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Agricultores roubam tanques. Parece o nome de um vídeo jogo porque é um nome de um vídeo jogo. Assim que a internet se encheu de imagens de camponeses a roubar tanques russos para os reutilizarem no seu próprio exército — imagens que nunca foram verificadas por fontes independentes — o trator tornou-se um símbolo da resistência civil ucraniana. Com dezenas de filmes a correr o mundo, mais depressa do que o Roskomnadzor (o censor russo) conseguia dizer “censura”, a facilidade com que os agricultores dominaram os tanques russos tornou-se épica. Esse pedaço de história da guerra na Ucrânia, invadida pela Rússia a 24 de fevereiro, deu origem a um jogo online e a centenas de memes que viralizaram na internet.
Com ou sem ajuda dos camponeses, é certo que os veículos armados russos, alinhados em longas colunas militares (podiam intimidar pelo tamanho, mas eram um alvo demasiado fácil para ignorar) foram maltratados pelos militares da Ucrânia. Como o conseguiram? Michael Clarke, consultor especializado do Comité de Defesa da Câmara dos Comuns desde 1997, resume numa só frase, com eloquência britânica, tudo o que se pode dizer sobre as estratégias russa e ucraniana. “Todos os erros que os russos fizeram… Os ucranianos, na verdade, fizeram a coisa certa onde os russos fizeram sempre a coisa errada”, disse ao Observador. E essa verdade é válida para todas as vezes em que um trator rebocou um blindado. Literal ou metaforicamente.
Alvos fáceis. Flancos descobertos e mísseis à tiracolo
Há muitos erros a apontar aos russos (e já os vamos analisar a todos). O primeiro, é a falta de cuidado com os tanques. “Os russos não conduziram operações militares combinadas”, diz Michael Clarke, antigo diretor-geral do Royal United Services Institute (RUSI), think tank britânico de defesa e segurança. Ou seja, não coordenaram os movimentos da infantaria e da artilharia e enviaram os seus blindados sem os soldados armados que deveriam proteger-lhes os flancos. “Os tanques iam sozinhos para as cidades. Como não havia infantaria russa, os ucranianos podiam apanhá-los em pequenos grupos operando mísseis de lançamento de ombros.” Esses mísseis de ombro são outra das armas que os ucranianos têm sabido usar a seu favor: os NLAW, cortesia dos britânicos, e os Javelin, endereçados pela Casa Branca.
O nome dos NLAW é revelador. A sigla é de Next Generation Light Anti-tank Weapon, ou seja, arma leve anti tanque de próxima geração. E não desilude. É leve, 12 quilos, quase metade do peso dos Javelin, vem equipado com um lançador portátil e pode ser operado por um único soldado. A arma é colocada ao ombro e, em cerca de 15 segundos, o militar faz pontaria e dispara. Os mísseis guiados fazem o resto, destruindo o alvo, neste caso os tanques. São o produto de décadas de pesquisa e fazem, tal como os Javelin, aquilo que durante anos só era possível com armas muito maiores, mais pesadas e montadas em veículos.
Os Javelins são igualmente eficazes, mas são mais caros e mais pesados (mais de 20 quilos). Em comum com a arma britânica, desenvolvida em parceria com a sueca Saab, têm a grande vantagem de só precisarem de um operador para atingir o alvo. Além disso, quando atacam veículos podem ser programados para atingi-los de cima, onde são mais vulneráveis (menos blindagem). O Javelin pode mergulhar, impactar e explodir, enquanto o NLAW faz um caminho mais curto, cruzando o alvo e disparando a sua carga para baixo.
Os russos chegaram a afirmar que os novos tanques T-90 eram capazes de destruir estes mísseis antitanques, graças a um novo sistema defensivo, o que não se verificou no terreno. Pelo contrário, há relatos de russos a tentar reforçar a parte superior dos seus veículos, segundo o New York Times.
Quanto às diferenças, o Javelin desloca-se a uma velocidade inferior à do NLAW, mas o seu alcance chega aos 4 quilómetros, enquanto a arma britânica fica pelos 800 metros. É, no entanto, mais precisa. Ambos atingem alvos em movimento: o Javelin guia-se pelo calor, o NLAW é disparado na direção do alvo e usa o seu sistema de orientação para voar para o ponto onde prevê que irá atingir o objeto a destruir.
De resto, com os mísseis anti-tanques a postos, a lógica foi a das emboscadas, embora também tenham usado drones para fazer estragos. O habitual, quando as unidades pesadas da artilharia andam em frente, é ter soldados dos dois lados, em veículos armados.
“Deixaram os flancos expostos e, por isso, os ucranianos conseguiram chegar lá. Os ucranianos conseguiram entrar por trás das unidades russas, cortá-las e picá-las — uma emboscada”, explica Michael Clarke. Para além disso, diz o fundador e antigo diretor do Centro de Estudos de Defesa do King’s College London, os russos avançam em frentes muitos estreitas. “Os ucranianos puderam usar as suas tropas de emboscada e os drones com ótimos efeitos.”
Em Moscovo, o analista e politólogo Oleg Ignatov faz uma leitura semelhante. “A tropa russa estava completamente impreparada para uma campanha longa e tornou-se um alvo fácil. Penso que os militares começaram a deixar os tanques para trás, provavelmente porque não tinham combustível. Os russos tiveram problemas com logística, estas colunas são muito longas. Sem logística, vai haver problemas com combustível, com munições, com alimentos.”
O analista do Crisis Group, think tank dedicado à resolução e prevenção de conflitos armados internacionais, assistiu aos mesmos vídeos que o resto do mundo viu. “Vi vídeos de tanques parados, sem combustível, e os soldados ali à volta, sem saberem o que fazer. Quando estás num ambiente perigoso, e as pessoas estão contra ti, mais vale deixar o tanque para trás”, diz, frisando que apesar de muitas imagens de tanques, não vimos cadáveres. Só veículos. “Isto pode ser uma evidência de problemas de logística, pode ser um problema de moral baixa, ou os dois. Sabemos que os militares russos se depararam com muitos problemas e não estavam preparados para eles.”
Ninguém esperava a invasão russa. A não ser a Ucrânia (e desde 2014)
Menos poderio militar, menos importância geoestratégica e, ainda assim, até à 6.ª semana de guerra, depois da invasão russa a 24 de fevereiro, é a Ucrânia quem espanta o mundo ao resistir com mestria aos avanços russos, apesar de todas as baixas de guerra e de civis. Obrigou o Presidente da Rússia a mudar de estratégia três vezes e o objetivo principal de Putin, cercar Kiev e fazer cair Vlodymyr Zelensky, não aconteceu.
Como? Há uma série de razões, argumenta Vikram Mittal, militar na reserva do Exército dos Estados Unidos. “O equipamento russo estava desatualizado e não era tão bom quanto todos pensavam. O esforço de modernização da Rússia resultou em que apenas uma pequena percentagem de exército fosse realmente moderna… Ao olhar para uma invasão em grande escala, muitos de seus veículos eram da era soviética”, diz o professor de West Point, a Academia Militar norte-americana.
O analista e politólogo russo Oleg Igantov concorda. “A nossa impressão sobre o grande império russo era baseada no que vimos na Síria. O que parece é que o exército russo está preparado para lutar contra um exército igual ao russo. O exército ucraniano é diferente e eles não aprenderam a lutar contra um exército destes.”
Em contrapartida, os ucranianos prepaparam-se e bem. “A Ucrânia planeou esta invasão. Tiveram 7 anos e meio para planear. Sabiam as rotas que os russos iriam escolher, conheciam as estratégias russas. Conheciam as fraquezas russas. E eles explodiram pontes, destruíram estradas e montaram locais de emboscada para os tanques”, diz o professor Vikram Mittal. Tudo isso, matou o impulso — o momentum em inglês — do ataque russo. “Quando passou de um ataque rápido para um ataque prolongado, os russos tiveram de planear a logística (combustível para veículos, comida para soldados) e o exército ucraniano atacou essas colunas de reabastecimento, tornando inútil um grande número de veículos russos”, sublinha.
Para o militar norte-americano, há ainda outro ponto importante. A estratégia russa passava por alavancar o uso de drones, como fizeram durante a invasão da Crimeia. Também para isso, o exército da Ucrânia estava preparado. “A tecnologia anti drones ucraniana reduziu a eficácia dos drones russos. Enquanto isso, os russos perderam vários dos seus sistemas de anti drones, permitindo que os ucranianos usassem os seus drones para ataques.” Este é um dos exemplos práticos que dão vida às palavras de Michael Clarke: onde uns estiveram bem, os outros estiveram mal.
Vikram Mittal diz que o presidente Zelensky e os seus estrategas estudaram o adversário, tornaram-se conhecedores da sua doutrina e sabiam com que tecnologia iam ser atacados. “Os russos usaram muitos drones na Síria e na Crimeia e a Ucrânia certificou-se de que teria a tecnologia adequada” para se poder defender dos ataques. “Mesmo olhando para trás, para a Geórgia, o exército russo estava mal equipado… Não tinham armadura corporal e visão noturna, dois itens que se tornaram pilares para os militares modernos”, acrescenta o professor de West Point.
Comando de Missão ou como os ucranianos se apoderaram das táticas ocidentais
Foi na altura da invasão da Crimeia, anexada pelos russos em 2014, que a Ucrânia passou uma esponja sobre parte da herança soviética e isso foi fundamental para os pontos fortes que mostraram neste conflito. “A essência é como no desporto, no futebol. Estão a fazer bem o básico”, explica Michael Clarke.
“Quando os ucranianos foram completamente derrotados em 2014 ficaram confusos, politicamente não havia unidade, e os militares estavam completamente divididos. Depois disso, praticamente começaram com uma folha em branco. Conseguiram ajuda de fora, da NATO, muita ajuda britânica, e começaram no básico. Criaram um exército ao estilo europeu, em vez de um exército ao estilo soviético, que era o que tinham herdado”, argumenta o analista britânico.
As diferenças? Num exército ao estilo soviético tudo é centralizado, ordenado de cima para baixo. “São dadas ordens às pessoas e espera-se que elas as levem a cabo. Um exército ao estilo ocidental funciona de baixo para cima. É chamado Comando de Missão. O comandante diz: ‘Isto é o que quero que aconteça e este é o motivo porque precisamos desta campanha.’ E, linha abaixo, comandantes de patentes mais baixas, tomam as suas próprias decisões para dar ao comandante o que ele precisa”, descreve Michael Clarke.
A filosofia do Comando de Missão passa por ter no terreno líderes flexíveis e adaptáveis para conduzirem operações unificadas, com iniciativa disciplinada, mas que ocorre dentro da intenção do comandante que estabelece os objetivos da missão.
Assim, todos os militares envolvidos usam a sua própria iniciativa porque compreendem o Comando de Missão, princípio em que são baseados todos os exércitos ocidentais. “Foi isso que os ucranianos adotaram. Começaram de baixo para cima, fizeram o básico muito bem, aprendendo o bom e o básico trabalho de soldado, da logística e da capacidade de poder operar em pequenos grupos, não precisando de estar presos a uma grande estrutura”, esclarece o britânico, lembrando que os ucranianos têm de se focar apenas em defender o seu país, não tendo ideias de expansão além-fronteiras.
E isso é uma mais-valia, lembra Vikram Mittal. “A Ucrânia está na defesa. Uma força de combate que está na defesa tem uma vantagem de 3 para 1 sobre uma força no ataque.”
Assim, Michael Clarke argumenta que os ucranianos inventaram um esquema só para defender a Ucrânia numa série de estruturas de comando flexíveis e descentralizadas. “Foi isso que fizeram tão bem e foram muito ajudados com armas. Mas eles espelharam… É a palavra errada… Eles contrastaram com os russos.” Onde os russos estiveram mal, os ucranianos estiveram bem.
“Mais um exemplo específico”, continua Michael Clarke. Os ucranianos têm um sistema de comando e controle que não foi comprometido pela guerra eletrónica russa. “Eles melhoraram-no a pensar na interferência russa, o que é sensato, e Elon Musk colocou satélites Starlink sobre a Ucrânia que, até agora, conseguiram resistir às tentativas de bloqueio russas. Eles estão a tentar bloqueá-los, mas ainda não conseguiram. Talvez consigam fazê-lo, em algum momento.”
[O vice-primeiro-ministro da Ucrânia partilhou no Twitter uma imagem das antenas da Starlink que foram enviadas para o país]
Starlink — here. Thanks, @elonmusk pic.twitter.com/dZbaYqWYCf
— Mykhailo Fedorov (@FedorovMykhailo) February 28, 2022
De novo, há uma contraposição entre as duas partes do conflito, sublinha o britânico. “Até agora, os ucranianos conseguiram ter um sistema de comando e controle que é seguro. Podem falar uns com os outros com segurança, enquanto que o sistema russo está escancarado. Uma das razões porque os ucranianos têm informação muito boa dos serviços secretos é porque os russos estão a falar em redes de comunicação aberta e até através de redes de telemóvel, porque o sistema deles não funciona bem. Para todo o lado que se olhe, as fraquezas russas contrastam com os pontos fortes ucranianos.”
Ainda antes de enumerar os erros estratégicos russos, Michael Clarke não tem dúvidas de que, até à data, Vladimir Putin está a falhar todos os objetivos que pensava atingir com esta guerra.
A Rússia pode sair da internet? “Para isolar os russos não basta cortar cabos”
“Está a falhar, apesar de ir culpar toda a gente pelo falhanço”, argumenta o analista, lembrando que o presidente russo já começou a apontar o dedo aos militares e aos serviços secretos. “Toda a guerra é baseada numa ideia louca e errada de tudo o que aconteceu na Ucrânia e na natureza da sociedade ucraniana. É isso que é tão estranho, que a própria ilusão de Putin sobre a natureza da Ucrânia pareça ter dirigido todos os seus generais e os chefes dos serviços secretos a desenhar uma guerra completamente impossível de ganhar. É uma guerra que não pode ganhar.”
A Ucrânia, lembra Michael Clarke, é geograficamente enorme com mais de 44 milhões de habitantes, e não se consegue subjugar um país desse tamanho sem usar todo o exército, durante todo o tempo. “É a guerra mais estúpida, pelo menos no meu tempo de vida. Em comparação, faz com que a guerra do Ocidente no Iraque e no Afeganistão pareçam triviais. Foram intervenções feitas, em larga escala, por bons motivos, mas foram muito mal tratadas, muito mal levadas a cabo. E esta monumental asneira estratégica na Ucrânia fá-las parecer pequenos disparates”.
Outro exemplo de Comando de Missão, relembra Clarke, foi um ataque da marinha ucraniana à base perto de Mykolaiv: destruíram 30 helicópteros, e conseguiram entrar e sair. Perto de Kherson usaram uma tática semelhante para destruir 15 helicópteros estacionados, o que leva o analista a dizer que os russos não têm protegido as suas bases aéreas muito bem, já que os ucranianos estão a destruir muito equipamento enquanto as aeronaves estão no chão.
E nos céus? O poderio russo levava a crer que, nas primeiras horas da guerra, Kiev seria bombardeada do ar, até à capitulação de Zelensky. Mas isso não aconteceu.
“Nós, na comunidade de analistas militares, ainda estamos a coçar a cabeça à conta disso. Pensámos que seria uma campanha furiosa e curta. Esperávamos uma enorme campanha aérea nas primeiras 48 horas que apagaria completamente a Ucrânia. E nenhum de nós saberia o que tinha acontecido rapidamente”, defende Michael Clarke, que diz ainda não saber por que motivo é que isso não aconteceu.
“Não consigo dar uma resposta militar sensata para não ter acontecido, a não ser que, talvez, os russos tenham sobrestimado o que podiam fazer e talvez tenham pensado que poderiam assustar o governo de Kiev à aquiescência”, acrescenta o analista. Avança a hipótese de que o exército de Putin tenha pensado que iria amedrontar os ucranianos, levando-os a desistir. “Subestimaram-nos totalmente. Não consigo dar uma resposta sensata a por que motivo os russos não usaram todas as habilidades que sabemos que tinham naquele primeiro período. Não faço ideia. É incompreensível do ponto de vista de um analista militar.”
Há, no entanto, um ponto importante. Os pilotos russos só fazem 100 horas de voo por ano, enquanto que na NATO — que treinou os militares ucranianos — fazem-se pelo menos 200 horas. Por outro lado, todos os exercícios da Aliança Atlântica passam por trabalhar operações aéreas complexas, que têm de ser dominadas para atacar o inimigo num conflito armado. Os russos não têm o mesmo nível de treinos.
As táticas russas. Guerra de manobra e conflitos congelados
A primeira estratégia dos russos era tentar tomar todo o país rapidamente e fazer saltar o governo de Kiev, instalar o seu próprio executivo pró-russo em 72 horas, e completar operações de limpeza até 8 de março. “Isso revelou-se totalmente impossível, mas esse era o seu objetivo inicial. Quando falhou, criaram uma guerra de manobra, tentando cobrir grandes partes do país, tentando ter as suas tropas a aproximar-se vindas da Rússia, da Crimeia, para criar grandes setas no mapa para circundar as tropas ucranianas”, explica Michael Clarke.
A guerra de manobra é uma estratégia militar que tenta, através do choque e da perturbação, incapacitar a tomada de decisões do inimigo, derrotando-o.
Não só não funcionou, como os russos não conseguiram alcançar as cidades que mais lhes interessavam, à parte de Kherson. “Ficaram sem mais nada para fazer do que bombardear as cidades. Essa foi a segunda estratégia. Não resultou. Agora a terceira estratégia é concentrar em Donbass e tentar segurar toda aquela região”, diz o analista militar. Por enquanto, lembra, os separatistas pró-russos só ocupam um terço das províncias de Donetsk e Lugansk e, militarmente, faz todo o sentido que os russos tentem ficar com a totalidade da região, tentado manter a ponte terrestre com a Crimeia, que inclui Mariupol.
NATO suspeita que a Rússia está apenas a reposicionar forças
“A informação que tenho, não que os russos tenham confirmado, é que retiraram algumas unidades para a Bielorrúsia para reequipar e recuperar. E as reservas que estão a chegar, estamos a falar de 10 batalhões de grupos táticos, a maioria parece estar a ir para o sudeste, na direção da região de Donbass. Faz sentido militar que os russos se concentrem no sudeste e que tenham mudado os objetivos políticos, da conquista de toda a Ucrânia para conquistar outro pedaço do país, como em 2014”, diz Michael Clarke.
O problema é que naquela linha de terra vivem cerca de dois milhões de pessoas e, lembra o analista britânico, grande parte delas odeia os russos. “Não será uma situação pacífica. Até agora a Rússia tem conseguido criar os chamados conflitos congelados”, como na Geórgia, na Ossétia do Sul, na Abecásia, ou na Transnístria, na Moldávia. Um conflito congelado descreve uma situação pós-guerra (ou depois de uma crise) em que o conflito se encontra latente, sem ter sido resolvido através de um tratado de paz ou de outro tipo de mecanismo.
“Se acabarem por ficar com Donbass e esse pedaço de terra que leva à Crimeia, tenho a certeza de que não será um conflito congelado. Os russos vão ter de continuar a lutar para mantê-lo. E as pessoas naquela área, vão continuar a revoltar-se contra eles”, argumenta Michael Clarke, dizendo que esta será uma situação diferente das conquistas anteriores da Rússia. “Com Putin foi sempre assim: ele cria uma crise, pega num pedaço de território ou influência, consegue colocar isso no bolso e afastar-se. Mas não vai conseguir pôr isto [Donbass] no bolso, vai ter de lutar para o manter.”
Os erros russos. Até a lama esteve contra Putin
Do lado da Federação Russa o entendimento será diferente. Entre a maioria dos comentadores ocidentais, e entre aqueles que o Observador ouviu, a opinião é unânime. A Rússia tem cometido todo o tipo de erros no conflito que ela própria desencadeou, sem provocação. Erros militares, políticos, estratégicos e até de comunicação.
“Há muitos erros. Mas o maior erro de Putin parece ser o facto de ele não contar com uma defesa ucraniana”, diz Vikram Mittal, militar na reserva do Exército dos Estados Unidos, tendo essa defesa todas as virtudes estratégicas que já vimos. “Também as operações de logística e de sustentação para os soldados russos não parecem ter sido bem planeadas. Contavam com uma vitória rápida. Quando isso falhou, tiveram de se esforçar para descobrir maneiras de reabastecer as unidades”, diz o professor da Academia Militar dos Estados Unidos, em West Point.
Até a época do ano foi mal escolhida, diz o militar. “Os russos escolheram o pior momento possível para invadir. Se tivessem feito isso antes, o chão ainda estaria congelado, permitindo que seus veículos mais pesados não ficassem presos na lama. Se eles tivessem esperado até mais tarde, o chão também teria sido mais duro (estava encharcado pela neve derretida). Muitos equipamentos russos simplesmente ficaram presos.”
Para Oleg Ignatov, os erros foram essencialmente políticos. “A liderança política russa disse aos militares que o governo ucraniano ia falhar muito rapidamente. Os políticos disseram que como o governo ia desaparecer, não era preciso uma campanha longa. Quando chegassem ao pé de Kiev, Zelensky ia deixar a cidade. Só precisavam de chegar à capital, com um pequeno número de tropas, e os ucranianos iam levantar as mãos”, sustenta o analista sediado em Moscovo. Só que isso, defende, não é um erro da liderança militar russa. “É um erro dos serviços secretos russos e da liderança política. Os militares estão a fazer o que os políticos lhes ordenaram.”
Professor da Universidade de Harvard, Jeremy Friedman lembra que para além de terem subestimado o nível de resistência, os russos “pensaram que iam ter mais apoio entre o povo ucraniano” e subestimaram a sua capacidade de lutar. Em contrapartida, a vontade de ir para a guerra não será grande entre os russos.
“A moral é um grande problema entre as tropas russas. Ninguém teve uma palavra a dizer, parece que até os conselheiros mais próximos de Putin ficaram surpreendidos. Ninguém esperava a guerra e ninguém estava preparado para ela. Não havia base de suporte entre a população, então é difícil reunir soldados para uma guerra que ninguém sabe que vai acontecer”, acrescenta Jeremy Friedman, investigador do Centro Davis para Estudos Russos e Euroasiáticos de Harvard.
“Esta é a grande diferença entre a Ucrânia e Taiwan. Na China estão preparados para tomar Taiwan, na Rússia não estavam preparados para esta guerra”, sublinha o autor do livro Shadow Cold War: The Sino-Soviet Competition for the Third World.
Por último, a sua opinião complementa a de Oleg Ignatov, quando este fala em erro político: “Putin construiu um regime em que ninguém diz a verdade, incluindo a ele próprio, que está no topo. Ele gastou muito dinheiro em armas novas e sofisticadas, mas criou um sistema em que tudo está corrompido e ninguém sabe exatamente para onde vai o dinheiro.” Por isso, Friedman defende ser difícil saber se o dinheiro, ou pelo menos a sua totalidade, foi para onde deveria ter ido.
“Não sabemos e não creio que Putin saiba. Ficamos com a sensação de que a informação que ele recebeu dos serviços de inteligência eram mentiras, as que ele queria ouvir, mais do que verdadeira informação”, conclui o professor.
Por outro lado, a forma como as pessoas avançam num regime autoritário como o de Vladimir Putin é por ser “amigável com o poder”, não por ser competente: “É inteiramente possível que as pessoas que lideram os militares — como Sergei Shoigu, ministro da Defesa — não sejam grandes guerreiros ou estrategas militares, apenas amigos próximos de Putin. Os níveis de competência entre a alta hierarquia militar russa não são assim tão bons.”
Se os russos não estão a vencer, é a Ucrânia que está a ganhar a guerra?
Michael Clarke é cuidadoso. “Os ucranianos foram capazes de lutar com os russos até uma paralisação”, dizia-nos na 5.ª semana de guerra, quando se tornava óbvio, com declarações oficiais russas nesse sentido, que depois do falhanço do plano A e do plano B, as tropas de Vladimir Putin alinhavam o plano C: tomar a região de Donbass. Ponto parágrafo.
“Forçaram os russos a mudar de estratégia e isso não é o mesmo que ganhar a guerra. É um passo na direção de sobreviver a esta guerra como uma nação e de talvez ganhar a guerra politicamente, no longo prazo — é assim que explicaria a posição ucraniana do momento”, dizia, ao 33.º dia do conflito, o britânico que fez parte, em 2004, do Conselho Consultivo do secretário geral da ONU para Assuntos de Desarmamento.
Apesar de tudo, é importante dizer que os russos entraram nesta campanha com forças relativamente leves. “Pensaram que seriam forças leves, de movimento rápido, e não foram. Têm mais números que podem trazer e têm mais poder de fogo — mais artilharia, mais rockets, e por aí fora. Se eles forem fazer isto bem, o facto de os ucranianos se terem saído tão bem no primeiro mês, não quer necessariamente dizer que os russos vão perder no solo. Eles podem atolar a Ucrânia com forças militares se continuarem durante mais 6, 8 meses” com o conflito. O maior travão a esse cenário poderá ser o financeiro, mas Clarke desconfia que nem isso o parará: “Se Putin escolher gastar o dinheiro, ninguém vai impedi-lo.”
Em West Point, Vikram Mittal é mais otimista em relação à posição da Ucrânia no final do conflito. Se a Rússia não está a ganhar a guerra, podemos dizer que a Ucrânia está? “Tudo depende do que é considerado ser vencedor. A guerra definitivamente não segue da forma que os russos a planearam. No final, haverá grandes danos infligidos à Ucrânia com uma perda significativa de vidas. Os russos podem obter uma pequena quantidade de território, mas a um custo alto.”
Vikram Mittal, também ele veterano de guerra e major da Reserva do Exército dos EUA, acredita que “no final, esta não é uma guerra vencível”, mas, dito isto, acredita que “há uma grande probabilidade de os ucranianos conseguirem expulsar os russos sem lhes conceder território”.
A 17 de março, Alexander Stubb, antigo primeiro-ministro da Finlândia, era questionado na Sky News sobre o fim da guerra. A sua previsão, ao 22.º dia do conflito, era acutilante: “Se estivermos a falar de perder em termos de mostrar ao mundo a fraqueza do nosso exército, então Putin já fez isso. Os ucranianos já ganharam. Mas vão conseguir manter a soberania e integridade do seu território? Esse é o elemento chave.”