100 anos. A Bial passa este ano a figurar nas empresas portuguesas centenárias. Um ponto de partida para a conversa com António Portela, presidente da empresa, que está há 13 anos à frente da farmacêutica nacional que, nos anos mais recentes, já fez chegar dois fármacos ao mercado. “Tem sido um ano super emocional internamente”, admite em entrevista ao Observador, assumindo o desejo de “honrar o legado de quem nos trouxe até aqui, do meu bisavô, do meu avô e do meu pai e das milhares de pessoas que trabalharam com eles”.
A Bial tem pela frente grandes desafios. Os dois medicamentos que estão a conquistar o mercado poderão ter mais “um irmão” no final da década. A ser bem sucedido, marcará mais uma etapa da investigação e desenvolvimento da Bial, até porque, mais do que tratar a sintomatologia permitirá, espera-se, atrasar a progressão da doença de Parkinson. Tirando esta investigação, há poucas áreas a evoluir. Muita da investigação foi travada na altura da troika. Foram anos desafiantes, já superados. A Bial está agora a refazer o pipeline de investigação.
Aliás, António Portela não esconde que, desde que há 13 anos assumiu a presidência, conta já com três momentos apelidados de muito difíceis: os tempos da troika e o “insensível” corte de 30% dos preços dos medicamentos decretado pelo Governo; a morte em França de um voluntário num teste clínico de um fármaco da Bial (ainda hoje diz não saber como está a investigação criminal do processo, em segredo de justiça); e a pandemia.
Oiça aqui a entrevista a António Portela
É atribuída a Otto von Bismarck a frase de que a primeira geração cria, a segunda gasta e a terceira destrói. A Bial já vai na quarta geração. O que fez para passar o cabo das tormentas?
Às vezes pergunto-me o que acontece na quarta, na quinta e na sexta, se há alguma continuidade.
Tem a oportunidade de dizer, pelo menos, o que faz a quarta.
(Risos). Sim. No nosso caso a terceira deu um impulso fantástico ao desenvolvimento da empresa, contrariamente ao que dizia Bismarck, porque introduziu um fator que não existia na empresa que era a inovação de medicamentos. Introduziu uma variável nova muito arriscada.
De investigação e desenvolvimento…
Na indústria farmacêutica é muito arriscado fazer investigação e desenvolvimento e, por isso, é que são muito poucas as empresas que o fazem, e em Portugal nunca ninguém tinha feito. Esse, ainda hoje, é um dos grandes problemas que temos, que é não ter uma indústria forte em Portugal e portanto nós não temos pessoas que sabem fazer desenvolvimento de medicamentos.
Mas a quarta ambiciona o quê, a internacionalização? O que é que acha que já cunhou na empresa?
No fundo, dar seguimento àquilo que temos feito nos últimos 30 anos, ou seja, a aposta na investigação e desenvolvimento vem agarrada a uma aposta de internacionalização, que, obviamente, começa muito pequenina quando ainda não tínhamos os nossos próprios medicamentos, e começámos a fazer as primeiras incursões em Angola, em Moçambique, nos países da América Latina, para onde levámos os medicamentos mais antigos que tínhamos. Fazemos o primeiro grande passo de internacionalização em Espanha, quando comprámos uma empresa em 1998, e aí aprendemos imenso sobre o que é estar num mercado muito maior do que o português, com outra dimensão e com outras características. E depois, a par e passo, lançámos o primeiro medicamento. A aprovação veio em 2009, e para o segundo em 2015. E isso permite-nos fazer um processo de internacionalização por duas vias. Na Europa, nós criámos as nossas próprias filiais, e hoje temos as nossas filiais nos principais países europeus, Espanha, Itália, Alemanha, Inglaterra, França, Suíça, Irlanda, Áustria.
[Já saiu o quinto episódio de “Matar o Papa”, o novo podcast Plus do Observador que recua a 1982 para contar a história da tentativa de assassinato de João Paulo II em Fátima por um padre conservador espanhol. Ouça aqui o primeiro episódio, aqui o segundo episódio, aqui o terceiro episódio e aqui o quarto episódio]
Em quantos países é que já estão?
Nós vendemos os nossos medicamentos em 50 países.
E diretamente, com equipas?
Estamos em 10 países.
Vão escolhendo os países à medida que vão sendo autorizados a trabalhar neles, ou é por uma questão do talento e de conseguirem alguma investigação?
E potencial de mercado. Nós escolhemos estes países da Europa porque são, claramente, os cinco grandes países na Europa, que valem 75% ou 80% do mercado europeu.
É importante estar diretamente?
É importante estar diretamente nesses mercados, até porque nós vivemos da nossa própria tecnologia e dos nossos medicamentos, mas também de licenças de outras empresas. E quando nós queremos ir a uma empresa americana ou japonesa buscar um medicamento e dizer-lhes nós podemos a comercializar o vosso medicamento na Europa, aquilo que olham é se nós estamos nos cinco maiores. Estar nos cinco grandes é que, realmente, tem peso e, por isso, nós apostamos muito e temos estado a construir e a investir muito para ser uma empresa muito forte na área das neurociências nesses cinco grandes países. E depois, a segunda via da internacionalização foi pegar nos nossos medicamentos, e não tendo presença própria, quer nos Estados Unidos, quer na China, quer no Japão, quer na Coreia, licenciar a nossa tecnologia a empresas que estejam nesses mercados para que sejam elas a comercializar.
Mas, neste momento, a faturação da Bial divide-se como, em termos de produto próprio e licenciamentos?
Os nossos dois medicamentos de inovação representam hoje já mais de 50% da nossa faturação, representam cerca de 55% da nossa faturação, mas temos mais cerca de 10% com medicamentos mais antigos que são também nossos. Ou seja, cerca de um terço são licenças de outras empresas e dois terços são medicamentos nossos.
A tendência é para que essa margem de dois terços aumente?
Isso é o que nós gostávamos que pudesse acontecer. Claro que vai depender de sermos capazes de desenvolver os nossos medicamentos e de termos novos, de aumentar as vendas daqueles que já temos agora, mas se a isso juntarmos novas licenças que formos buscar fora não vou ficar insatisfeito com isso.
Mas tem alguma investigação prestes a dar o passo de teste de mercado?
Não. Naquilo que temos em pipeline, neste momento, em desenvolvimento clínico só temos um medicamento, que é também para a doença de Parkinson. O outro também já era para a Parkinson. Os medicamentos que existem até hoje tratam a sintomatologia da doença de Parkinson, não curam, não tratam a doença, o que dão é melhor qualidade de vida aos doentes.
E o que está a investigar?
O que estamos a investigar está a procurar ir um passo mais à frente, como outras empresas estão a fazer. Nós somos uma das que está na vanguarda, nomeadamente, para um subtipo da doença de Parkinson, que são os doentes que têm uma mutação genética que se chama GBA1. As pessoas que têm essa mutação genética tendem a desenvolver Parkinson com mais frequência e quando o desenvolvem é mais cedo do que o normal, que é entre os 55 e os 60 anos, e a progressão da doença é duas a quatro vezes mais rápida. E, portanto, há 10 a 15% de doentes de Parkinson que têm esta mutação genética, que não é nada boa de ter. E nós temos um composto que estamos a desenvolver para, não diria que vai curar, acho que ainda estamos longe de poder curar o Parkinson, mas procurar demonstrar que conseguimos atrasar a progressão da doença ou pelo menos estabilizar a progressão da doença.
Em que fase é que está?
Está na fase 2B. Portanto, nós já estamos numa fase bastante avançada em ensaios clínicos. Terminaremos no final de 2025 e no primeiro semestre de 2026 teremos os resultados. A partir daí, dependendo dos resultados que tivermos, vai ser decisivo. Se forem negativos, são negativos. Se forem positivos, depende de quão positivo.
Pode chegar ao mercado em 2029, conforme já tinha dito ao jornal Público?
Podemos chegar ao mercado no final desta década.
Quantas patentes é que tem a Bial registadas em seu nome e ativas?
Há muitas patentes que vamos deixando cair, porque é muito caro manter e, portanto, vamos deixando cair aquelas que não têm interesse. Nós, neste momento, temos 1.500 patentes ativas.
E isso custa quanto por ano?
Uns milhões de euros por ano.
Porque não é só cá na Europa, há patentes também registadas nos Estados Unidos e na Ásia?
Patenteamos para todo o mundo. E temos de manter a patente ativa em todo o mundo e, à medida que o tempo vai avançando, vai ficando cada vez mais caro. Por isso é que vamos descontinuando aquelas que não têm interesse. É sempre um exercício que é preciso fazer todos os anos.
Essa análise é feita anualmente?
Sim.
Há 13 anos à frente da Bial, houve três momentos difíceis para António Portela
A Bial comemora o centenário este ano. António Portela chegou à liderança em 2011, quando Portugal estava intervencionado pela troika, sob a ajuda externa, o que significa que está há 13 anos a presidir à farmacêutica. Inicialmente escolheu até uma outra empresa que não era a sua, a Roche, para entrar na indústria farmacêutica. O que é que o levou depois a voltar para Portugal e para a empresa de família, sendo licenciado em Economia?
Sou economista pela Faculdade de Economia do Porto. Essa sempre foi, em termos de estudos, a área que mais me atraiu.
No fundo, já a pensar que poderia assumir os destinos da empresa?
Assumir os destinos, acho que nunca pensei. Aquilo que eu pensava era se gostaria de trabalhar na empresa ou não. Enquanto fui crescendo, foi uma coisa que sempre pensei — se gostava de contribuir para aquilo que a empresa faz ou não, porque, obviamente, cresci com a empresa, com o meu pai a contar-me as coisas, levava-me à empresa e eu ia seguindo. Depois, já mais velho, na altura do verão, passava lá semanas, no armazém, na produção, na gráfica — na altura fazíamos as embalagens e tínhamos uma tipografia e uma gráfica. Fui conhecendo a empresa e sempre tive muito claro para mim que não queria começar a trabalhar lá. Fui tendo a noção do que fazíamos, mas preferi trabalhar para outra empresa por várias razões. Uma delas foi porque não queria começar a trabalhar na empresa do meu pai, digamos assim, e queria perceber se gostava da indústria farmacêutica. Por isso escolhi uma outra farmacêutica para fazer as minhas primeiras incursões. Também me agradava a ideia de viver noutro país, de trabalhar noutro país, de ter outra experiência. Na Roche, onde eu trabalhei, a filial do Reino Unido era a mais requisitada para pessoas de outros sítios. A Inglaterra, como país, e Londres como cidade, são fascinantes. Permitiu-me conhecer uma empresa farmacêutica com uma dimensão enorme, com uma dinâmica espetacular. Mas permitiu-me também abrir os olhos para um mundo completamente diferente e aprender muito sobre a indústria farmacêutica. Mesmo não tendo eu qualquer background de ciência, o impacto que nós temos na vida das pessoas é absolutamente extraordinário. E isso deixou-me fascinado. Portanto pensei: eu gosto desta indústria e não preciso de estar na parte da ciência, no laboratório, mas posso contribuir.
E por isso resolveu voltar?
Eu sempre fui [para Inglaterra] com a ideia de ficar um ou dois anos, ter a experiência, e depois, eventualmente, voltar para Portugal. Acabei por ficar quatro, porque gostei muito do que estava a fazer, gostei muito de trabalhar na Roche, é uma empresa fantástica e gostei muito das pessoas com quem estava a trabalhar. E fui ficando.
Aí percebeu que gostava da indústria farmacêutica, e já não era tão estranho voltar ao negócio de família?
Não era. Nós, latinos, somos muito mais, emocionalmente, ligados à família, ao negócio familiar.
A Roche é uma gigante na indústria farmacêutica. Não lhe apertou o coração, depois, chegar cá e ver uma realidade micro face ao que era a Roche?
Eu já tinha essa perceção. As empresas farmacêuticas acabam por tomar as decisões muito à base daquilo que são os grandes mercados, os Estados Unidos, os grandes europeus, a China, o Japão e muitos dos mercados pequenos contam pouco em termos de decisão. Para mim ficou claro, quando eu estava lá, que um país como Portugal não contava. Os grandes é que fazem a diferença, é que movem a agulha, em termos estratégicos, para uma grande companhia. Eu já vinha com a perceção de que a realidade aqui era completamente diferente. E foi um choque vir. Mas, por outro lado, aquilo que me entusiasma é poder construir. E, portanto, eu ter estado os quatro anos numa empresa muito maior do que a nossa, num mercado maior, exposto àquilo que são as decisões de uma farmacêutica de nível internacional, isso ajudou-me imenso a integrar a empresa e a trazer algumas ideias de coisas que nós podíamos fazer para crescer. E depois, toda a gente que é grande, um dia foi pequenino. Toda a gente começou do zero, toda a gente foi pequenino, e se tornou grande
Chega à Bial como CEO em 2011, em pleno ano da troika em Portugal. Quais foram as primeiras dificuldades que teve na gestão da empresa?
Os meus primeiros dois ou três anos foram muito duros. Por um lado, eu era ainda muito jovem, tinha 35 anos — pensava sempre que o meu pai tinha ficado presidente com 27 e vinha de medicina, embora a empresa não tivesse a dimensão que tinha [quando António Portela assumiu a presidência]. Nessa altura, senti grandes desafios. Um foi a parte da investigação e desenvolvimento por não ter o background, e precisei de me dedicar muito para perceber os projetos em que nós estávamos, as áreas terapêuticas e porque estávamos a fazer determinadas coisas ou não. Esses dois ou três anos foram muito difíceis em termos de gestão. Foi um período muito, muito difícil. Nós tínhamos lançado o medicamento para a epilepsia, o Zebinix, na Europa em 2009, mas em 2011 foi-nos rejeitado pela FDA [autoridade nos Estados Unidos], que nos pediu mais um ensaio clínico. E, portanto, de repente, nós temos a troika e todos os constrangimentos da troika, a FDA pede-nos mais um ensaio clínico…
E isso custa muito dinheiro?
Foram três coisas que custaram muito dinheiro então. Foi desenvolver o ensaio clínico, que, felizmente, o nosso parceiro colaborou nos custos connosco. E também nós tínhamos umas dezenas de milhões de princípios ativos já prontos para lançar no mercado americano e que ficaram em stock à espera, portanto, foi dinheiro que ficou empatado na empresa. E, por outro lado, não começámos a vender. Nós tínhamos um milestone, que ainda era importante, de uns 50 milhões de dólares associado à aprovação da FDA.
A banca cortou os financiamentos? Vocês não sentiram esse constrangimento da banca também?
Essa não aprovação custou-nos umas dezenas de milhões, ou talvez mais de dezenas de milhões, nesse espaço de três anos. A banca, obviamente, foi muito mais exigente nessa fase, mas também nos ajudou. As coisas começaram a apertar e apertaram a sério quando o nosso Ministério da Saúde decidiu baixar 30% aos preços dos medicamentos, de um dia para o outro, sem perceber as consequências daquilo que estava a fazer.
O Estado não continua a cortar?
A cortar, como se cortou nessa altura, não. Quer dizer, cortar 30% aos preços é de uma insensibilidade completa. Nós estávamos a fazer ensaios clínicos fase 3, com doentes, e portanto não podemos parar os ensaios clínicos porque senão damos cabo do nosso futuro, mas também por razões éticas, temos de manter os doentes em tratamento e, portanto, nós tivemos que cortar tudo aquilo que não era necessário para conseguirmos manter aquilo que era absolutamente essencial.
E como conseguiram dar a volta nessa altura?
Conseguimos fazer o Zebinix chegar aos Estados Unidos, conseguimos fazer o Ongentys chegar à Europa e aos Estados Unidos também. Com isso tudo, criámos um problema, porque nos focámos nesses dois medicamentos e tudo o resto ficou parado. E, portanto, quando me perguntava que coisas novas é que tenho, não tenho quase nada porque nós não conseguimos investir. Nós só investimos nesses dois, fizemos esses dois chegarem ao mercado com sucesso, mas agora estamos a refazer tudo o que é o nosso pipeline em termos de investigação e desenvolvimento. E, portanto, esses anos foram muito duros, quer do ponto de vista de gestão para conseguirmos fazer isso, mas também muito duros porque estávamos a perceber que estávamos a hipotecar o longo prazo ao não investir mais nada.
Até porque um processo de investigação de um medicamento é muito moroso. Quantos anos é que pode demorar?
Nós demoramos mais ou menos 10 a 12 anos a fazer um medicamento chegar ao mercado.
Portanto, o período de investigação e desenvolvimento demora cerca de sete anos e depois são os testes, é isso?
Dou-lhe o exemplo do Zebinix. Nós patenteamos o Zebinix em 1996 e ele chegou ao mercado em 2009, portanto, foram 13 anos. A partir do momento em que patenteamos, para nós começa a contar. Porque a patente tem 20 anos de vida. Se nós, durante um ou dois ou três anos, não investimos nesse composto, não estamos a perder os anos de desenvolvimento, esses vão sempre ter de existir, estamos é a perder anos de comercialização.
Comercialização em proteção?
Em proteção. Aliás, estamos a perder os melhores anos. Quando temos um projeto que anda a patinar durante dois ou três anos, normalmente, o que acontece é que vai para o lixo porque, comercialmente, já não o conseguimos fazer vingar.
No Zebinix, que é o vosso primeiro produto core, a proteção da patente termina quando?
Já terminou.
E sentem isso? Já há muitos genéricos?
Nós perdemos a patente na Europa em junho de 2021 e temos muitos genéricos neste momento em Portugal, em Espanha, em Itália, na Alemanha, no Reino Unido. É olhar e ver o processo todo que nos demorou a construir e que agora já tem genérico. Ainda temos proteção nos Estados Unidos e, portanto, não há genéricos nos Estados Unidos. O que é que aconteceu em 2021? Nós perdemos, nesse ano, 40 milhões de faturação com a entrada dos genéricos e com a obrigatoriedade de baixarmos o preço.
E o Ongentys acaba quando?
Se tudo correr bem, até à próxima década ainda o temos protegido. Portanto, ainda temos muitos anos de proteção.
Durante estes 13 anos, e agora voltando outra vez às etapas destes anos de liderança na Bial, a troika não há de ter sido o pior momento. Já o ouvi dizer que o momento mais difícil terá sido o teste de França em 2016, que falhou e que resultou na morte de uma pessoa. O que é que aconteceu depois desse teste e dessa responsabilização da Bial? Houve processos? O que é que aconteceu nesse processo?
Nos meus 13 anos, eu tenho três momentos de gestão muito difícil. Um foi o da troika, o outro foi o ensaio clínico em França e o terceiro foi a pandemia. Em França, aconteceu em 2016, tivemos uma infelicidade com um voluntário saudável que faleceu no nosso ensaio clínico. Passaram oito anos, e nós continuamos a não ter a informação toda sobre aquilo que se passou.
Mas houve uma investigação?
Houve uma investigação, foi aberto um processo, que está aberto, em segredo de justiça, e as coisas têm-se vindo a arrastar.
A Bial é arguida em França?
Nós não temos acesso a toda a informação. Havia seis voluntários no processo, nós com os outros cinco já acordámos toda a responsabilidade civil e resolvemos as coisas civilmente. O processo está em segredo de justiça, nós não sabemos muito bem como é que está a decorrer. Temos tido acesso a alguma informação, mas não temos ainda acesso a toda a informação.
Mas a investigação parou?
Nos dois, três anos a seguir, fizemos uma investigação tentando perceber o que aconteceu. Aquilo que chegámos à conclusão foi que há ali uma razão inexplicável, que nós não conseguimos perceber, nem nós, nem quem fez, e houve várias entidades externas que não estavam ligadas a nós que fizeram investigações, e não houve ninguém que conseguisse perceber porque é que aquilo aconteceu. É um evento que, realmente, até hoje não tem explicação, mas nós imediatamente descontinuamos essa molécula, e descontinuámos todas as moléculas que tínhamos que eram da mesma classe.
“Há medicamentos que a indústria farmacêutica põe em Portugal, mas que depois não são distribuídos em Portugal”
Chegando à pandemia, o terceiro momento difícil, teve de parar as fábricas?
Não, não. Nós nunca parámos nada. Sempre tivemos autorização para continuar, sempre estivemos a operar. O Infarmed e as autoridades pediram, a todas as fábricas em Portugal, um plano para manter o máximo possível de operação. E nós sempre conseguimos manter de uma forma extraordinária. Nós sempre tivemos cerca de 120 pessoas na empresa. Não tivemos nenhum caso de contágio interno. Nunca tivemos falhas nos nossos medicamentos, nem aqui, nem para fora. Sempre conseguimos fornecer as farmácias e os doentes com os nossos medicamentos. Numa gestão dificílima das nossas chefias. A solidariedade dentro do grupo todo foi extraordinária, as pessoas substituíam-se umas às outras, houve pessoas que ficaram distanciadas durante uns meses do parceiro porque era médico ou enfermeiro e estava na frente da batalha para não se contagiarem. Temos histórias incríveis internas de pessoas que abdicaram, durante uns meses, da sua vida normal para podermos fazer o que fizemos. Eu tenho uma gratidão a todas essas pessoas, nunca falhou nenhum dos nossos medicamentos.
Mas baixou a produção?
Não baixámos nada. Mantivemos tudo a funcionar normalmente. Nós até aumentámos. Por exemplo, a produção de antibióticos aumentámos imenso, porque o Infarmed nos pediu, somos um dos poucos produtores de antibióticos em Portugal, e pediram-nos para aumentar a produção, porque achavam que podia ser uma das respostas — naquela fase em que ninguém sabia qual era a resposta. E nós, nesse caso, até aumentámos a produção. Foi uma gestão muito apertada, com muito cuidado, mas que funcionou extenuantemente para algumas pessoas, mas funcionou bem. Os medicamentos são relativamente imunes quer às crises, quer aos períodos de expansão. Quando há um período de expansão económica, as pessoas não consomem mais medicamentos por causa disso, e quando há períodos de crise, o que acontece é que as pessoas não consomem se não tiverem dinheiro para consumir. Neste caso da pandemia, como as pessoas até tinham mais dinheiro porque não o gastavam, não sentimos isso. O que sentimos foi um açambarcamento no princípio.
Por isso é que houve a rutura até de alguns medicamentos…
Mas não foi porque faltasse produção, foi porque muitas pessoas, com medo, procuravam comprar para três ou até seis meses.
Ainda existe alguma rutura ou, pelo menos, limitação em alguns medicamentos. Porquê? É por logística ou é as farmacêuticas que travam a produção?
Há várias razões pelas quais hoje existem algumas ruturas de medicamentos em Portugal. E acho que há alguns mitos. Portugal é um dos países da Europa que tem os preços mais baixos nos medicamentos. Às vezes dizem que os medicamentos são muito caros, não é verdade.
Face ao rendimento, não é?
Em comparação até poderá ser, mas em termos absolutos nós temos dos preços mais baixos da Europa. O que é que isso faz? O mercado europeu é de livre circulação e portanto há medicamentos que a indústria farmacêutica põe em Portugal, mas que depois não são distribuídos em Portugal. Vão para outros países onde são vendidos a preços mais caros e, portanto, isso faz com que faltem cá. Claro que há uma regra que diz que não se pode desabastecer o mercado nacional e os pacientes têm que estar todos cobertos, mas é muito difícil conseguir medir se isso é feito ou não. E, portanto, acontece que, em muitos casos, os medicamentos saem de Portugal porque vão para outros mercados que pagam mais pelos medicamentos e as margens de quem distribui acabam por ser maiores nesses mercados. Faltam medicamentos pontualmente. Na altura da pandemia, houve foi problemas de fornecimento de alguns princípios ativos, até de excipientes, ou seja, um comprimido tem os princípios ativos, que é a parte principal daquilo que faz efeito, e depois tem o que nós chamamos de excipientes que eu costumo, a brincar, dizer que é “a farinha” para encher o resto do comprimido. Mas esses excipientes são fundamentais para o fármaco funcionar e às vezes o problema é que faltava o excipiente. Só havia um ou dois produtores mundiais, na China ou na Índia, e que, de repente, deixaram de produzir porque tiveram um problema de Covid lá e, de repente, não havia esse excipiente. Sem ele não conseguíamos produzir um determinado medicamento. Nessa altura houve algumas falhas e algumas coisas nunca se corrigiram.
Como por exemplo?
Uma das conclusões que chegámos nessa altura é que 95% do paracetamol vem da Índia. E, uns quatro ou cinco meses depois de começar a pandemia, a Índia fechou as fronteiras e quando fechou as fronteiras não saía paracetamol da Índia. Ora, como eles produziam 95%, a Europa esteve quase, eu acho que quase ninguém tem noção disto, sem paracetamol, que era a única coisa que recomendavam [tomar]. A Europa esteve quase a ficar sem paracetamol. Quando digo que houve algumas coisas que não se corrigiram, é que continuamos na mesma, apesar de ter havido um discurso, a seguir, de que temos que voltar a reindustrializar a Europa…
Nada se fez?
Fez-se muito pouco.
Mas era possível reindustrializar esse nível?
Eu acho que é possível fazer algumas coisas. Há outras que são impossíveis de fazer. Mas não devíamos deixar que as coisas novas vão todas para fora. E o problema é que continua a ir muito para fora. A Ásia é o grande fornecedor de princípios ativos do mundo. Os Estados Unidos aí fizeram muito mais e investiram na parte industrial. A Europa falou em fazer isso, mas concretizou muito pouco. Nós, na Europa, estamos habituados a comprar muito barato e, portanto, é muito difícil assumir que se eu vier produzir para Europa, vai custar mais caro. E, portanto, apesar do discurso, depois quando foram fazer as contas, concluíram que, se calhar, não faz tanto sentido fazer na Europa. E a verdade é que continuamos a ter dependências. A Europa é muito lenta a reagir. Os Estados Unidos são muito mais rápidos, vemos, por exemplo, nos chips. A Europa ainda está a discutir se faz, se não faz. Os Estados Unidos já estão a investir imenso.
Outro exemplo é a questão dos dados, proteção de dados e a disponibilidade de dados. Para a saúde e para o desenvolvimento de novos medicamentos e novas vacinas, os dados da genética das pessoas são um bem precioso, porque nos permite conhecer muito melhor como cada um funciona. Nós temos hoje três blocos que trabalham de forma diferente. Na China, os dados não pertencem às pessoas, pertencem ao Estado que tem centenas de milhões de dados que estão a ser utilizados para desenvolver novos medicamentos, novos compostos para serem estudados. A China vai dar um salto enorme em termos de terapêuticas no curto/médio prazo. Os Estados Unidos estão a ser muito mais pragmáticos na forma como tratam os dados. E nós, na Europa, ainda andamos a discutir se pode, se não pode, hoje já é possível fazer os testes genéticos, mas é pouco utilizado porque não nos conseguimos entender de como é que fazemos isso. E estamos a ser ultrapassados pelos outros blocos. Realmente na Europa as pessoas têm todas muito receio desta questão dos dados, mas a verdade é que, em termos de avanços tecnológicos, isso permitia-nos dar saltos muito importantes.
“Queremos trabalhar em mais projetos e projetos mais disruptivos, mas sentimos que não temos recursos suficientes para o fazer e depois não queremos pôr os ovos todos na mesma cesta”
Neste momento é fácil o acesso a capital em Portugal para uma empresa como a Bial, que precisa de bastante para continuar a investigação?
Não temos dificuldade em termos de acesso a capital dentro daquilo que é o mais tradicional. Se nós quisermos pensar em coisas mais disruptivas, financiar projetos de investigação e desenvolvimento a prazos diferentes, isso não conseguimos fazer em Portugal. Existe relativamente pouco capital em Portugal que financia startups, o chamado venture capital existe relativamente pouco. Tem havido bastante sucesso na área das tecnologias de informação e há alguns unicórnios e há várias empresas que se têm desenvolvido nessa área, porque são produtos ou serviços muito pouco intensivos em capital.
E o time to market é diferente.
Exatamente. Quaisquer 500 mil euros ou um milhão de euros permitem chegar a uma fase de protótipo e depois mais seis meses para o mercado. Para um medicamento… um milhão de euros não chega para nada. Uma startup tem de arranjar financiamento e os Estados Unidos realmente são um sítio onde se financiar.
Vocês onde é que se financiam?
Nós financiamos uma parte na banca, já nos financiámos também através de obrigações. O mercado de obrigações é interessante, que já trabalhamos há uns anos. Financiamo-nos também junto do BEI, o Banco Europeu de Investimentos, que financia a projeto e é capaz de nos dar financiamentos a 10, 12 anos com dois ou três anos de carência. O escrutínio sobre os projetos é muito grande. Uma área que nós estamos a estudar agora é a do venture capital.
Para abrir capital?
Não para abrir capital, mas para financiar determinados projetos. Ou seja, nós queremos trabalhar em mais projetos e projetos mais disruptivos, mas sentimos que não temos recursos suficientes para o fazer e depois não queremos pôr os ovos todos na mesma cesta. Temos estado a ver nos Estados Unidos, mas também na Europa, como é que podemos arranjar quem financie este tipo de projetos que têm risco.
Sem porem em perigo os capitais próprios da Bial?
Exatamente. Na Europa temos pouco. Nos Estados Unidos, empresas de venture capital que financiam só “farma” [setor farmacêutico] não há uma nem duas, há dezenas ou centenas e que têm rios de dinheiro para financiar.
Conseguem chegar a essas empresas uma vez que já estão com alguns medicamentos nos Estados Unidos…
Devagarinho estamos a fazer esse caminho. Termos dois medicamentos expôs-nos à escala global. Há muito poucas empresas que lançam novos medicamentos, há talvez umas dezenas. A indústria farmacêutica é relativamente pequena e há poucas empresas que são capazes de lançar produtos. Portanto, quando uma empresa aparece com dois medicamentos tem uma exposição global, para o bem e para o mal, muito importante. Além disso, há três anos comprámos uma biotech nos Estados Unidos, em Boston, que nos deu acesso ao projeto de Parkinson que temos agora mais avançado. Achámos o projeto muito interessante, mas também passámos a ter uma equipa que está num dos centros nevrálgicos das ciências farmacêuticas, que é Boston, Cambridge, aquela zona — o outro centro está na costa oeste dos Estados Unidos, em São Francisco. As pessoas que hoje trabalham connosco têm acesso a Harvard Medical School, ao MIT, porque estão imbuídos naquela comunidade. O facto de termos lá hoje uma biotech, que se chama Bial Biotech, permite-nos ter acesso a uma série de tecnologia, mas também de pessoas que conhecem o mercado e conhecem o venture capital.
Nesse tipo de abordagem era importante que o Estado português, por exemplo, vos ajudasse a abrir caminho. Há algum tipo de ajuda que o Estado poderia dar?
Não, acho que somos nós que temos que fazer esse caminho. Eu acho que em Portugal o Estado já faz mais do que o que devia fazer. Eu acho que, em muitas coisas, o Estado devia fazer menos do que aquilo que faz. Nestas áreas de empreendedorismo, somos, nós, empresas, que temos que fazer. Há muito capital disponível. Em 2023 houve muito pouco capital de venture capital a investir na área farma, mas este ano já está a haver mais. O diferenciador é termos um projeto atrativo, que tem valor acrescentado, que tem potencial de se desenvolver e curar uma doença, havendo isso há capital que vem atrás. Nós temos é que saber vender o nosso projeto. Aí, o Estado não há grande ajuda que nos possa dar, mas podia ter mais alguma proximidade se a área da indústria farmacêutica e área do medicamento fosse estratégica. Podia, por exemplo, ter uma AICEP mais perto dessas comunidades, em determinados setores. Nós, em Portugal, temos um bocadinho a mania que somos mais pequeninos do que aquilo que somos, e depois temos a tendência de distribuir pelas aldeias todas, e investir um bocadinho em todos em vez de apostar em dois ou três. Quando nós olhamos para países da nossa dimensão, europeus da Europa Ocidental, alguns fizeram opções estratégicas em alguns setores e desenvolveram-se nesses setores. A Irlanda e a Bélgica fizeram apostas enormes na área farmacêutica e andam atrás de investimento. Têm uma agência tipo AICEP que anda a procurar investimento para o país.
Era possível trazer investimento da indústria farmacêutica para Portugal?
Já temos conseguido trazer algum investimento, mas ainda é muito pouco. Há poucas empresas farmacêuticas, mas as que há investem imenso em investigações e desenvolvimento, porque é o negócio. A indústria farmacêutica investe — e isto é investimento privado — cerca de 42 a 43 mil milhões de euros na Europa só em investigação, portanto não estamos a falar na parte industrial. Em Portugal faz-se 120 milhões, metade desse é nosso. Se nós conseguíssemos ir buscar 1% seriam 400/ 500 milhões para Portugal, imagine o que é que isto não geraria em termos de emprego super qualificado e em termos de produção de produtos ou de serviços nestas áreas que depois podemos exportar. Nós tínhamos poucos licenciados e quase não tínhamos doutorados há 30 anos — é engraçado que, no fundo, acompanha estes nossos 30 anos de investigação e desenvolvimento. Hoje temos um número muito maior de licenciados e doutorados. A área das ciências da vida é a que tem mais doutorados, mas 95% deles trabalham na academia e portanto não estão a produzir valor.
Como é que vocês conseguem contratar esses quadros altamente qualificados?
Muitos contratamos em Portugal, mas, quando queremos ir buscar gente mais sénior, temos de nos valer daquilo que já construímos e hoje já temos um nome na praça para conseguir buscar gente de fora. Mas temos de oferecer condições internacionais, nós temos noção que jogamos no mercado internacional e os pacotes que temos de oferecer são internacionais. Nós, na investigação e desenvolvimento, temos quase 130 pessoas de 16 nacionalidades. Mas hoje também conseguimos ir buscar portugueses que foram para fora. Nos últimos 3 a 4 anos fomos buscar quase 15 portugueses, que foram para fora mas têm disponibilidade para voltar. Uma das grandes dificuldades que temos aqui em Portugal é a de conseguir quadros superiores com qualificações. Porque os quadros superiores em Portugal nunca trabalharam na indústria, sempre trabalharam na academia, têm um conhecimento teórico. E nós precisamos da componente prática.
Nos que têm experiência e estão lá fora, a vossa batalha é com o salário?
O salário não é o principal. O pacote salarial é muito importante, mas eu diria o mais importante é o projeto, porque há empresas farmacêuticas na Europa, em Espanha, em Itália, que são maiores do que nós, algumas bem maiores, que têm departamentos de investigações e desenvolvimento, mas nunca levaram nenhum medicamento a um mercado. Nós já levámos dois. Isto é uma certificação que nós temos, e abre portas a talento. O facto de estarmos a apostar em determinadas áreas nas neurociências e nas doenças raras atrai algumas pessoas que gostam de trabalhar nessas áreas e que querem trabalhar nessas áreas. E, também, o facto de nós termos tudo concentrado no mesmo sítio, no mesmo campus. Há pessoas que vêm de grandes multinacionais e que estão habituadas a ver campus em não sei quantos sítios e depois trabalham com gente em não sei quantas zonas do globo diferentes, e preferem trabalhar numa empresa mais pequena, mas onde perceba onde é que começa, onde é que acaba, com quem é que eu tenho que falar. Ao estarmos todos no mesmo campus, se eu sou da parte da química e quero ir falar com alguém da biologia posso levantar-me e ando 10 metros ou 100 metros e vou falar com a pessoa da parte da biologia. Não a tenho a 6 horas de distância e num fuso horário diferente, e há pessoas que vêm atraídas por isso. Depois há o pacote salarial e as condições que o país oferece, que são condições muito boas. Às vezes não valorizamos uma daquelas que estes profissionais valorizam imenso, que é a segurança.
Como CEO, o que é que gostaria de ver feito pelo novo Governo em termos de impostos? Qual era para si a prioridade, impostos sobre as pessoas ou sobre as empresas?
Isto é um bocadinho circular, se as empresas tiverem mais capacidade de investir, o que é que vão fazer? Vão pagar melhores salários.
Mas vão mesmo? As empresas veem o IRC descer e a primeira coisa na qual aplicam o dinheiro que lhes sobra é nos salários?
Diretamente nos salários ou em mais investimento. Neste momento investimos cerca de 60 a 70 milhões em investigação e desenvolvimento. Eu gostava de faturar o dobro ou o triplo porque eu gostava de investir o triplo em investigação e desenvolvimento. Se eu conseguisse investir o triplo, provavelmente não ia pagar melhor às pessoas que tenho, o que eu ia ter era o dobro da equipa.
Contratava mais pessoas?
Contratava mais pessoas, porque o projeto ia tornar-se mais ambicioso e eu, se calhar ,com isso, conseguia fazer outras coisas. Voltamos à questão dos mitos e de algumas ideias de que os empresários vão despedir toda a gente e despedem. Há muitos empresários que querem investir, que se tiverem mais querem investir, querem sair. Há muitos empresários que, por exemplo, durante a pandemia perceberam que depender só do mercado português é muito duro e que tem riscos enormes e portanto querem ir lá para fora, só que o custo de sair é muito grande. Às vezes não temos noção de que é muito diferente produzir aqui em Portugal só para uma ou duas marcas e estar completamente dependente dessas marcas. Se um dia essa marca me fecha porque vai produzir na Turquia, na China ou na Índia… e isto é tão válido para um setor têxtil, um setor de calçado como para um setor farmacêutico. No setor farmacêutico, se eu fizer só produção para terceiros, eles podem hoje fazer cá, mas amanhã podem resolver fazer noutro sítio, ou seja, eu tenho que dar valor acrescentado para fazer isso. Ou queremos dar o passo seguinte, que é ter as nossas próprias marcas, os nossos próprios produtos, mas para isso é preciso fazer investimento. A internacionalização é a mesma coisa, é muito diferente exportar ou montar as nossas filiais. Nós temos investido dezenas de milhões em montar as nossas filiais na Europa. Claro que nós falamos muito mais do investimento em investigação e desenvolvimento, mas montar a estrutura comercial… o país mais difícil para nós em termos de entrada tem sido a Alemanha.
E porquê? Porque são protecionistas?
Não, de maneira nenhuma. Eu acho que não são protecionistas. Mas, primeiro, tenho de recrutar pessoas para virem trabalhar connosco. A marca Bial não existe na Alemanha. A marca farmacêutica e inovadora associada a Portugal é uma coisa que na Alemanha… estão habituados a coisas básicas de Portugal, e isso é logo uma barreira para recrutar pessoas. Quando eu quero recrutar a minha própria equipa, tenho dificuldade, porque as pessoas preferem ir trabalhar para uma Novartis, uma Roche, que são nomes conhecidos. A primeira grande batalha que nós temos é construir uma equipa. A segunda é ir falar com os médicos e voltamos às mesmas questões. Nós antes de vender o nosso medicamento, temos de vender a empresa, explicar o que a empresa faz, o que não fez, que tem 100 anos, o que é que fez, o que já construiu, em que mercados está, o que está a fazer, e isto demora meses/anos até ganharmos a confiança do médico para que ele possa sequer considerar que o nosso medicamento possa ser prescrito ao doente dele. Todo o processo de ir lá para fora é muito moroso. No outro campo, realmente as pessoas têm rendimentos muito baixos em Portugal, quando o salário médio está quase no salário mínimo alguma coisa está muito mal…
Para não falar dos gap entre gestão e o trabalhador médio. No vosso caso não deve haver um gap tão grande…
Não, o gap é relativamente pequeno no nosso caso, na verdade. Nós temos cerca de 800 pessoas na empresa, 84% licenciados e 11% doutorados, e a maior parte das pessoas não compete no mercado português, compete no internacional, especialmente depois da pandemia em que as empresas estão mais dispostas a que as pessoas possam trabalhar lá mas a viver cá, isto tornou a concorrência muito mais difícil e aperta muito mais. Mas, portanto, nós temos um gap que não é normal em Portugal.
Que é de quanto?
Eu não sei exatamente quanto é, mas não é um gap muito grande, é relativamente pequeno comparado com as outras empresas em Portugal. Mas a grande questão em Portugal é que nós temos muito poucas empresas capazes de fazer grandes investimentos e de fazer a diferença, porque temos poucas empresas grandes, nós não temos multinacionais em Portugal.
Considera-se uma empresa grande, pequena, média em Portugal?
Em Portugal somos considerados uma empresa grande. Nós fazemos parte da federação europeia da indústria farmacêutica, que tem 38 empresas. Nós somos a mais pequena. Há um grupo de empresas europeias que são 12, onde nós procuramos discutir temas que são importantes para nós na Europa. Esse grupo de 12 chama-se o grupo das médias empresas europeias, com base na Europa detidas por famílias ou a maioria ainda por famílias. Nós somos a mais pequena de todas, obviamente também somos a mais pequena dessas. A empresa a seguir a nós fatura três vezes mais do que nós e a empresa maior dessas médias fatura 4,5 mil milhões, fatura mais de dez vezes mais do que nós. O que eles investem em investigação e desenvolvimento é três vezes o que nós faturamos. Nós lá fora somos uma pequena média para já ser generoso. E o problema é que temos poucas empresas que tenham uma dimensão que possam competir à escala internacional.
E por isso se pergunta sempre, até quando é que conseguem aguentar a Bial sem a vender?
Quem nos conhece sabe que nós gostamos muito daquilo que fazemos. Há, obviamente, a questão do legado, e este ano tem sido um ano super emocional, o ano de centenário. Tem sido super emocional internamente, mas nós gostamos muito daquilo que fazemos, gostamos muito de honrar o legado de quem nos trouxe até aqui, do meu bisavô, do meu avô e do meu pai e das milhares de pessoas que trabalharam com eles.
Mas sentiria que vender bem a empresa seria desonrar esse legado?
Não. Mas nós gostamos muito daquilo que estamos a construir e o desafio de estarmos a construir aquilo que estamos a construir é muito interessante. É para mim, é para o meu irmão que trabalha comigo, e para a equipa de gestão e para as pessoas. Temos tido desafios, temos passado por momentos mais difíceis, menos difíceis, mas este processo de construção dá um gozo enorme — agora temos que refazer o nosso pipeline, queremos fazer medicamentos e aqueles que queremos trazer queremos que vão mais longe do que os outros, queremos que curem, que atrasem a progressão da doença enquanto os outros só tratavam a parte sintomática.
A função como CEO, mas mais ainda como acionista e a relação com Horta-Osório, chairman
Ainda é relativamente novo. Até quando é que se vê a liderar a Bial? Já disse que não se quer perpetuar, mas o perpetuar é o quê?
Não me quero perpetuar, não. Já tenho 13 anos de liderança da empresa e eu acho que acabamos sempre por cristalizar em algumas coisas e eu gostava que nós déssemos o próximo salto e temos trabalhado para darmos um próximo salto em termos de crescimento e ter um medicamento novo no mercado. Gostava muito, e nós temos isso nos planos, de refazer aquilo que é a nossa parte de investigação e desenvolvimento. Estamos a consolidar a nossa presença na Europa e temos feito isso com forte investimento. Quando tivermos isso feito e se tivermos um produto realmente diferenciador, queremos a seguir ir para os Estados Unidos. Eu nunca trabalhei nos Estados Unidos, não conheço os Estados Unidos e portanto, a certa altura, podemos precisar de quem faça diferente. Eu digo que não me quero eternizar, mas essa é uma decisão que não depende de mim, depende dos acionistas da empresa, dos quais eu também sou um. Temos sempre de pensar, e eu tenho aqui duas funções, uma como acionista e outra como gestor. Apesar de eu dedicar muito mais tempo à minha função como gestor, a minha função mais importante é como acionista.
E perceber o que é melhor para a empresa?
O que é melhor para a empresa e o melhor para a empresa pode não ser o António, pode ser outra pessoa. E eu vivo bem com isso. Aquilo que eu quero é que a empresa se desenvolve e continue a construir. Acho que posso contribuir nesta função, mas poderei contribuir noutra também.
O seu pai Luís Portela deixou de ser chairman para dar lugar a um que não é da família. Como é que é a sua relação com o chairman, António Horta-Osório? É mais fácil ou mais difícil o facto de não ser da família?
Tem de tudo. Às vezes é mais fácil, outras vezes é mais difícil. Em momentos mais difíceis, eu acho que talvez seja mais fácil, porque nós tendemos a ser mais objetivos e menos emocionais, quando é família somos mais emocionais. Eu acho que o António Horta-Osório traz um capital em termos de gestão, de conhecimento e ele não percebe nada da área farmacêutica — agora já percebe bastante — mas percebe muito de gestão, de liderança e faz muito bem o papel entre a gestão e o acionista principal da empresa, o meu pai, porque o António também está habituado a construir, a liderar organizações, a perceber como é que funcionam, o que é preciso mudar nas organizações. Ele traz essa dinâmica para a organização. Tem-me apoiado, a mim e à Comissão Executiva, nos projetos que nós queremos fazer, às vezes até desafiando a irmos mais longe do que aquilo que nós estamos a pensar. Desafia-nos, está constantemente a desafiar-nos. Mesmo não percebendo da área farmacêutica, percebe de organizações, percebe de pessoas, de liderança e é uma pessoa muito ambiciosa. É bom tê-lo a puxar por nós, mas também é bom partilhar a experiência que ele tem. Contar com a experiência dele tem sido muito positivo.
Gostava que a quinta geração continuasse a frase de Bismark?
São todos muito novos ainda, não sei o que vai acontecer. Aquilo que eu gostava, é que os meus filhos, mas também os meus sobrinhos, sejam felizes naquilo que façam. O importante é que cada um faça aquilo que gosta de fazer e tenha prazer. Eu tenho dois irmãos, o meu irmão trabalha comigo na empresa e gosta muito do que faz, e a minha irmã do meio disse desde os 15 anos que queria ser professora de matemática, e hoje é professora de matemática e o que ela gosta é de matemática e de ensinar. Isso é que está bem. Pode haver alguns que tenham aptidão. Aquilo que nós temos que deixar muito claro para todos é que temos de os ensinar a ser acionistas, porque isso sim é uma função que eles podem vir a ter quer queiram, quer não. E que percebam que só poderão trabalhar na empresa se tiverem competências para o fazer.
O nome não abre a porta?
Não. Não há mais nenhum Portela, tirando eu e o meu irmão, neste momento a trabalhar na empresa.