo atenção suficiente a isto”, alerta Alex Perry, que investigou fenómenos como a infiltração de grupos da máfia em abrigos para refugiados em Roma, a fim de absorverem fundos europeus. “O objetivo é só enviar o dinheiro para poder dizer ‘aplicámos ‘x’ milhões em infraestruturas ou em energias alternativas’. A ‘Ndrangheta olha para o Governo como a maior galinha dos ovos de ouro que existe. É por isso que quer entrar na política.”
A infiltração da máfia na política é já um clássico em Itália e também a ‘Ndrangheta tenta molhar o pé no pântano das ligações perigosas. Em 2012, três membros do conselho regional da Calábria já tinham sido detidos por suspeitas de ligação a grupos mafiosos. O presidente da região à altura, Giuseppe Scopelliti, acabou por ser condenado em 2014 a seis anos de prisão e banido de exercer cargos públicos, depois de os investigadores terem descoberto uma infiltração total da ‘Ndrangheta na assembleia municipal de Reggio Calabria e um apadrinhamento político da organização ao antigo presidente da câmara.
Foi este mesmo Scopelliti que apadrinhou Matteo Salvini, líder da Liga e atual ministro do Interior italiano, que concorreu às eleições pela região da Calábria — levantando suspeitas sobre até que ponto o próprio Salvini estaria ligado à ‘Ndrangheta. Pouco importa que até há pouco tempo a Liga se chamasse Liga do Norte e defendesse uma separação do Sul empobrecido: “A prioridade era ter o maior número de votos possível. Neste sentido, Scopelliti representou uma sorte para Salvini. Não importa que Scopelliti tenha sito eleito com o apoio dos clãs, como as investigações revelaram. Scopelliti era popular e podia contar com centenas de apoiantes”, resumiu ao Guardian o jornalista calabrês Giovanni Tizian. E essa não é a única ligação entre a Liga e a ‘Ndrangheta: de acordo com o La Repubblica, Vincenzo Gioffrè, candidato não eleito do partido, teve, durante anos, relações comerciais com membros da organização, incluindo com a família Pesce.
Ao mesmo tempo, Salvini diz com todas as letras em eventos públicos que a ‘Ndrangheta é “uma merda, um cancro que se alastrou por toda a Itália”. Mas o escrutínio não parece ser tão apertado entre os seus próprios colaboradores. Para Perry, esta não é uma atitude que surpreenda e dá um exemplo do nível de infiltração da máfia calabresa em todos os setores da sociedade: “Uma vez, durante a elaboração deste livro, estava a tentar encontrar-me com uma pessoa e foi-me dito que, para tal acontecer, teria de pagar um suborno. Quando cheguei ao local, a pessoa a quem eu teria de pagar era responsável de uma associação anti-máfia. Ou seja, a associação era gerida pela própria máfia”, comenta soltando uma gargalhada, atónito com o insólito da situação.
As lições das mulheres da ‘Ndrangheta
Talvez seja precisamente por este nível de infiltração na sociedade que as condenações a membros da máfia escasseiam, muito embora Itália seja um país onde a Justiça tem autorização para fazer escutas quase indiscriminadas às organizações de crime organizado, seja às chamadas telefónicas, seja nas casas. Os casos de Garofalo, Concetta e Pesce resultaram em condenações concretas, algumas delas de capos de alto nível. Só no clã Pesce, 42 pessoas foram condenadas, incluindo o chefe do clã (Antonino Pesce, tio de Giuseppina). Muitos dos condenados eram familiares próximos de Giuseppina, como o pai, a mãe, o marido e dois irmãos.
Os três casos provocaram um abalo profundo na ‘Ndrangheta, que viu pela primeira vez as suas fragilidades serem expostas em público. E a organização retirou daí as suas lições, como explica Perry: “Os clãs mais espertos já perceberam que a forma como têm tratado as mulheres foi um erro”, diz o autor. Mas a aprendizagem também se traduziu numa maior adaptação noutros ramos, como a nível financeiro, colocando todo o dinheiro adquirido fora de Itália — lavando o dinheiro no estrangeiro, por exemplo em Londres. “Neste sentido, o livro tem um final ligeiramente deprimente: esta organização perdura e adapta-se”, diz o autor. “O calabrês típico, agricultor de laranjas, está a desaparecer e a ser substituído por um negócio internacional de gestão de ativos. Quando se faz 50 a 100 mil milhões por ano durante 30 anos, já não é preciso fazer mais dinheiro. Só é preciso garantir que se pode ficar com ele e fazê-lo crescer.”
“As Boas Mães” de Perry, contudo, não trouxeram consigo apenas lições para a ‘Ndrangheta, sobre como aprender a sobreviver melhor. Isso mesmo está escrito no livro, com números bastante concretos:
“Mais notável, talvez, era o número de mulheres da ‘Ndrangheta a seguirem o exemplo das três mulheres: 15, mais do que as que tinham testemunhado em quatro décadas de julgamentos da Cosa Nostra. O tribunal de menores de Di Bella, em particular, tornara-se um pólo de atração para mulheres dissidentes da ‘Ndrangheta. À medida que os filhos — mais de 30 no final de 2016 — se viravam contra os pais, as mães tomavam o partido dos filhos e não dos maridos.”
Perry admite que a história das três mulheres é tão inspiradora que os seus efeitos não ficam limitados à máfia. Num país como Itália, onde os índices de igualdade de género são dos piores dentro da UE, a rebeldia de Garofalo, a coragem de Cacciola e a emancipação de Pesce tocaram fundo em muita gente: “Isto não é só sobre a máfia. É sobre muitas mulheres que viram as suas próprias vidas refletidas nas vidas destas mulheres. E foi por isso que o protesto contra a máfia [depois da morte de Garofalo] se tornou também um protesto contra o machismo”, sentencia Perry.
São os sinais positivos a retirar de um fenómeno que está longe de ser erradicado do país. Por mais escutas que Roma faça, por mais procuradores dedicados que surjam, por mais mulheres que decidam entregar os maridos, a máfia perdurará, crê Perry. “Citando Franco Roberto, procurador anti-máfia, aquilo que a Justiça está a lutar contra é a própria natureza humana, a corrupção das nossas almas. Só no dia em que conseguirmos dizer que os seres humanos são capazes de resistir ao enriquecimento é que podemos ter a certeza de que a máfia já não ganha.”