À entrada do prédio havia pingos de sangue, uns chinelos, um boné e o telemóvel de David Mota, um rapper da zona de Sintra que começava a dar os primeiros passos na música e que, aos 28 anos, era conhecido pelos fãs como Mota Júnior. Naquela madrugada do dia 14 de março de 2020, quando a pandemia obrigara ao encerramento das escolas, a mãe de David pensava que ele estava em casa a dormir. Até que uma vizinha a alertou para aquele cenário no hall. A mãe e a irmã de David correram para a rua à procura dele e telefonaram à polícia, até que o telefone do músico desaparecido tocou. “O David foi atacado por dois encapuzados que entraram armados no prédio e começaram a bater-lhe”. Sara, a irmã de David, que atendeu a chamada, disparou logo várias perguntas. Mas a voz feminina do outro lado rematou a conversa: “Agora tenho que ir descansar, estou muito ansiosa”, terá dito.
Filomena Mota, a mãe de David, ainda hoje se lembra de cada um desses momentos — quando não sabia ainda o que tinha acontecido efetivamente ao filho. Só o soube dois meses depois quando o corpo do rapper apareceu já em estado de decomposição num descampado em Sintra. A Polícia Judiciária acabaria por deter mais tarde os suspeitos: João Luizo, 26 anos, agente imobiliário, e Édi Barreiros, 28 anos, empregado de bar, que ainda fugiram para Inglaterra, assim como Fábio Martins, um carpinteiro de 28 anos. Reconstituído o crime de roubo que, segundo os suspeitos, acabou mal, a PJ detinha também a rapariga que dava a voz aquele misterioso telefonema para o telemóvel da vítima: era Catarina, uma esteticista de 24 anos que morava na zona de Sacavém e que era amiga da antiga namorada de David Mota, à data do crime namorada de João Luizo.
Catarina foi detida pela sua intervenção no crime. Foi considerada um engodo para o crime que acabaria num violento homicídio depois de David resistir ao roubo. Em primeiro interrogatório judicial, a jovem esteticista respondeu apenas pela coautoria do crime de roubo. Mas o Ministério Público acabaria por acusá-la também pela coautoria no homicídio do rapper. Uma decisão revertida mais tarde pelo juiz de instrução — que decide se o caso deve seguir para julgamento e em que termos — e com a qual o Ministério Público nunca se conformou. Enquanto Catarina era julgada no Tribunal de Sintra, acusada apenas pelo crime de roubo, ao lado de três outros suspeitos acusados de crimes como homicídio, roubo e profanação de cadáver, o Ministério Público recorria para o Tribunal da Relação de Lisboa da decisão instrutória e pedia que Catarina fosse responsabilizada pelo resultado do roubo: o homicídio. Catarina acabou condenada a quatro anos e meio de prisão por roubo, enquanto João, Édi e Fábio ouviam uma sentença de 23 anos de prisão em cúmulo jurídico, pelos crimes de homicídio qualificado, roubo agravado, sequestro, profanação de cadáver e furto qualificado.
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Mas a situação jurídica de Catarina não ficaria resolvida aqui. O Tribunal da Relação de Lisboa deu razão ao Ministério Público: pelos factos descritos na acusação, Catarina tem que ser julgada também por homicídio. O julgamento já começou no Tribunal de Sintra e as alegações finais estão marcadas para esta terça-feira.
Mas, afinal, qual foi a intervenção de Catarina neste caso?
O misterioso desaparecimento de David
É preciso recuar ao início de março de 2020, ainda antes do primeiro confinamento decretado para evitar a propagação de Covid-19. Segundo a acusação do Ministério Público, João Luizo, Édi Barreiros, Fábio Martins e Catarina Belo combinaram entre si como podiam assaltar David Mota. Mota Jr., como era conhecido, tinha já cultivado uma legião de fãs e até tinha um álbum que vendia diretamente aos clientes. Nos videoclips, exibia carros de alta cilindrada, carros topo de gama e muito dinheiro, o que além dos fãs alimentava também ódios e rivalidades — que a Polícia Judiciária viria a escrutinar nos meses seguintes ao seu desaparecimento.
Quando João — que à data namorava com a antiga namorada de David —, Édi, Fábio e Catarina delinearam o plano para roubar para David, atribuíram a Catarina a missão de se aproximar do músico. Catarina começou a trocar mensagens com ele e, naquele dia 14 de março, acabaram por marcar encontro junto à escola Marquês de Pombal, em Oeiras. Catarina foi levada por uma amiga, mas a PJ viria a descobrir que o plano era regressar a casa de Uber, conduzido por um amigo de João.
David saiu de casa no seu Mercedes ainda antes da meia noite para deixar um amigo em casa. A mãe, ao ouvir a porta bater, achou que era o amigo a sair. Desconhecia que David também tinha saído. O rapper acabou por encontrar Catarina já pela 1h00 do dia 15. Conversaram e ainda passaram num McDonald’s até seguirem para a casa onde David vivia com a mãe e a irmã, em São Marcos. Tudo mudou quando o casal entrou no prédio.
Cá fora, dentro do seu carro BMW, estava João. À entrada do prédio, escondidos, Édi e Fábio. Um deles, lê-se na acusação, empunhou uma arma à cabeça de Catarina. “Sai daqui”, gritou. Catarina fugiu dali e ainda viu os agressores a agredirem David. O rapper ainda gritou e resistiu. Do carro, João ouviu os gritos e juntou-se ao grupo. Os três acabaram por arrastar David dali, espancando-o até o amarrarem e o enfiarem na mala do carro. “Agiram com tal desprezo e indiferença pela vida humana”, viria a concluir mais tarde o tribunal.
João conduziu o carro até à casa de um amigo nos Olivais onde costumava pernoitar. O amigo viria a contar mais tarde à Polícia como os três ali chegaram, com as roupas manchadas de sangue. “Estavam com um comportamento bastante alterado, nervosos e sobressaltados”. João ainda explicou ao amigo que “as coisas não tinham corrido bem” e que o sangue que tinha na roupa era de David. Édi tinha um ferimento na mão, tinha sido mordido e foi a correr desinfetar-se. Repetia várias vezes “grande merda, grande merda”. Os três trocaram de roupa, enfiaram-na dentro de um saco e voltaram a sair.
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Por esta altura Filomena, a mãe de David, e a irmã Sara andavam desesperadas à procura de David. A PJ, que chegara ao local, acabaria por levá-las para elaborarem um auto. E João, Édi e Fábio voltariam ao local do crime. Com a chave de casa da vítima subiram as escadas, entraram no apartamento e ainda roubaram jóias e o dinheiro de David. Só depois seguiram para Sesimbra para abandonar o corpo do músico num descampado junto a uma estrada municipal – onde seria encontrado dois meses depois em estado de decomposição mas com evidências de ter sido vítima de uma agressão brutal.
A investigação da PJ e as chamadas que denunciaram os suspeitos
Durante a investigação, a Polícia Judiciária acabaria por chegar à identidade de Catarina, que naquela noite ainda ligou para o telemóvel de David. Do seu telemóvel os investigadores chegaram a João, com quem ela trocou várias chamadas e mensagens na noite do crime. Do telefone de João chegaram a Vera, uma jovem fadista que namorara com David tempos antes. Foi a ela que João mandou uma mensagem horas depois do crime onde dizia que tinham que se ver e que ela não poderia ir trabalhar para estar com ele.
Da acusação consta ainda um episódio ocorrido horas antes do crime que relata que João, quando estava no carro com Vera, fez uma chamada para Édi em que disse: “Hoje é um bom dia para apanharmos o nosso menino, ou não?” E um outro no dia seguinte, em que João conta a Vera que David acabou por morrer. “Fiz isto por uma merda de nada”, terá dito, numa altura em que batia a várias portas para tentar vender as peças de ouro que roubara, já que afinal o dinheiro vivo que David tinha em casa não seria assim tanto.
Ainda assim, todos os suspeitos garantiram que o objetivo não era matar, mas roubar. Para o Ministério Público, porém, quem “decide efetuar um roubou contra determinada pessoa com recurso a violência física e a uma arma de fogo, mediante superioridade numérica e com condições para não serem vistos por ninguém, aceita como possível que no seu decurso tivesse que ser feito uso da força e que, nessa sequência, a pessoa pudesse morrer, tendo-se conformado com o resultado”. O Ministério Público responsabiliza não só os três suspeitos que agrediram David até à morte, como Catarina, “que atuou em comum e prévio acordo e em comunhão de esforços e de intentos com os demais arguidos”.
O juiz de instrução que avaliou a acusação, porém, não teve entendimento igual. Catarina não estava presente aquando do homicídio, “impedindo assim o acordo dinâmico ou conformação e participação para obtenção de um resultado não previsto inicialmente”, como a lei prevê para a coautoria num crime. “Nem todos os comparticipantes devem ser culpados do resultado ocorrido por vontade direta da intervenção de outros comparticipantes”, concluiu-se na instrução, que deixou cair a acusação do crime de homicídio que pendia contra Catarina e pronunciado-a apenas pelo roubo.
Tribunal condena a 23 anos de prisão homicidas do rapper Mota Jr.
Relação diz que só em julgamento se vai perceber o verdadeiro papel de Catarina
O Ministério Público recorreu dessa decisão. “Ao concertar um plano com os restantes coarguidos e ao aproximar-se da vítima e com ela estreitar a sua relação, [Catarina] colocou David Mota no local e hora em que os demais arguidos deviam atuar, permitindo a subtração de bens que a vitima trazia consigo e que tinha dentro da residência”, lembrou a procuradoria. Catarina defendeu-se. Diz que ela própria foi ameaçada naquela noite, à entrada do prédio de David, e que só soube o que efetivamente aconteceu mais tarde e porque o perguntou depois de perceber que algo tinha corrido mal.
O tribunal superior acabou a dar razão ao Ministério Público. Para os desembargadores, o “problema de saber se a arguida Catarina não aceitaria alinhar no assalto se soubesse que poderia haver uma morte ou se no quadro da sua capacidade de perceção lhe era exigível ou não que previsse a morte como uma possibilidade, ainda que longínqua, é matéria de prova e não de qualificação fáctico jurídica”, concluíram. A única questão, sustentaram, é se o crime de homicídio qualificado em coautoria anula o crime de roubo e o consome por ser mais grave. “Terá que ser em julgamento.”
A arguida Catarina Sanches foi condenada em novembro a quatro anos e seis meses de prisão de pena efetiva pelo crime de roubo agravado e o coletivo de juízes considerou mesmo ter sido em coautoria com os restantes arguidos e não apenas em “mera cumplicidade” — pelo que decidiu nem sequer suspender a pena, o que seria possível por ser uma pena inferior a cinco anos.
Catarina está a ser julgada novamente, desta vez sozinha. Na assistência está sempre a mãe de David, Filomena, que só quer que se faça justiça.