Os especialistas são unânimes. Uma das razões que está a contribuir para o aumento dos casos graves de gripe e para a escalada dos internamentos hospitalares é o atraso na vacinação contra a gripe, registado na época vacinal em curso, e cujas consequências já são visíveis para os grupos de risco — idosos e doentes crónicos. Para esse atraso, terá contribuído a demora na entrega das vacinas por parte dos laboratórios, no início do outono, mas também a mudança na estratégia de vacinação — que, este ano, passou a incluir as farmácias. Embora, no final de dezembro do ano que agora terminou, as taxas de vacinação já estivessem em linha com as de 2022/2023, Portugal demorou, nesta época gripal, mais um mês a atingir esses níveis, o que prejudicou a proteção da população contra o vírus Influenza e contribuiu para o aumento dos internamentos por gripe, nomeadamente em Unidades de Cuidados Intensivos, sublinham os especialistas ouvidos pelo Observador.
Segundo os últimos dados da Direção Geral de Saúde, a 26 de dezembro, Portugal tinha vacinado cerca de 75,5% das pessoas com mais de 80 anos, 71,5% das pessoas na faixa etária entre os 70 e os 79 anos e 47% das pessoas entre os 60 e os 69 anos. Os dados estão praticamente em linha com os valores do ano passado. O problema é que foram atingidos com um mês de atraso. Na época 2022/2023, a 20 de novembro, estavam cobertos pela vacinação 75% dos idosos com mais de 80 anos e 71% dos idosos entre os 70 e os 79 anos — valores que, em 2023, só se verificaram já no final de dezembro.
Vacinação tardia já não evitou aumento da pressão hospitalar
Um atraso que está a ter consequências, com o aumento dos casos graves e dos internamentos por gripe. “A menor taxa de cobertura vacinal [antes de dezembro] contribuiu indiscutivelmente para o aumento dos internamentos“, sublinha ao Observador o pneumologista Filipe Froes. “Quando há menores taxas de cobertura vacinal, as pessoas têm maior risco de infeção e de formas graves da doença. Isso vai repercutir-se num maior número de pessoas internadas nas enfermarias em cuidados intensivos”, explica o especialista.
“No final de novembro, não tínhamos uma epidemia de gripe e no final de dezembro já tínhamos. Quanto mais cedo tivéssemos vacinado as pessoas, mais cedo as teríamos protegido”, realça o presidente da Associação Portuguesa de Medicina Geral e Familiar. Opinião também partilhada pelo intensivista Carlos Meneses de Oliveira. “Se tivéssemos atingido uma taxa de vacinação superior antes desta fase de gripe, não teríamos esta pressão sobre os hospitais”, realça o especialista.
“Sabemos que a vacinação não é 100% eficaz mas previne a infeção e diminui a gravidade dos casos. Se tivéssemos taxas de vacinação superiores, teríamos menos casos graves e menos pessoas a recorrer aos sistema de saúde”, reforça Nuno Jacinto, em declarações ao Observador.
No final de novembro de 2023, a cobertura vacinal era inferior à de 2022. Estavam vacinadas apenas 66,4% das pessoas com mais de 80 anos (contra 75% em 2o22) e 62,3% das pessoas entre os 70 e 70 anos (tinham sido 71% na época anterior).
“Podemos dizer que a diferença é de apenas 10%, mas são 10% de dois milhões de pessoas acima dos 70 anos, que representam 250 mil pessoas. Se um terço dessas pessoas tiver gripe, temos milhares de casos graves e internamentos a mais “, explica Nuno Jacinto, sublinhando que o atraso na vacinação está diretamente relacionado com o aumento da pressão sobre os hospitais. “Tínhamos capacidade de ter melhores números mais cedo“, diz ao Observador.
A atual época vacinal arrancou com três semanas de atraso, a 29 de setembro (quando, em 2022, se tinha iniciado a 7 de setembro). Em causa esteve um problema com o fornecimento mundial de vacinas contra a gripe, com os laboratórios a demorarem mais do que o habitual na entrega das doses. O Observador contactou a Viatris (a antiga Mylan), que é responsável pela maioria do abastecimento em Portugal, para perceber as razões do atraso na produção das vacinas, mas não obteve resposta.
Médicos apontam insuficiências da vacinação nas farmácias
Houve ainda, em 2023, uma outra alteração relevante: as farmácias entraram no processo de vacinação, com a responsabilidade da maior parte das inoculações a ser transferida dos centros de saúde para estes locais, numa lógica de maior proximidade e de melhoria do acesso à vacinação.
No entanto, a nova estratégia acabou por prejudicar o processo vacinal, dizem os médicos, devido, entre outros motivos, à forma de agendamento da vacinação (preferencialmente por via eletrónica). “Concordo com a extensão da vacinação às farmácias, mas baseou-se muito na necessidade de agendamento, totalmente assente em meios informáticos e que não foi a forma de agendamento mais indicada para a população mais idosa”, diz Filipe Froes.
Segundo o site das Farmácias Portuguesas, o agendamento só poderia ser feito presencialmente ou por telefone se a farmácia não tivesse disponível o agendamento online (quase todas disponibilizam esse serviço). “Devia ter havido uma maior capacidade para detetar e corrigir falhas, isto é, detetar alguns problemas das pessoas mais idosas em acederem às plataformas eletrónicas e proporcionar-lhes métodos alternativos, como chamadas telefónicas”, realça o pneumologista do Hospital Pulido Valente.
Outro fator que retirou eficácia ao processo foi, apontam os especialistas, a falta de proatividade das farmácias, que, ao contrário dos centros de saúde, não têm uma lista de utentes e, portanto, não contactam diretamente as pessoas que ainda não se vacinaram. “A entrada das farmácias [no processo] foi justificada como um fator de melhoria do acesso. Mas há uma diferença: quando a vacinação era feita nos centros de saúde havia uma atitude proativa das equipas para convocar aqueles que ainda não tinham sido vacinados e para aproveitar as oportunidades em que os utentes iam ao centro de saúde para se vacinarem. Ao passar para as farmácias, ficou tudo do lado dos utentes”, refere Nuno Jacinto, que pede uma análise à atual época vacinal. “Temos de analisar se esta estratégia faz sentido e se é para continuar. Provavelmente teremos de apostar num sistema híbrido”, diz o médico.
“A estratégia adotada pela Direção Executiva do Serviço Nacional de Saúde [DE-SNS] para a vacinação sazonal contra a gripe e contra a Covid-19 em farmácias comunitárias não produziu os efeitos esperados, tendo colocado Portugal bastante abaixo da cobertura vacinal alcançada em anos anteriores, quando esta era assegurada pelos centros de saúde”, disse a Associação Nacional de Unidades de Saúde Familiar, em comunicado. “A 20 de novembro de 2023, antes do início das fases mais críticas da gripe, Portugal, pela primeira vez em cinco anos, não tinha taxas de vacinação seguras nem da gripe, nem da Covid-19”, apontou a associação.
Associação de USF diz que a estratégia de vacinação em farmácias falhou
Já as farmácias fazem uma leitura diferente. “O esforço colaborativo foi profícuo e contribuiu para as elevadas taxas de cobertura vacinal que temos neste momento. Mais de 70% das vacinas contra a gripe foram administradas nas farmácias comunitárias. Isto indica a preferência da população pelas farmácias, dada a acessibilidade e os horários alargados de funcionamento”, diz ao Observador a presidente da Associação Nacional de Farmácias, Ema Paulino.
A responsável lembra que, em 2023, a entrega das vacinas por parte dos laboratórios foi feita mais tarde e que, numa primeira fase, no mês de setembro, as doses eram limitadas. Apesar disso, Ema Paulino destaca o facto de Portugal ter, no final de dezembro, taxas de vacinação idênticas às do ano passado.
A verdade é que, no final de novembro, e preocupada com as baixas taxas de vacinação verificadas, a Direção Executiva do SNS deu indicações aos centros de saúde para convocarem as pessoas com mais de 60 anos (que, até aí, se deveriam vacinar nas farmácias). “Não podemos deixar de reconhecer que o processo de adaptação ao novo modelo da campanha trouxe alguns desafios”, referia um dos membros da DE-SNS. “Chegou a indicação dizendo: ‘a cobertura não é aquela que tínhamos atingido o ano passado. A indicação inicial era para vacinarem apenas as pessoas com menos de 65 anos com comorbilidades, mas, agora, aproveitem e vacinem toda a gente, convoquem e façam vacinação oportunística’. Ora, nesta fase, já o comboio estava em andamento há muito tempo“, sublinha Nuno Jacinto, lembrando que, numa fase inicial, “se aparecesse [no centro de saúde] alguém com 80 anos e que não estivesse vacinado, não havia vacina para lhe dar”.
Foi depois da entrada em cena dos centros de saúde que as taxas de vacinação atingiram os níveis habituais. A ativação dos centros de saúde para apoio levou a uma “maior vacinação” e a “mais agendamentos nas farmácias (onde estavam as vacinas)”, sublinha a Associação das Unidades de Saúde Familiares. Mas Ema Paulino contraria essa ideia. “Não houve nenhuma semana em que os centros de saúde tenham vacinado mais que as farmácias. A partir do período em que houve uma convocatória por parte dos centros de saúde, foram administradas em Portugal 360 mil vacinas, sendo que 230 mil foram dadas pelas farmácias”, garante a presidente da ANF. Para Ema Paulino, o facto de os níveis de vacinação de 2022 só terem sido atingidos no final de dezembro, um mês depois da época vacinal anterior, não é um problema. “A imunidade da vacina adquire-se rapidamente, ou seja, a sua efetividade é bastante rápida”, sublinha.
Para além das entropias causadas pela mudança na estratégia de vacinação, os especialistas ouvidos pelo Observador apontam outros fatores que levaram à diminuição das taxas de vacinação contra a gripe no final até final de novembro. Entre os quais a chamada fadiga pandémica. “Há uma fadiga pandémica (que contribui para uma diminuição da aceitação vacinal)”, diz Filipe Froes. O presidente da Associação Portuguesa de Medicina Geral e Familiar concorda e admite que “há também um cansaço com a vacinação”.
Mas não foi apenas na operacionalização da campanha de vacinação que existiram falhas. No campo da comunicação, também, apontam os especialistas. Faltou, dizem, uma campanha de sensibilização eficaz. “Durante a pandemia, a DGS estava constantemente a aparecer. E, no pós-pandemia, desapareceu. Passámos do 80 para o 0. Precisamos de ter a mensagem da necessidade da vacinação a passar”, defende Nuno Jacinto, que lembra que, em quase três meses, a nova “diretora-geral da Saúde [Rita Sá Machado] apareceu uma vez na televisão” a sublinhar a importância da vacinação. “Precisávamos de ter tido a DGS a passar a mensagem desde o início da campanha. Se a mensagem não passa, a indiferença cresce e isso reflete-se nos números”, conclui.
Ao Observador, a Direção Geral da Saúde admite que se observa, nesta época vacinal, “uma ligeira, mas não comprometedora, diminuição da cobertura vacinal contra a gripe na população com 65 ou mais anos de idade”. A entidade, agora liderada por Rita Sá Machado, aponta a “hesitação vacinal, relacionada com a perceção do risco individual da doença e do benefício da vacinação” como um dos fatores que explicam a quebra, particularmente no que diz respeito à vacinação contra a Covid-19, que regista uma diminuição mais acentuada em relação a 2022/23.
Questionada sobre eventuais insuficiências na campanha de vacinação em curso (que tem o lema “Vamos de bem a melhor”), a DGS refere que “tem em curso várias campanhas de suporte, nas suas diferentes plataformas e em conjunto com o SNS, que relevam a vacinação contra a gripe e contra a Covid-19 como instrumento fundamental de proteção da população” e que “têm sido efetuadas diversas comunicações no sentido de sensibilizar para a vacinação da população contra a gripe e contra a Covid-19 nos diferentes órgãos de comunicação social”, para além do envio de SMS e da realização de contactos telefónicos.
No entanto, os especialistas têm uma posição divergente da da autoridade de saúde pública. “Faltou planeamento e uma estratégia para enfrentar a gripe, ainda por cima num ano em que domina uma estirpe mais virulenta. Tivemos uma campanha de vacinação fraca e pouco eficaz e esquecemos as campanhas de prevenção, que não foram feitas, como era habitual”, lamenta o intensivista Carlos Meneses de Oliveira, ao Observador. Para o especialista, os cuidados para prevenir as infeções em contexto hospitalar, nomeadamente nas urgências (onde ocorrem muitas infeções), não foram iniciadas atempadamente. O intensivista do Hospital de Loures defende o regresso dos circuitos próprios para doentes respiratórios às urgências hospitalares e sublinha que a situação nos hospitais está a assumir “uma gravidade maior do que o habitual noutros anos”, excluindo o período da pandemia Covid-19.
Várias unidades hospitalares (como o Hospital de Viseu ou os hospitais de Coimbra) ativaram, nos últimos dias, os respetivos planos de contingência. Também foi anunciado que o Hospital das Forças Armadas, em Lisboa, passaria a receber doentes de outras unidades do SNS, perante a pressão causada nos serviços de internamento, decorrente do aumento das infeções respiratórias e da pressão sobre os internamentos.
Mortalidade no nível mais elevado desde a pandemia e 25% acima dos valores do ano passado
Na última semana de 2023, e de forma ainda mais acentuado nos primeiros dias deste ano, a taxa de mortalidade em Portugal esteve no nível mais elevado desde a pandemia — e 25% acima dos valores do ano passado. E, entre outros fatores — como o tempo particularmente frio, a maior vulnerabilidade da população idosa e, também, a capacidade diminuída de respostas dos serviços de urgências —, os especialistas apontavam a vacinação como uma das explicações para esses números. “Há condições estruturais: condições de vida dos mais idosos, cobertura vacinal contra a gripe insuficiente, entre outros fatores, que precisam de ser analisados para que esta situação não se volte a repetir”, sublinhava o presidente da Associação Nacional dos Médicos de Saúde Pública, Tato Borges, ao Observador há cerca de uma semana.