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Corria o ano de 2011 quando Joe Biden e Xi Jinping apertaram as mãos pela primeira vez. “O Presidente Obama e eu queremos uma China em ascensão. Não tememos uma China em ascensão”, disse Biden, convictamente. À altura, os dois líderes eram vice-presidentes dos respetivos países e os Estados Unidos e a China ainda mantinham uma relação relativamente amigável. Agora, em 2022, os dois voltaram a encontrar-se frente a frente, pela primeira vez como Presidentes dos respetivos países. E embora os dois lados tenham frisado o tom “franco” da conversa, a ideia de que norte-americanos e chineses se apoiam mutuamente está definitivamente enterrada.
“Esta é a primeira cimeira entre duas superpotências da versão 2.0 da Guerra Fria”, vaticinou na véspera Evan S. Medeiros, antigo conselheiro de Obama para a área da Ásia-Pacífico. Uma versão desmentida pelo próprio Biden na conferência de imprensa que deu a seguir ao encontro desta segunda-feira, em Bali, com Xi Jinping: “Não estou a sugerir que isto foi Kumbaya, mas não acho que haja razões para nos preocuparmos com uma nova Guerra Fria.”
Postura “agressiva” de um lado, “linha vermelha” do outro. Taiwan domina encontro entre Biden e Xi
“Xi foi como sempre foi: direto e franco”, acrescentou o Presidente norte-americano, que quis destacar como a comunicação entre os dois líderes se mantém aberta. O facto de Xi e Biden já se conhecerem há muito tempo tem sido amplamente repetido; o Presidente americano continua inclusivamente a repetir a afirmação várias vezes desmentida de que já viajou mais de 27 mil quilómetros com o homólogo.
Por toda a Washington se frisou este tom ao longo dos últimos dias. “Há algo aqui, estes tipos conhecem-se mesmo. Têm um legado, uma relação”, afirmou Daniel Russell, diplomata americano que ajudou a preparar a viagem de 2011 em que Biden e Xi se conheceram, ao Washington Post. Mas, concluída esta cimeira inédita entre estes dois líderes como Presidentes, as principais conclusões são que — havendo boa relação ou não — EUA e China continuam a ter pontos de vista muito diferentes.
As “tempestades perigosas” e “o maior desafio geopolítico”. Tensão entre EUA e China agudizou-se nos últimos meses
Os sinais já lá estavam todos antes do encontro. “O Xi Jinping de 2022 não é o Xi Jinping de 2011”, avisou Ben Rhodes, antigo conselheiro de Obama, citado no mesmo artigo do Post. “Esse era um tipo que queria provavelmente enturmar-se, porque era um recém-chegado. Agora é um tipo que acha que é o homem mais poderoso do mundo.”
Há menos de um mês, Xi tornou-se o primeiro líder do Partido Comunista Chinês a ser apontado para um terceiro mandato, cristalizando a sua dominância na política do país. E, no discurso que fez no Congresso da sua nomeação, deixou claro que a China de hoje tem as garras de fora: em vez das referências habituais a “um período de oportunidade estratégica” e a “paz e desenvolvimento como temas desta era” em discursos do PCC, como notou o The New York Times, Xi optou por frisar que o Partido se tem de preparar para “ventos fortes, águas agitadas e até tempestades perigosas”. Destacou a potência das Forças Armadas do país e avisou que o “problema de Taiwan” pertence apenas “ao povo chinês”, numa indireta aos Estados Unidos.
A tensão era clara, reflexo de um ponto de discórdia sobre a ilha Formosa que tem dividido os dois países e que se agudizou após a visita da presidente da Câmara dos Representantes norte-americana, Nancy Pelosi, a Taiwan, em agosto. À altura, Pequim respondeu com exercícios militares na região e cortando a cooperação com Washington em temas como as conversações sobre as alterações climáticas.
Mas o endurecimento não vem só do lado chinês. Ainda no mês passado, a administração Biden publicou um documento de estratégia de segurança onde identifica a China como “o maior desafio geopolítico para a América”.
O grupo de delegados que acompanhou Biden a este encontro em Bali é também revelador da forma como os EUA olham agora para a China: o conselheiro de segurança nacional Jake Sullivan, responsável máximo por esse documento de estratégia; Kurt Campbell, que em tempos disse que a era de colaboração americana com a China “acabou” e Rush Doshi, autor de um livro que disseca uma alegada estratégia chinesa de ultrapassagem dos Estados Unidos como maior superpotência do mundo.
E todo este clima de desconfiança mútua é agravado por uma guerra comercial que não dá sinais de acalmar. Biden ainda não clarificou se irá ou não manter as tarifas impostas à China durante a administração de Donald Trump e, recentemente, o Congresso aprovou uma lei que estimula a produção de semicondutores por empresas norte-americanas, desde que estas não produzam na China. Pequim, que está a apostar cada vez mais na produção destes componentes essenciais, não gostou.
Não houve mesmo “Kumbaya”: Taiwan ainda é o ponto da discórdia
No meio deste cenário, não é de admirar que, muito embora Joe Biden tenha tentado por água na fervura no tom, o conteúdo da conversa desta segunda-feira tenha sido marcado pela divergência. E o tema foi o esperado: Taiwan.
O comunicado divulgado pela Casa Branca após o fim do encontro entre os dois líderes era taxativo. Biden disse que os Estados Unidos se irão opor a quaisquer “mudanças unilaterais” ao statu quo na ilha e criticou as “reações coercivas e crescentemente agressivas” em relação a Taiwan. Apesar disso, Biden sublinhou que os EUA continuam a respeitar a política de “uma só China” — ou seja, não reconhecendo oficialmente a independência daquele território.
Na conferência de imprensa após o encontro, o Presidente americano decidiu focar-se mais neste último aspeto do que nas críticas, tentando apresentar a reunião como menos tensa do que o tema poderia indiciar: “A nossa política de uma só China não mudou”, disse o Presidente norte-americano. Questionado sobre o tema pelos jornalistas em detalhe, Biden voltou a reforçar que a política dos EUA em relação a Taiwan mantém-se inalterada e disse que Xi “compreendeu isso”, evitando focar-se nos avisos que a sua equipa destacou no comunicado.
Na prática, nada mudou. Os Estados Unidos mantêm assim a sua postura de “ambiguidade estratégica” face à ilha: por um lado, reconhecem a política de “uma só China”, identificando o governo liderado pelo PCC como único governo legítimo; por outro, limitam-se a reconhecer que a China considera Taiwan como parte integrante do país, mas não esclarecem se concordam ou não que a Formosa é parte da China.
Podemos ficar descansados depois do encontro entre Joe Biden e Xi Jinping?
Mais: com Biden à frente do governo norte-americano, os EUA já se comprometeram por quatro vezes com apoio militar a Taiwan em caso de uma invasão da China — o que pode parecer uma alteração na “ambiguidade” habitual. Mas, oficialmente, Biden continua a repetir que os Estados Unidos reconhecem a política “de uma só China”.
Pequim não tem gostado nada destas declarações, com Xi Jinping a avisar no passado que a visita de Pelosi à ilha foi como “brincar com o fogo”. Agora, o Presidente chinês voltou a sublinhar que não vai tolerar envolvimento norte-americano na questão: o comunicado oficial do executivo chinês, divulgado pela agência Xinhua, sublinhou o caráter “detalhado, franco e construtivo” do encontro, mas deixou claro que Xi Jinping decretou uma possível intervenção norte-americana em Taiwan como uma “linha vermelha” para a China. O assunto, disse Xi, “é o centro dos interesses centrais da China, a fundação das fundações políticas da relação China-EUA e é uma linha vermelha que não pode ser ultrapassada”.
Com maior ou menor “franqueza”, certo é que este encontro não parece ter alterado uma vírgula na postura dos dois países no que diz respeito a esta questão. E pode haver mais lenha para esta fogueira em breve: se o Partido Republicano conquistar a maioria na Câmara dos Representantes (a contagem de votos ainda prossegue), o provável presidente da Câmara, Kevin McCarthy, já anunciou que tenciona visitar Taiwan.
Ucrânia e Coreia do Norte continuam a ser incógnitas
Os outros temas abordados no encontro entre Biden e Xi foram muito menos controversos — mas também aí é possível identificar alguns pontos de divergência.
Veja-se o caso da situação na Ucrânia. Segundo a Casa Branca, Biden e Xi Jinping “reiteraram o seu acordo de que uma guerra nuclear nunca deve ser combatida“. O comunicado chinês, porém, não faz menção a armamento nuclear, dizendo apenas que “o confronto entre grandes países deve ser evitado”.
E, ainda sobre este tema, Pequim diz também que veria com bons olhos o regresso às conversações entre Rússia e Ucrânia e pede aos “Estados Unidos, NATO e União Europeia” que levem a cabo “um diálogo exaustivo com a Rússia”. Sinal de que a China continua mais alinhada com a Rússia do que o Ocidente gostaria.
Outro ponto onde há mais dúvidas do que certezas diz respeito à Coreia do Norte. Washington pretendia usar este encontro para sensibilizar Xi Jinping para a necessidade de pressionar a Coreia do Norte e tentar, assim, limitar o uso de mísseis por parte de Pyongyang. Mas Pequim — ao contrário dos norte-americanos — não fez qualquer menção ao tema no seu comunicado final. E, na conferência de imprensa, Biden admitiu que “é difícil determinar se a China tem ou não capacidade” para convencer a Coreia do Norte.
O único ponto onde parece haver uma luz ao fundo do túnel é na colaboração entre os dois países para combater as alterações climáticas — os dois países comprometeram-se a retomar as negociações e o secretário de Estado norte-americano, Anthony Blinken, irá em breve à China para continuar o diálogo.
É um sintoma da única conclusão positiva a retirar desta cimeira: a de que os Estados Unidos e a China continuam, apesar de toda a tensão, a conversar e que este pode ser um primeiro encontro de vários, como admitiu o conselheiro nacional norte-americano Jake Sullivan em vésperas do encontro.
Não se espere, porém, qualquer mudança de fundo na política dos dois países, previu Robert Daly, diretor do Instituto Kissinger sobre a China e os EUA do Wilson Center, ao Politico: “O desejo de se entenderem mutuamente é bom, mas não há nenhuma indicação de que qualquer um dos países esteja preparado para reconsiderar as suas posições”.
Xi e Biden conhecem-se há muito tempo, têm uma relação de respeito e cordialidade e são ambos conscientes dos riscos que um conflito entre EUA e a China acarreta. Mas, como lembrou o antigo secretário da Defesa Leon Pannetta, a personalidade de ambos não chega, porque “às vezes os eventos podem destruir as melhores das intenções”. E a cimeira da Bali mostrou que, 11 anos depois do primeiro encontro entre Xi e Biden, a ascensão da China já não é tão bem-vista — e que, até nas intenções, os dois países mantêm-se rivais com visões antagónicas.