Durante anos, permaneceram escondidas atrás da tinta que, de quando em vez, surgia nas paredes do Centro de Estudos Sociais (CES), na forma das palavras “Todas sabemos”. Agora, algumas mulheres que terão vivido episódios de assédio e abuso de poder poderão dar a cara, numa reação à divulgação do relatório da comissão independente, que concluiu haver indícios de abusos e de assédio sexual e moral na instituição ao longo dos anos.
Quem o revela ao Observador é Daniela Félix, advogada que representa um coletivo de mulheres de várias nacionalidades que denunciou casos de abuso e assédio naquela instituição: haverá uma reação ao documento divulgado esta quarta-feira e essa reação poderá contar com a participação de algumas “vítimas”.
O anúncio acontece depois de se saber que o CES vai enviar a informação que recebeu – inclusivamente nomes dos denunciados – para o Ministério Público e avalia a abertura de processos disciplinares, conforme adiantou o Tiago Santos Pereira, atual diretor do CES no dia da publicação do relatório final: “O CES enquanto instituição não pode suspender nenhum trabalhador sem instaurar processo disciplinar. Estamos a avaliar possibilidade de o fazer”.
Coletivo já tinha acusado a comissão de se ter “esquecido das vítimas” e criticou o prazo para denúncias
Ao Observador, através de uma mensagem escrita, a advogada não quis adiantar ao certo qual a reação deste coletivo de mulheres, dizendo apenas que o mesmo “vai posicionar-se publicamente provavelmente na próxima semana”. “É possível que se faça uma apresentação pública com participação das vítimas, após a análise com rigor dos conteúdos do relatório”, acrescentou ainda.
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O coletivo tinha divulgado recentemente uma carta aberta (antes da publicação do relatório), em que fez duras críticas à comissão independente, criada a 1 de agosto do ano passado, no seguimento da publicação do capítulo “As paredes falaram quando mais ninguém podia”, do livro “Sexual Misconduct in Academia” (Conduta Sexual Imprópria na Academia), com o selo da editora britânica Routledge e a assinatura de três investigadoras, Lieselotte Viaene, Catarina Laranjeiro e Miye Nadya Tom.
Na carta criticava-se o facto de as denunciantes não terem recebido resposta às denúncias enviadas e de não ter existido um “compromisso de receber o relatório da comissão independente”, antes de ele ser tornado público. “O relatório, realizado com base na partilha das nossas histórias de sofrimento, será apresentado às/aos investigadoras/es do CES antes de nos ser apresentado”, apontaram.
Tal levou o coletivo a afirmar que “a dignidade e a segurança das vítimas não são a prioridade deste processo“. “Fazem-nos crer que as vítimas foram esquecidas“, sublinharam.
A comissão independente para o esclarecimento de eventuais situações de assédio no CES apresentou esta quarta-feira o relatório final, feito com base em 32 denunciantes, contabilizando 14 visados e centenas de páginas de testemunhos. Primeiro, fê-lo ao CES e só depois, quando o documento já era público, houve uma conferência de imprensa, tendo nessa altura sido sublinhada uma das principais conclusões: “Da análise de toda a informação reunida (…), [resultaram] padrões de conduta de abuso de poder e assédio por parte de algumas pessoas que exerciam posições superiores na hierarquia do CES”.
Esta não foi a primeira vez que o coletivo criticou a forma de atuação da comissão independente. Após ter exigido a sua criação, defendeu que o prazo estipulado para as alegadas vítimas enviarem as suas denúncias era curto, visto que a comissão estabeleceu um intervalo entre 1 de agosto e 30 de setembro.
“Salienta-se à imprensa a surpresa do coletivo [de mulheres] em atestar que, depois do longo tempo levado para instituir a comissão [independente], o CES tenha fixado um período tão exíguo para apresentação de denúncias”, referiu ainda no mês de agosto de 2023, numa nota de imprensa enviada à agência Lusa.
Grupo de mulheres diz que prazo para denúncias de assédio no CES de Coimbra é curto
Além de ter destacado que o prazo decorria “em pleno início de férias”, o grupo frisou que isso demonstrava “uma subversão do compromisso com os direitos das vítimas, que deve orientar esses procedimentos desde o início”. “Em consideração ao direito de denúncia das vítimas, o coletivo considera imprescindível que a comissão assegure uma extensão no prazo de submissão de denúncias”, salientou.
Processos disciplinares: existência do relatório não é suficiente para uma consequência, diz advogado
Outra das consequências já conhecidas deste relatório é a possibilidade de o CES avançar para a abertura de processos disciplinares. Mas o conteúdo do documento é suficiente para afastar Boaventura Sousa Santos, Bruno Sena Martins e os restantes visados dos cargos?
Ao Observador, o advogado Paulo Veiga e Moura explica que não. “O simples facto de haver um relatório que aponta para que Boaventura Sousa Santos e os outros tenham praticado determinados comportamentos, não é, por si só, sinónimo de que alguém seja culpado e condenado”, sublinha.
Para isso, é preciso que o CES formule uma “acusação”, ou seja uma nota de culpa, contra os visados, no âmbito de um processo disciplinar. A instituição terá, para isso, um prazo de 60 dias para iniciar os procedimentos.
“Se efetivamente houver um vínculo contratual entre o CES e o Boaventura, naturalmente o CES pode instaurar um processo disciplinar”, revela. “Se o Boaventura hoje já não tiver nada a ver com o CES, o CES não pode fazer nada ao Boaventura”, acrescenta.
Recorde-se que Boaventura Sousa Santos e o seu assistente autos-suspenderam-se dos cargos que ocupavam na instituição “até ao apuramento das conclusões” da comissão independente. O Observador tentou contactar o CES para perceber se esta suspensão ainda se mantém e se o antigo diretor ainda tem algum vínculo contratual, mas não obteve resposta.
Caso algum dos visados seja apenas colaborador da instituição, ficará livre de um processo disciplinar, segundo o advogado. “Como são meros prestadores de serviços, o que o CES pode fazer é cortar a colaboração e dá-la como finda“, continua.
Já no caso de Boaventura Sousa Santos, como outros denunciados, terem um vínculo contratual, aí abre-se o tal processo disciplinar, que tem “o andamento que o próprio instrutor e a instituição lhe quiserem dar”.
Isto, porque, apesar de o CES – através da comissão independente – já ter ouvido todos os denunciantes e os seus testemunhos, não havendo por isso necessidade de “repetir tudo o que já fez”, agora é a vez de a defesa dos visados os ouvir.
No caso da abertura de um processo disciplinar, “vai depender da própria defesa que for feita pelos visados, das testemunhas que os visados queiram ouvir e da prova que eles conseguirem fazer. Só depois é que o CES terá que concluir se efetivamente eles são ou não culpados”.
Caso o CES venha a decidir que os testemunhos das alegadas vítimas se confirmam, os funcionários com vínculo contratual permanente podem, “em hipótese extrema de maior gravidade, ser despedidos”, explica Paulo Veiga e Moura.
Além da abertura de processos disciplinares para apurar as responsabilidades, o advogado referiu a hipótese de o CES encaminhar o relatório para o Ministério Público. Algo que o atual diretor, Tiago Santos Pereira, garantiu que seria feito, tendo acrescentando que ia enviar, além do relatório final, outras informações, como o nome dos denunciados para efeitos de um inquérito-crime. Isto, porque “foi acordado” que o relatório não indicaria as identidades.
O Observador contactou a Procuradoria-Geral da República, para perceber se já tinha recebido tais informações e se já teria sido aberto algum inquérito, mas não obteve resposta até à publicação deste artigo.
Das paredes ao livro britânico: por onde se escreveu o que se passava no CES?
O caso remete ao ano de 2018, quando, nas paredes do CES, apareceram as frases “Fora Boaventura” e “Todas sabemos”. Apesar de terem sido por diversas vezes apagadas com lixívia, a verdade que estava por trás viria a figurar no capítulo de um livro publicado em inglês, cerca de cinco anos depois.
Sem nunca referirem os nomes do CES, nem do à data diretor Boaventura Sousa Santos e do seu assistente e investigador Bruno Sena Martins, três investigadoras reportaram casos de abuso numa “instituição sediada num país onde poucos financiamentos públicos são atribuídos à investigação científica”, envolvendo um Professor-Estrela, descrito como alguém que “estabeleceu uma escola académica de pensamento, que apela a estudantes de doutoramento e investigadores juniores de todo o mundo”.
Boaventura Sousa Santos não demorou a reconhecer-se na personagem do Professor-Estrela, tendo ameaçado avançar com um processo-crime por difamação contra Miye Tom, Catarina Laranjeiro e Lieselotte Viaene, negando todas as acusações, nomeadamente que alguma vez tivesse tido reuniões com as duas primeiras autoras.
Boaventura Sousa Santos acusou ainda a terceira de ter cometido “um ato miserável de vingança institucional e pessoal”. “Nada […] justifica esta diatribe contra uma instituição e ainda por cima tão personalizada contra alguém que no máximo foi absentista na sua orientação”, sublinhou, na carta aberta “Diário de uma difamação-1”.
Além do sociólogo, eram também mencionados no texto o Aprendiz (Bruno Sena Martins, assistente de Boaventura) e a Vigilante. Ambos eram amigos íntimos do primeiro, sendo que a Vigilante mantinha uma relação muito próxima com o professor.
No capítulo “As paredes falaram quando mais ninguém podia”, do livro “Sexual Misconduct in Academia”, as duas personagens secundárias “faziam o papel de porteiros”, ou seja, eram responsáveis por receber os doutorados estrangeiros, estudantes e outros jovens investigadores e encaminhá-los para o Professor-Estrela, especialmente no contexto de convívios fora da instituição.
“Certa vez, o Aprendiz convidou os alunos para uma festa em sua casa. Rindo, disseram que ele provavelmente estava a planear uma orgia. Essa piada revela uma ambivalência: os seus alunos sentiam-se empoderados ao serem convidados no sentido de pertencerem ao círculo interno. Alguns até estavam cientes dos perigos, que negaram com humor”, sugeriram as investigadoras.
Ao longo do capítulo, as autoras referem que os “jovens investigadores ficavam por vezes muito isolados”, como aconteceu com a “antiga estudante internacional de doutoramento e da antiga investigadora pós-doutorada [forma como se auto-denominaram], que tiveram conhecimento do comportamento habitual de aliciamento e extrativismo sexual do Aprendiz tarde demais”.
O livro foi lançado a 31 de março e demorou apenas uns dias para começar a circular dentro das paredes do CES. Tal acabou por levar a que Boaventura Sousa Santos e Bruno Sena Martins se auto-suspendessem “de todos os cargos que ocupavam até ao apuramento das conclusões” da comissão independente, anunciou a direção e presidência do centro. Conclusões essas que foram tornadas públicas esta quarta-feira.
Além da principal conclusão, que dita que há indícios de abusos e assédio na instituição, o relatório da comissão traçou um perfil das alegadas vítimas – a maioria são mulheres, com especial destaque para pessoas oriundas do continente americano; e dos denunciados — a maioria são mulheres também, na maior parte dos casos na instituição há quatro anos.
O documento, com cerca de 114 páginas, dava ainda conta de que as denunciantes se tinham queixado de “contactos com alunos/as e investigadores/as em horas impróprias (por vezes durante a madrugada) para tratar de assuntos não urgentes (que poderiam ser resolvidos no período normal de trabalho) e por vezes, para satisfação de necessidades e caprichos pessoais (como solicitações para aquisição de produtos para consumo próprio dos investigadores/as principais e/ou professores/as)”, “beijos húmidos e demorados”, “toques indesejados e não consentidos em partes do corpo como coxas, nádegas e zonas genitais”, “relações sexuais cuja avaliação estava diretamente dependente das pessoas que as procuravam”, entre outras situações de assédio sexual e moral.