A data da abertura do inquérito criminal ao caso das gémeas — 7 de novembro de 2023 — já foi considerado pelo Presidente Marcelo Rebelo de Sousa como um ato “maquiavélico” por parte da procuradora-geral Lucília Gago. Tudo porque foi nessa data que também foram lançadas as buscas da Operação Influencer e anunciada a extração de uma certidão para investigar o então primeiro-ministro António Costa.
Certo é que, maquiavelismos à parte, o Presidente não é considerado suspeito pela investigação do Departamento de Investigação e Ação Penal (DIAP) de Lisboa e da Polícia Judiciária (PJ) ao chamado caso das gémeas. O mesmo acontece com a ex-ministra Marta Temido.
Supremo Tribunal de Justiça recusou investigar Marcelo no caso das gémeas
Ao que o Observador apurou, e apesar de a realidade de qualquer investigação criminal ser dinâmica por natureza (devido à aquisição de prova ao longo do tempo), é pouco provável que a situação se venha a alterar. Os dois documentos estruturais para a investigação — as auditorias do Hospital de Santa Maria e a da Inspeção-Geral das Atividades em Saúde (IGAS) — não indiciam nenhum facto comprometedor para Marcelo e Temido e a investigação não tem, neste momento, outro tipo de informação.
Já o mesmo não se pode dizer sobre Nuno Rebelo de Sousa. Juntamente com Lacerda Sales, o filho do Presidente da República é considerado um dos principais suspeitos do caso. Se o ex-secretário de Estado da Saúde já foi alvo de buscas e constituído arguido na última segunda-feira, tal significa que Nuno Rebelo de Sousa será o próximo alvo da investigação do MP e da PJ.
As suspeitas contra Lacerda Sales
Abuso de poder, prevaricação, burla qualificada e tráfico de influência são os crimes que estão na base de uma operação de buscas que a PJ lançou esta semana. A primeira busca foi executada na última segunda-feira no domicílio de Lacerda Sales, no concelho de Leiria, tendo o ex-secretário de Estado de Saúde sido constituído arguido pelo crime de abuso de poder.
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A investigação a Sales tornou-se inevitável a partir do momento em que as auditorias do Hospital de Santa Maria, concluída em dezembro de 2023, e a da IGAS, terminada em abril de 2024, concluíram exatamente o mesmo: as gémeas luso-brasileiras foram favorecidas e tiveram acesso irregular à primeira consulta de referenciação no Hospital de Santa Maria e Lacerda Sales terá tido intervenção nessa pressão sobre o serviço do Departamento de Pediatria. Há a referência explícita a um telefonema do gabinete do secretário de Estado Lacerda Sales para a direção do Departamento de Pediatria.
Já a IGAS confirmou a mesma intervenção e acrescentou que também o Hospital de Santa Maria e o Infarmed desrespeitaram igualmente a lei. A unidade hospitalar por via da violação das regras de acesso dos utentes ao SNS, e o Infarmed por ter começado a analisar o pedido para a toma do Zolgensma, o medicamento mais caro do mundo que, na época, custaria cerca de 4 milhões de euros.
Além da casa de Lacerda Sales, as buscas da PJ visaram igualmente Luís Pinheiro, ex-diretor clínico do Santa Maria, que foi alvo de buscas domiciliárias esta quinta-feira e constituído arguido pelo mesmo crime imputado ao ex-secretário de Estado da Saúde.
As mesmas buscas foram realizadas à casa de Daniela Teixeira, mãe das gémeas luso-brasileiras, no concelho de Cascais. Trata-se da morada que Teixeira terá dado às autoridades de saúde e da Segurança Social.
Por outro lado, os inspetores da PJ visitaram ainda duas unidades de saúde: o Hospital de Santa Maria e a unidade de Cascais do Centro Hospitalar de Lisboa Ocidental. O objetivo foi recolher toda a documentação relacionada com os processos clínicos relacionados com as gémeas Maitê e Lorena, mas também a documentação administrativa relacionada com a primeira e outras consultas das crianças.
As autoridades estiveram ainda nas instalações da Segurança Social, nomeadamente no Instituto de Segurança Social, na Administração Regional de Lisboa e Vale do Tejo e no Ministério da Saúde.
As buscas no Ministério da Saúde passaram a pente fino os emails de Lacerda Sales
No Ministério da Saúde, foram feitas buscas específicas ao antigo gabinete usado por Lacerda Sales, a sua secretária e os assessores, como também aos serviços partilhados para a realização de pesquisas informáticas aos servidores do Ministério para passar a pente fino a caixa de correio eletrónico do ex-secretário de Estado da Saúde e dos seus assessores.
Os investigadores levaram uma lista específica com um conjunto de destinatários já pré-selecionados para facilitar a pesquisa informática. Estão em causa os nomes mais relevantes da estrutura do gabinete de Lacerda Sales e também dos responsáveis do Hospital de Santa Maria, como o então diretor clínico Luís Pinheiro.
A PJ está a tentar reconstituir todo o circuito documental desde o primeiro momento em que Lacerda Sales foi informado sobre a situação das gémeas e a respetiva interação com o Hospital de Santa Maria.
O papel de Nuno Rebelo de Sousa
E é aqui que entra Nuno Rebelo de Sousa, amigo pessoal de Daniela Teixeira e Samir Assad. Apesar de o filho do Presidente Marcelo Rebelo de Sousa nunca ter prestado declarações públicas sobre este caso, foi o próprio Lacerda Sales quem, em entrevista ao semanário Expresso, confirmou que Nuno Rebelo de Sousa lhe pediu uma reunião, tendo durante a conversa abordado o caso das duas crianças luso-brasileiras para apresentar a Sales o respetivo quadro clínico complexo de atrofia muscular espinhal e a necessidade de serem vistas no Santa Maria.
O ex-n.º 2 de Marta Temido diz também que não sabia do “processo formal paralelo” que existira no Palácio de Belém — e que chegou a envolver alguns assessores da Casa Civil da Presidência da República — no Hospital Dona Estefânia.
Na mesma entrevista, Lacerda Sales refutou qualquer benefício às gémeas luso-brasileiras e reafirmou que não marcou qualquer consulta. “Não marquei nenhuma consulta, não fiz nenhum telefonema, nunca recebi nenhum processo formalmente constituído e, portanto, também nunca contactei formalmente o Hospital de Santa Maria”, concluiu.
Mesmo assim, Lacerda Sales assumia “as responsabilidades do que possa ter ocorrido no meu gabinete, com ou sem o meu conhecimento, e gostaria de pedir desculpa aos portugueses de bem e que percebessem que se alguma coisa ocorreu teve um único objetivo: salvar duas crianças.”
Nuno Rebelo de Sousa poderá ser investigado por burla qualificada (com os pais das gémeas) e tráfico de influência
Entre as várias buscas realizadas, há um grupo que se destaca e que está relacionado com Nuno Rebelo de Sousa e os pais das gémeas: as buscas aos vários departamentos da Segurança Social.
Os investigadores foram recolher a prova documental que interessa para os autos, nomeadamente a forma como a Segurança Social financiou a compra de várias cadeiras elétricas apropriadas ao estado de saúde das gémeas luso-brasileiras.
O investimento total terá superado os 58 mil euros e é este o montante em que a alegada burla terá prejudicado o Estado.
É igualmente certo que os pais das gémeas-luso brasileiras poderão ser visados nesse segmento da investigação.
A questão do timing: data da busca foi decidida pela juíza de instrução criminal
Houve muitas vozes no espaço público, próximas do PS, que criticaram o facto de estas buscas judiciais terem acontecido em plena campanha eleitoral para as Europeias. Poderia ter sido diferente? E foi mesmo o Ministério Público e a Polícia Judiciária quem marcou a data para a realização das buscas?
Uma explicação prévia: buscas judiciais, como a desta quinta-feira, que visou 11 alvos, são organizadas de forma atempada. Significa isto que o MP e a PJ começaram a planear a realização destas buscas muitas semanas antes de a mesma passar ao terreno.
No caso concreto destas buscas judiciais, havia um problema acrescido: a juíza de instrução criminal tinha de autorizar buscas domiciliárias e, acima de tudo, a quebra do sigilo profissional dos médicos. Sendo igualmente certo que a juíza de instrução criminal teria de estar presente no ato das buscas em unidades hospitalares da Grande Lisboa para zelar pelo cumprimento das regras.
Resumindo e concluindo: foi a juíza Gabriela Sequeira quem decidiu quando seriam concretizados os mandados de buscas — e decidiu-se por esta semana.