Esta é a história de uma demissão que esteve pendente à espera que um avião aterrasse na Costa Rica. Depois de o Observador ter questionado o Ministério do Ambiente sobre a existência de um primo nomeado pelo secretário de Estado do Ambiente como seu adjunto, começaram a mexer-se todas as peças no Governo. O primeiro-ministro foi informado da situação — e apanhado no limite ético que tinha traçado na entrevista que tinha dado no sábado à TSF e ao Dinheiro Vivo — e o processo desenrolou-se. Primeiro demitiu-se o primo. Depois ficou a dúvida quer na opinião pública, quer até entre socialistas (mais ou menos entredentes): o que vai acontecer ao responsável pela nomeação? Mas Carlos Martins não tinha maneira de ser contactado, estava a bordo de um  avião em viagem transatlântica e, por isso mesmo, ainda se aguentou no cargo por mais 20 horas, sem saber que o seu destino político tinha sido redirecionado em pleno voo.

[Os dois primos são os primeiros elos a quebrarem-se nesta grande cadeia de nomeações. Veja aqui o mapa das relações familiares no Governo:] 

Terça-feira, 3 de abril

18h49 – O Ministério do Ambiente recebe a primeira pergunta do Observador sobre o caso que tinha em mãos: o secretário de Estado do Ambiente, Carlos Martins, teria nomeado o primo, Armindo dos Santos Alves, como seu Adjunto. A nomeação já vinha de 2016, mas fora reconduzido em 2018 na altura da penúltima remodelação governamental. O jornal quis confirmar a existência deste grau de parentesco e, a confirmar-se, se o adjunto teria condições para continuar depois da linha vermelha definida pelo próprio primeiro-ministro. Prazo para uma resposta: 16h00 do dia seguinte.

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No sábado anterior, em entrevista à TSF e ao Dinheiro Vivo, António Costa tinha dito, quando confrontado com a multiplicação de relações familiares nos gabinetes do Governo,  que “só haveria uma questão ética se alguém nomeasse um familiar seu”. O primeiro-ministro foi imediatamente informado da situação pelo gabinete do Ambiente, confirmou o Observador.

Quarta-feira, 4 de abril

16h04 – A resposta chegou quatro minutos depois do deadline e com apenas três dados: confirmou o grau de parentesco entre Carlos Martins e Armindo Alves; disse que o ministro do Ambiente desconhecia a relação familiar; Armindo Alves tinha entendido pedir a demissão do cargo de adjunto.

16h29 – A notícia da demissão é publicada. A reacção em cadeia, nos outros órgãos de comunicação social, não se fez esperar.

16h32 – Depois desta demissão, o Observador dispara com novas perguntas, desta vez sobre as condições políticas do secretário de Estado do Ambiente para se manter no cargo, tanto para o Ministério de Matos Fernandes como para o gabinete do primeiro-ministro. Por esta altura a decisão já estava tomada, mas ainda tardaria a chegar.

17h10 – Do Primeiro-Ministro, nem uma palavra. A notícia tinha causado um mau-estar evidente e António Costa, que tinha já posto em marcha um diagnóstico exaustivo a todos os gabinetes para detetar casos que violassem a barreira ética que tinha imposto, não gostou de ver um caso flagrante do qual não tinha conhecimento, nos jornais. Antes de qualquer declaração pública sobre o assunto, havia que esperar que o ministro do Ambiente tomasse uma posição. Ganhava força a hipótese de uma demissão iminente, até porque em São Bento, só eram consideradas duas alternativas: ou o secretário de Estado se demitia, ou era demitido. E este era um caso que teria de ficar resolvido rapidamente, até porque no dia seguinte haveria debate quinzenal no Parlamento, e era preciso conter danos antes do confronto com a oposição. Mais: o que se passasse neste caso passaria a fazer “jurisprudência” para outros que estivessem debaixo do radar.

Costa manda fazer raio-x aos gabinetes em busca de mais casos de nomeações familiares diretas

20h30 – Na cerimónia de comemoração dos 50 anos da COSEC, Marcelo Rebelo de Sousa é interpelado pelos jornalistas sobre o caso e esquiva-se à sua maneira: “Não sei de nada. Estive em várias tarefas, estão a dar-me uma informação, não sei de nada”. Mas também acrescenta que “talvez amanhã” (quinta-feira) tivesse “alguma coisa a dizer”. E voltou a aconselhar a imprensa que insistia com a questão: “Vamos esperar por amanhã”. Marcelo já sabia que o secretário de Estado estava incontactável (ver em baixo), daí ter adiado a sua reação.

21h06 – Ia o Sporting-Benfica com 36 minutos de jogo quando chega uma resposta do Ministério do Ambiente sobre a continuidade de Carlos Martins no cargo. “Situação resolvida”, declarava o esclarecimento enviado pelo Ministério do Ambiente. “O adjunto Armindo Alves foi nomeado pelo secretário de Estado do Ambiente de boa fé, com base nas suas competências profissionais, acrescentava a nota do Ministério que, nessa altura, estava sem poder dizer mais nada, embora a demissão do secretário de Estado já estivesse praticamente garantida. Havia um pormenor que estava a atrasar tudo, Carlos Martins estava a bordo de um voo de longo curso (mais de dez horas) a caminho da Costa Rica onde representaria o Governo português numa reunião ministerial sobre águas e saneamento. Estava “incontactável”, segundo garantem várias fontes contactadas pelo Observador. Matos Fernandes decide esperar: era necessário dar a oportunidade ao secretário de Estado para se demitir.

21h25 – A secretária-geral adjunta do PS já tem carta branca para carregar nas tintas, no seu comentário da SIC-Notícias e não coloca panos quentes no caso. “É profundamente errado e inadequado que um governante possa nomear um qualquer seu familiar”, disse Ana Catarina Mendes. Ainda que acusasse a direita de estar a fazer uma campanha “muito feia”, a secretária-geral adjunta deixava claro que “um governante ou qualquer pessoa que tenha responsabilidades públicas não deve, nem pode nomear um seu familiar. É evidente que é uma questão de bom senso e também de transparência das relações públicas”. No Governo e entre socialistas já pairavam incómodos sobre o secretário de Estado que já tinha provocado este tipo de apreensão no mesmo meio numa outra história que o envolveu. Em 2016, foi noticiado pelo Expresso que Carlos Martins tinha declarado ao Tribunal Constitucional residir no Algarve, recebendo um subsídio de alojamento, quando na verdade residia em Cascais. Matos Fernandes voltou a segurá-lo: “O adjunto Armindo Alves foi nomeado pelo secretário de Estado do Ambiente de boa fé, com base nas suas competências profissionais”.

Quinta-feira, 5 de abril

Às primeiras horas da manhã – Carlos Martins aterra na Costa Rica e imediatamente o telemóvel começa a apitar com mensagens de Lisboa. O seu adjunto/primo tinha-se demitido. Matos Fernandes entra em contacto, numa conversa telefónica, com o seu secretário de Estado e a demissão torna-se inevitável.

9h30 – Começa a reunião do Conselho de Ministros, mas o assunto não é abordado no encontro semanal, segundo apurou o Observador junto de fontes do Governo. Mas é durante a reunião que o ministro do Ambiente recebe o pedido de demissão formal do seu secretário de Estado e a reenvia para o gabinete para que a divulgue junto da comunicação social. Só agora, sim, a situação estava verdadeiramente resolvida.

11h30 – Para a oposição, os sinais do que viria acontecer eram fáceis de ler. Politicamente, o secretário de Estado não tinha condições para permanecer no lugar e, antes que decisão inevitável fosse anunciada, quer o PSD na RTP3, quer o CDS na Futuráia, vieram ocupar espaço enquanto podiam e exigiram a demissão de Carlos Martins.

12h23 – Chega a informação oficial: Carlos Martins tinha apresentado a demissão de secretário de Estado do Ambiente depois de descoberta a nomeação do seu primo para funções no gabinete.

14h24 – O Observador noticia que António Costa tinha dado uma ordem interna para que se fizesse um diagnóstico exaustivo dentro do Executivo para apurar eventuais casos que pudessem ainda não ser conhecidos sobre familiares nomeados diretamente por governantes. A decisão foi tomada na sequência das palavras do primeiro-ministro, na TSF, sobre o seu limite ético para estes casos. Não bastava ligações familiares entre gabinetes. O motivo que colocaria em causa a ética governativa seria um membro do gabinete nomear diretamente um familiar. E era preciso apurar se havia casos escondidos. A revelação pelo Observador de um desses casos veio reforçar a linha estabelecida pelo primeiro-ministro e agora com uma sanção exemplar: sai o nomeado e sai quem o nomeou.

O familygate que não foi gate e o ataque cerrado de Costa ao PSD “raivoso”

15h03 – António Costa chega ao debate quinzenal, no Parlamento, às 15 horas, já com o assunto resolvido, conseguindo driblar, desta forma, eventuais ataques da oposição sobre este caso. Na verdade, não houve muitos. Apenas o PSD, e ao de leve, tocou no assunto. Costa passa a bola ao parlamento e pede aos deputados que clarifiquem os critérios de nomeação para o executivo e para outros cargos públicos. Depois do debate, Costa seguiu para o encontro semanal com o Presidente da República. O objetivo era levar na mão o nome do substituto de Carlos Martins, para fechar de vez e rapidamente, este capítulo pesado para a imagem do governo. Sobre isso não houve sinais, mas à noite Marcelo mostrava estar em sintonia com o apelo de Costa nessa tarde e pedia uma lei mais exigente para evitar nomeações familiares.

Marcelo diz que “vale a pena rever a lei” quanto a nomeações de familiares