“É uma tristeza trabalhar tantos anos num sítio e ver isto acontecer”. As palavras são de João Mendes, funcionário do Cartola durante cerca de 15 anos. Mendes esteve na fase inicial, na primeira metade dos anos 90. Um período de grande fulgor do café. E depois assistiu, no local, à mais recente queda. Não por falta de público, mas por dívidas. Por muitas dívidas.
Praça da República, coração de Coimbra, colada ao Jardim da Sereia e a poucos minutos a pé da Universidade ou da Baixa da cidade. É precisamente aqui que se encontra o edifício do café Cartola. Até há alguns meses, era hábito ver a esplanada cheia, com cafés e cervejas a circularem com rapidez. Era um ponto de encontro habitual da comunidade estudantil ou de outro público da cidade. E, pela localização privilegiada, local de passagem de turistas. Hoje reina o silêncio e o abandono. Por muito tempo?
Recuemos aos primórdios. O café Cartola foi inaugurado em 1992. Esteve aberto ininterruptamente durante vinte anos, sempre com a concessão da Restaurante Barata Lda. Os grandes lucros eram mais aparência do que realidade. As dívidas acumularam-se, as rendas deixaram de ser pagas e a empresa entrou em insolvência. No final de 2012, o café era devolvido à Câmara e fechava pela primeira vez.
Para o Cartola poder voltar ao ativo, foi aberto um novo concurso público. O valor mínimo da renda era de 1.500€ mensais, mas a proposta vencedora, apresentada pela empresa Good Vibes, superou os 14.000€. A reinauguração ocorreu em Fevereiro de 2013 e os funcionários anteriores voltaram ao serviço. “Tive esperança que desta vez não iria haver problemas financeiros”, refere João Mendes. Mas eles voltaram. E de forma bem mas rápida do que da primeira vez.
“Se a renda passou a ser três ou quatro vezes superior à anterior e a mais antiga não era anormalmente baixa, então houve má avaliação pela empresa concessionária”. A análise é do atual Presidente da Câmara Municipal, Manuel Machado. No mesmo sentido é a posição de António Baião, do Sindicato de Hotelaria do Centro: “Era uma proposta exagerada e impraticável”.
Exagerada ou não, o certo é que as rendas em atraso se foram acumulando. “O bom ambiente de trabalho manteve-se, mas as pessoas falavam muito e a uma certa altura percebeu-se que as coisas não estavam a correr bem”, confessa João Mendes. Um cenário negro que se foi tornando mais denso e com um fim natural. Um risco mal ponderado? Uma noção incorreta das receitas do espaço? Uma estratégia económica menos óbvia e que não correu bem? Tentámos várias vezes falar com a empresa concessionária, mas nunca o conseguimos.
Seja como for, o representante sindical estende as responsabilidades à anterior autarquia. “A câmara não devia ter escolhido uma proposta que não tinha condições para ser cumprida”, aponta António Baião. Críticas rebatidas pelo anterior líder municipal, João Paulo Barbosa de Melo: “A escolha com base em critérios financeiros é inevitável, até porque a qualidade é muito mais difícil de avaliar tratando-se de um café”. E, quanto ao valor da proposta, o antigo autarca resume assim: “É o mercado a funcionar”.
Março de 2014: após reiterado incumprimento, a Câmara toma novamente posse do Cartola. Resultado: o café volta a fechar. Tal como em 1992, a autarquia já era novamente liderada por Manuel Machado. “Enquanto criador da coisa, não foi com conforto que vi a criatura a definhar”, assinala o Presidente da Câmara. E o processo segue agora nos tribunais, incluindo, de acordo com o Sindicato de Hotelaria, queixas por salários em atraso.
Novo fecho, novo concurso, nova gerência. Mas não de forma célere. O concurso para nova concessão foi imediatamente aberto, mas cancelado algum tempo depois. Uma discrepância nos prazos de candidatura de dois editais foi a razão para tal. “Quero que tudo decorra dentro dos regulamentos e do quadro legal em vigor”, justifica Manuel Machado. E, entretanto, foi-se arrastando o processo e agravando-se a incerteza profissional dos funcionários do café. “Nunca pensei que, depois de tantos anos a trabalhar, fosse ficar desempregado”, afirma João Mendes.
O sindicalista António Baião lamenta o impasse: “Enquanto a nova concessão não é decidida por concurso, achamos que o Cartola podia estar aberto e que poderia ter havido uma adjudicação direta”, sugere. Uma hipótese negada pelo Presidente da Câmara: “Não sou especialista em direito comercial, mas não creio que fosse possível”. E acrescenta: “Não tenho nenhum gosto em ter um bem público sem ser usado e sem ser rentável. Mas, quando me acusam de que a câmara está a perder dinheiro, eu respondo: «Ninguém perde o que não tem»”.
Por agora, as mesas e as cadeiras do Cartola estão recolhidas no interior. Não há grandes mostras exteriores de degradação, até porque o café está colado a um espaço do Turismo de Coimbra, que é preciso preservar. Mas a Praça da República fica mais escura e perde uma das mais imponentes esplanadas e um dos espaços diurnos e noturnos de referência. Uma situação lamentada por quem viveu diariamente o espaço. “É uma pena ver isto assim”, refere João Mendes. “Uma tristeza”, acrescenta Daniel Fernandes, outros dos velhos funcionários do Cartola, de passagem por ali.
Entretanto, sai mais um concurso para a mesa 0 do Cartola. O processo está adiantado. Surgiram cerca de dez propostas, que estão agora a ser analisadas pelo júri. O principal critério é novamente de ordem financeira e há propostas não muito distantes da que foi apresentada pela Good Vibes. Algo que, para o anterior Presidente da Câmara, João Paulo Barbosa de Melo, legitima de forma clara a escolha anterior. “Se há vários concorrentes que acham que o valor é exequível, quem sou eu para achar o contrário?”, questiona.
Para além da falta que um espaço destes pode fazer à cidade, há também a questão humana, que se prende com as vidas dos funcionários do café. “Esperamos que a câmara salvaguarde os direitos dos trabalhadores”, avisa o sindicalista António Baião. “Tanto quanto a lei o permite”, responde Machado. Concretizando de forma mais clara: “Desejo que eles lá continuem a trabalhar, mas isso é enquanto amigo de alguns deles, enquanto morador e enquanto utente do café. De resto, isso é uma questão entre a nova gerência, o sindicato e os funcionários e não diz respeito à câmara”.
Aconteça o que acontecer, o representante do Sindicato de Hotelaria garante que, no dia em que o Cartola reabrir, “quem dos cinco trabalhadores mais antigos quiser voltar, vai estar presente”. João Mendes é um deles: “Vou-me apresentar ao serviço nesse dia”. Tem a ambição de voltar a trabalhar no café da Praça da República, não só pela ligação ao espaço, mas por sentir na pele o drama do desemprego. Mas tem muitas dúvidas sobre o que vai acontecer e sintetiza-as numa frase em aberto: “Vamos ver o que vai dar”.
“Quando irá reabrir o Cartola?”. É uma pergunta que muitos farão em Coimbra. O Presidente da Câmara Municipal começa por ser relativamente evasivo: “O mais rapidamente possível, mas sem precipitações ou atropelos”. E destaca a necessidade de, quando tudo estiver decidido, haver pequenas obras, até para satisfazer a vontade da futura gerência. Mas, quando lançamos a data de Janeiro de 2015, a resposta é bem mais concreta: “Só se houver uma hecatombe é que não está aberto antes disso”. Será que sim? O futuro o dirá.