Na primavera. Quando o terreno estivesse mais sólido. Quando a Europa desse mais armas. No meio da confusão, para confundir o inimigo. Nas últimas semanas, foram muitas as falsas partidas e incontáveis as teorias que apontavam para a aproximação da famigerada contraofensiva ucraniana contra a Rússia — mas nunca os sinais foram tão claros como agora. A Ucrânia não confirma, mas Volodymyr Zelensky faz referências cada vez mais explícitas a uma possível contraofensiva — e a Rússia insiste que esta já começou, tese que analistas dos Estados Unidos também subscrevem.
Nos últimos dias, os sinais que parecem mais concretos foram-se acumulando, a começar pelo discurso em que Zelensky fez questão de se dirigir a homens específicos nas linhas de combate e pela entrevista em que considerou que a Ucrânia está “pronta” — e a acabar pelo reconhecimento da própria Rússia de que a ofensiva terá começado (com garantias de que está a conseguir repeli-la com sucesso).
Pelo meio, vai-se registando o posicionamento de tropas ucranianas em zonas de combate ou os ataques contra alvos estratégicos. Mas também se registam alguns avisos: a esperada contraofensiva, alertou o ministro dos Negócios Estrangeiros britânico, James Cleverly, não será “um filme de Hollywood”, limpo e sem falhas; e, como admitiu Zelensky, é de esperar um número elevado de mortes entre as fileiras de Kiev.
Já esta segunda-feira, a vice-ministra de defesa da Ucrânia, Hanna Maliar, confirmou o que já tinha sido avançado pelo líder do grupo Wagner sobre avanços das tropas ucranianas em Bakhmut, a cidade no leste que, no mês passado, a Rússia declarou ter ocupado na totalidade.
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“A direção de Bakhmut permanece o epicentro das hostilidades. Aí estamos a mover-nos ao longo de uma frente bastante ampla”, garantiu numa publicação partilhada na conta de Telegram.
E, segundo Maliar, esta não é a única boa notícia para a Ucrânia, que “está a avançar com ações ofensivas em várias zonas”, salientando o sul do país, onde decorrem combates “importantes”. “O que se passa agora? Estamos a continuar a defesa que começou no dia 24 de fevereiro de 2022”, frisou.
O resto está envolto em secretismo: a Ucrânia tinha avisado que “os planos gostam do silêncio” e parece estar a levar o princípio à letra. Segundo algumas análises, a discrição fará parte de uma estratégia propositada para baralhar o inimigo e tentar poupar algumas dessas inevitáveis baixas. Ainda assim, há um governante ucraniano que pareceu, esta segunda-feira, deixar uma pista… através de uma canção dos Depeche Mode.
Os agradecimentos de Zelensky. “Não podemos esperar meses”
Há semanas que os avisos do Presidente ucraniano se vão acumulando, dando a entender que a contraofensiva está para começar. No final de maio, Zelensky explicou que “foram tomadas decisões” depois de conversar com os líderes das tropas ucranianas no terreno e que o mais importante seria o “timing” para avançar. Isto, depois de ter passado vários dias em tour pela Europa, a pedir armas e caças F-16 que, na visão da Ucrânia, seriam essenciais para conseguir fazer frente à Rússia, enquanto prometia que seriam dados “passos importantes em breve”.
E o discurso de Zelensky deste sábado está agora a ser interpretado como um passo considerável — talvez definitivo — em direção à tão aguardada contraofensiva. Isto, porque, como explicam vários meios internacionais, o Presidente ucraniano usou a oportunidade para agradecer aos soldados na linha da frente e nos céus da Ucrânia, nomeando especificamente “mais de uma dezena de indivíduos” que estão a combater pela Ucrânia, como contou a CNN.
Nesse discurso, Zelensky deixou alertas muito dirigidos sobre a ação destes homens: “Todos devemos lembrar que a nossa defesa, as nossas ações e a independência da Ucrânia não são algo abstrato”, avisou. “Isto são pessoas muito específicas, ações específicas de heróis concretos, graças aos quais a Ucrânia existe e vai existir”.
Os agradecimentos colam com a entrevista que o governante ucraniano deu ao Wall Street Journal no mesmo dia, e em que anunciou que a Ucrânia está “pronta para fazê-lo”, referindo-se ao lançamento da contraofensiva.
Mesmo reconhecendo que as condições podem não ser as ideais. “Gostaríamos de ter certas coisas, mas não podemos esperar por elas durante meses”, disse, depois de ter referido no mês passado, como também recorda a CNN, que a Ucrânia precisaria de “um pouco mais de tempo”, enquanto se desdobrava em encontros com os líderes da Alemanha, França ou Reino Unido e insistia nos pedidos para fortalecer a sua força aérea.
Foi também nessa lógica que, na mesma entrevista, Zelensky reconheceu que graças ao poderio aéreo superior da Rússia a Ucrânia pode contar com a morte de um “grande número de soldados”. E regressou aos avisos sobre a contraofensiva estar muito longe de ser um harmonioso filme de Hollywood: “Toda a gente sabe perfeitamente que qualquer contraofensiva no mundo sem controlo dos céus é muito perigosa”.
Embora os seus apelos, especialmente por mais caças, tenham sido vistos inicialmente com alguma hesitação, a Ucrânia foi recebendo outro tipo de ajudas — nomeadamente a do treino para os seus militares, prometido por vários líderes europeus e reforçado pela NATO.
E, por isso, o Washington Post lembra como a ajuda do Ocidente não se resumirá ao envio de armas, mas também ao apoio do “know-how”, depois de meses de treino que incluíram a transmissão de conhecimentos sobre as táticas de combate “mais avançadas” dos países aliados e da NATO. Num caso específico acompanhado pelo jornal, tratou-se da brigada 47, uma unidade armada quase só com armas fornecidas pelos países aliados, e que esteve a preparar esta próxima fase “numa sala de aulas numa base da NATO, na Alemanha”.
Segundo o jornal, parte desse treino consistiu em simular em computador situações que podem acontecer no terreno, acompanhando virtualmente os seus resultados e as reações previsíveis da Rússia a ataques, assim como os sítios onde é mais provável que a Ucrânia consiga avançar ou, por outro lado, registar mais perdas.
Recentemente, explica o Washington Post, têm sido enviadas mais unidades ucranianas para a Alemanha e para outros países para aprenderem mais com as tropas aliadas — até porque as forças ucranianas têm sido mais habituadas, nos últimos anos, a treinar táticas defensivas para proteger o território, e agora a ideia é a contrária.
O anúncio da Rússia (que a Ucrânia não confirma)
Se a Ucrânia não fala oficialmente no início da contraofensiva — a não ser as declarações desta segunda-feira da vice-ministra de defesa da Ucrânia, Hanna Maliar, que parecem apontar para aí –, não se pode dizer o mesmo da Rússia. Na madrugada desta segunda-feira, o anúncio foi feito ao mais alto nível: o ministro da Defesa da Rússia, Igor Konashenkov, foi o responsável por afirmar que na manhã de 4 de junho, domingo, “as Forças Armadas da Ucrânia lançaram uma ofensiva de larga escala em cinco setores na frente do sul de Donestk”.
Citado pela agência russa Ria Novosti, o governante acrescentou rapidamente algumas ressalvas: o objetivo da Ucrânia seria “quebrar a defesa russa na área mais vulnerável”, mas “o inimigo não atingiu os seus objetivos, não foi bem sucedido”, garantiu.
Do lado da Rússia, os números concretos das supostas operações foram rapidamente avançados: diz a Rússia que matou mais de 250 homens do lado ucraniano, além de ter atingido “16 tanques, três veículos de infantaria e 21 veículos armados”. Nada que a Ucrânia confirme: “Não temos essa informação e não comentamos nenhuma informação falsa“, disse um porta-voz do exército ucraniano à Reuters.
Como notou a agência, o que é inegável é o aumento recente de “atividade militar” nas frentes de batalha. O relatório diário ucraniano desta segunda-feira sobre os combates não refere a suposta grande ofensiva em Donetsk, mas menciona que houve 29 confrontos naquela região e também em Lugansk.
A Rússia não está sozinha nisto: também os Estados Unidos acreditam que o aumento de ataques em várias frentes, registado por oficiais norte-americanos citados, sob anonimato, pelo New York Times, pode querer dizer que a contraofensiva começou. Essa vaga de ataques tem sido verificada através da informação recolhida por satélites militares dos Estados Unidos.
Problema: com base na conversa com essas fontes militares, o jornal lembra que nesta fase ainda pode haver manobras de diversão “difíceis de decifrar”. Até porque uma das táticas tradicionais das forças norte-americanas — que têm treinado as ucranianas — passa por fazer uma “investida inicial” para tentar avaliar a posição e a força que o inimigo tem.
Mesmo que a contraofensiva tenha começado, não será, ainda assim, de esperar que a Ucrânia a confirme, pelo menos para já: ainda este domingo o ministério da Defesa ucraniano divulgava um vídeo em que dizia, sugestivamente, que “os planos gostam de silêncio” e que “não haverá um anúncio sobre o início”, numa presumível referência ao início da operação. Tudo enquanto apareciam imagens de vários militares ucranianos com um dedo pousado na boca, a fazer o gesto do silêncio.
Já esta segunda-feira, Zelensky voltou a alimentar a especulação publicando uma mensagem em tom de encorajamento nas suas redes sociais. “O terror russo deve ser derrotado todos os dias e todas as noites, em todas as regiões da Ucrânia, nos céus de cada cidade e aldeia ucraniana. Quando qualquer ataque dos terroristas russos falhar, as suas derrotas tornar-se-ão numa fonte da nossa segurança a longo prazo”.
???????? terror must be defeated every day and every night, in every region of ????????, in the skies of every Ukrainian city and village. When any attack by ???????? terrorists ends in failure for the terrorists, their defeats will become a source of our long-term security. pic.twitter.com/EvDVwC5qEq
— Volodymyr Zelenskyy / Володимир Зеленський (@ZelenskyyUa) June 5, 2023
O lado ucraniano só tem dado respostas crípticas sobre o assunto, como se notava no podcast Reuters World News, também esta segunda-feira: os jornalistas da agência explicam que os responsáveis de Kiev têm recusado responder a perguntas sobre a contraofensiva, com algumas exceções. Uma delas foi uma referência do ministro da Defesa, Oleksii Reznikov, nas redes sociais, a uma música dos Depeche Mode, “Enjoy the silence” (em português, algo como “apreciem o silêncio”).
Porquê? Se houver espaço para uma análise político-militar aos versos da banda britânica, talvez faça sentido que se concentre nestes: “As palavras são muito desnecessárias/ Elas só podem causar danos”.
Os avanços da Ucrânia e o caos propositado
O anúncio da parte da Rússia vem no seguimento de vários avanços das forças ucranianas que foram sendo vistos como sinais de que as tropas se estariam, pelo menos, a posicionar e a preparar para lançar a contraofensiva. Desde logo, os rumores ganharam força com a longa batalha em Bakhmut — que o grupo Wagner pareceu vencer, mas que veio dizer esta segunda-feira ter sofrido uma reviravolta parcial, com a Ucrânia a conseguir, alegadamente, recuperar uma parte do território no norte daquela região. O que acabaria por ser confirmado pela vice-ministra de defesa da Ucrânia, Hanna Maliar.
Em maio, foi sendo noticiado que as forças ucranianas estavam a posicionar-se no lado este do rio Dnieper, o que poderia sinalizar mais um passo para atingir um objetivo que há muito é apontado à Ucrânia: conseguir controlar o corredor que liga a Rússia à península da Crimeia, anexada pelo país em 2014. Nessa altura, a porta-voz do Comando Operacional do Sul da Ucrânia, Natalia Humeniuk, pediu paciência, recusando, como tem sido prática do país, comentar as táticas ou objetivos de Kiev.
Como se lia numa análise publicada pela CNN a 18 de maio, assinada por Nick Pathon Walsh (correspondente de Segurança Internacional da estação), não foi difícil começar a juntar outros sinais, incluindo os bombardeamentos “dirigidos” contra alvos militares russos, os ataques contra depósitos de combustível ou infraestruturas dentro da própria Rússia ou o posicionamento ucraniano na zona de Zaporíjia. Nessa altura, um responsável norte-americano dizia à CNN, sob anonimato, que as operações estariam a “ganhar forma”.
O analista defendia, assim, que se os aparentes atrasos no lançamento da contraofensiva continuavam não seria por desorganização ou “caos” da parte da Ucrânia, mas por uma questão de estratégia, com o objetivo de baralhar a Rússia (além de um “abril relativamente molhado, que deixou o terreno demasiado mole” também poder ser um fator).
Como resumia Pathon Walsh: se a Ucrânia reconhecesse oficialmente que a operação estava a começar, ficaria obrigada a mostrar rapidamente resultados; por isso, “é possível que só saibamos que começou quando os primeiros resultados tangíveis forem revelados”.