O Ministério da Administração Interna revelou que o Centro de Instalação Temporária de migrantes no complexo prisional de Caxias já não vai existir, mas os contratos relativos a todas as obras que, em vão, foram feitas durante várias semanas foram classificados como sigilosos, devido a “aspetos securitários, imanentes aos centros de instalação temporária”. O pedido de acesso à documentação inicialmente feito pelo Observador ao ministro da Administração Interna, Eduardo Cabrita, foi ’empurrado’ para o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, por, segundo a tutela, ser da competência deste serviço dar uma resposta. Mas o órgão de polícia criminal recusou dar acesso aos documentos. Não se sabe, por isso, ao certo o que foi adjudicado, quanto custou, nem quais foram as empresas contratadas.
Ao que o Observador apurou junto de fontes próximas do processo, um dos objetivos da parceria com a Direção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais (DGRSP) passaria por utilizar a mão de obra dos reclusos do estabelecimento prisional, que chegaram mesmo a carregar os materiais comprados — não se sabe por que valor ao certo, nem a que empresa ou empresas — e a fazer uma parte significativa da obra que estava prevista: construir casas de banho nos quartos e fazer uma copa.
E, de facto, no contrato de cedência do espaço, o único documento enviado ao Observador pelo SEF, é feita uma referência à possibilidade de serem os presos a fazerem a limpeza e pequenas obras, não se falando claramente na empreitada de adaptação do edifício para centro de migrantes: “O SEF e a DGRSP poderão acordar que a limpeza das instalações, manutenção de jardins e pequenas obras de conservação sejam garantidas por reclusos, em regime aberto, através de acordos específicos de colaboração entre as duas instituições públicas, no âmbito da Reinserção Social.” O SEF não enviou ao Observador, porém, qualquer documento relativo a um acordo específico.
E, questionada diretamente na última terça-feira sobre quem pagaria o trabalho dos reclusos nas obras de transformação do edifício, a Direção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais afirmou “que todo trabalho que é desempenhado por reclusos, quer seja para entidades públicas, quer seja para autarquias, quer seja para privados, é objeto de remuneração por parte da entidade contratante, sendo pago em função de tabelas pré aprovadas”. Ou seja, além do preço pela compra dos materiais, o SEF também terá ainda de pagar aos presos.
O processo de instalação de um centro temporário para migrantes na ala sul daquela prisão foi, desde o início, uma decisão cheia de pontas soltas, com o recuo da tutela a gerar um certo mal-estar dentro do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras. Primeiro, o ministro da Administração Interna disse, no início do mês de junho, no Parlamento, que estava a ser estudada a solução de Caxias, quando, na verdade, o protocolo com os serviços prisionais já havia sido celebrado em fevereiro. Depois, começaram as obras, numa altura em que já havia uma forte contestação à solução encontrada, por parte da oposição e de organizações não-governamentais da sociedade civil. A solução era inclusivamente vista com reticências pela Provedora de Justiça. A terminar, e já depois de feito o investimento, o ministério de Eduardo Cabrita voltou atrás.
Cabrita recua e suspende reconversão da ala da prisão de Caxias em centro temporário para imigrantes
As adjudicações que não podem ser reveladas
Quando questionado sobre os custos da remodelação da ala sul de Caxias, ainda antes de a mesma ter sido abandonada, o SEF limitou-se a dizer ao Observador, a 23 de junho, que se encontrava “a realizar uma obra de reestruturação num imóvel desocupado, pelo valor de cerca de 12 mil euros“, adiantando que a obra deveria “ficar concluída no final do mês de agosto”.
A mesma fonte tinha também respondido a outro pedido de esclarecimentos, cinco dias antes, confirmando que “a adaptação [abrangia] um quinto do edifício” e que estava “a ser preparada para Unidade Habitacional a fim de poder acolher, dignamente, cidadãos estrangeiros que entrem irregularmente em território nacional por via de desembarques na costa portuguesa e que seja decretada judicialmente a sua retenção”. E recordava que havia sido “por ausência de instalações disponíveis que o SEF se viu obrigado a instalar no quartel de Tavira alguns desses cidadãos, em setembro do ano passado”.
Na altura, foi também explicado que, não obstante o investimento em Caxias, o Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) incluía ainda mais de dois milhões de euros “para dois Centros de Instalação Temporária: em Alcoutim (beneficiação e conservação das instalações da antiga escola primária de Fonte Zambujo, no valor de 900 mil euros); e em Vila Fernando (reabilitação e reconstrução das instalações devolutas do antigo Centro Educativo, no valor de 825 mil euros)”.
Agora, tudo voltou à estaca zero quanto a uma solução para o imediato. As únicas hipóteses em cima da mesa são, por isso, Alcoutim e a Vila Fernando, e não serão para já.
Já este mês, o Observador pediu acesso a toda a documentação relativa às adjudicações feitas ao Ministério da Administração Interna, que reencaminhou o pedido para o SEF. Por sua vez, este serviço respondeu a 21 de julho: “Dado que os contratos referentes às obras nas instalações, objeto do protocolo, colocam em causa ‘a capacidade operacional ou a segurança das instalações ou do pessoal das Forças Armadas, dos serviços de informações da República Portuguesa, das forças e serviços de segurança e dos órgãos de polícia criminal, bem com a segurança das representações diplomáticas e consulares (…)’, não poderão ser objeto de divulgação, uma vez que caem sob a alçada do artº 6º nºs 1 e 7 b) da LADA”.
O gabinete jurídico do SEF justifica ainda a posição com o facto de os mesmos poderem conter “informações implícitas que se prendem com aspetos securitários, imanentes aos centros de instalação temporária”.
SEF acordou pagar com carros ala prisional com vista rio, quartos de 40 m2, pátios exteriores e salas multiusos
Ao Observador, o SEF apenas enviou o contrato que celebrou com a Direção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais (válido por um ano e renovável por outros dois períodos de seis meses) para a cedência do espaço [Caxias] e no qual se estabelece uma compensação mensal de pouco mais de 27 mil euros, o que significa um valor anual de 324.240 euros. No documento, é apresentado o valor a pagar por metro quadrado e a área do edifício: “4€/m2 de área envolvente, coberta, no total de 2280 m2″ e metade do valor por metro quadrado para “a restante área, não coberta”, com 8950 m2.
As duas partes acordaram ainda que o montante seria pago, não em dinheiro, mas em carros, que seriam entregues à Direção-Geral de Reinserção e Serviços Prisionais: “A compensação é composta exclusivamente por bens móveis sujeitos a registo, designadamente a categoria e tipo de veículos prevista no Anexo ao Despacho n.º 2293-A/2019, de 6 de março.” Em causa estariam carros de alta cilindrada.
Ao que o Observador apurou, o SEF tem atualmente no seu parque uma série de carros que ficarão para o Estado, mas que até o tribunal os libertar não são de ninguém. Alguns deles, cuja propriedade o SEF requereu, são carros de gama superior, como Audis Q7 ou BMW. E podem ser esses os veículos que aquele serviço estaria a pensar usar para pagar a renda do espaço.
A este montante acresciam as despesas com água, luz, internet, assistência e outros serviços disponibilizados pelos serviços prisionais. E, acima de tudo, cabia ao SEF fazer as obras de reabilitação e garantir a conservação das instalações durante o período de utilização — sendo que, no final, não teria qualquer contrapartida pelas benfeitorias feitas.
Nas últimas semanas, uma fonte conhecedora do processo explicou ao Observador o que se pretendeu, em vão, fazer na ala sul de Caxias com o parco investimento e muita ginástica. O objetivo era, com uma intervenção num quinto do edifício de dois andares, criar um espaço — com capacidade para 30 ou 40 pessoas — com quartos de 40/50 metros quadrados, com casa de banho lá dentro, pátios exteriores, zonas verdes, salas de refeições, salas multiusos, que seriam salas de convívio e teriam enfermaria. As instalações — escolhidas pelo Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, com a aprovação do ministério de Eduardo Cabrita — têm vista para o rio e entrada independente da do complexo prisional.
“Para que houvesse uma resposta no imediato, tinha de ser um edifício em regime fechado, algo no imediato, onde não fosse preciso uma grande intervenção, que não envolvesse grandes valores, pudesse ser feito um ajuste direto”, conta uma fonte, adiantando que nenhum migrante se aperceberia de que estaria num edifício com servidão do complexo prisional: “A Cidade do Futebol está tão próxima desta ala como a ala do estabelecimento prisional.”
Os problemas com Almoçageme que obrigaram o SEF a procurar uma nova solução
A opção Caxias surgiu depois de se ter suspendido a criação do centro em Almoçageme, um edifício que precisava de obras de fundo e cujo processo foi travado com uma providência cautelar. Além disso, houve problemas com as obras.
Em dezembro do ano passado, o Ministério da Administração Interna emitiu um esclarecimento sobre os diversos problemas com o Centro de Acolhimento Temporário em Almoçageme, dizendo que a assumiu, desde 2017, “como essencial”.
“Esta prioridade resultou da necessidade de haver espaços distintos para acolhimento: o Espaço Equiparado a Centro de Instalação Temporária (EECIT) do Aeroporto Humberto Delgado deve instalar, apenas, os cidadãos estrangeiros com recusa de entrada em território nacional e que aguardam voo de regresso ao seu país de origem, bem como cidadãos abrangidos por decisões judiciais de afastamento de território nacional, deixando de alojar requerentes de asilo”, referiu a mesma fonte.
MAI diz ser alheio a atrasos na construção de espaço de instalação temporária de imigrantes
O processo de construção, porém, sofreu atrasos, tendo a tutela feito no esclarecimento uma cronologia para deixar claro que era “totalmente alheia” ao que aconteceu.
Na altura, a tutela dizia que, “não obstante os obstáculos encontrados ao longo do processo”, continuava “a ser firme intenção de o Ministério da Administração Interna prosseguir e concretizar esta importante infraestrutura, que em muito contribuirá para um melhor acolhimento dos cidadãos que procuram o nosso país em busca de melhores condições de vida”.
Ao SEF, sabe o Observador, ainda terão sido apresentadas outras hipóteses antes da ala sul de Caxias, mas tratava-se de pavilhões e outros espaços sem condições, que precisariam de um grande investimento.
Não seria a primeira vez que migrantes ficavam numa prisão. Para Provedora, Caxias sempre foi visto como provisório
A colocação de migrantes em instalações prisionais ganhou proporção quando o ministro disse no Parlamento que Caxias era uma hipótese — ainda que verdadeiramente já fosse mais do que isso –, mas não era propriamente uma novidade. Em julho de 2020, quando um grupo de marroquinos chegou à costa portuguesa, foi decidido colocar os 21 migrantes na prisão do Linhó, em Cascais.
Na altura, o SEF explicou oficialmente que o tribunal, “perante o esgotamento da capacidade de instalação dos centros de instalação temporária […], determinou que os cidadãos [fossem] conduzidos ao Estabelecimento Prisional do Linhó, onde [aguardariam] os trâmites do processo de afastamento que lhes [viessem] a ser instaurado”.
Outra das soluções provisórias encontradas no ano passado foi o quartel de Tavira, onde foram colocados 24 de um grupo de 28 marroquinos que chegaram a Portugal em setembro do ano passado.
Questionado sobre se alguma outra vez um grupo de migrantes havia sido colocado em ambiente prisional, além do que foi para o Linhó, o SEF garantiu que não, sublinhando que se tratou de uma “ordem judicial, para execução da decisão de afastamento coercivo”.
No mês passado, questionada pelo Observador sobre a solução de Caxias, a Provedora de Justiça explicava que Caxias se trataria de uma instalação provisória: “Esta solução, ainda que destinada à resolução de eventuais problemas de sobrelotação que possam surgir em resultado da progressiva reabertura de fronteiras e da diminuição da lotação dos EECIT, não deixa de ser uma solução temporária“.
E rematava em tom de alerta: “O Mecanismo Nacional de Prevenção-MNP entende que devem ser criadas condições para alojar os cidadãos de forma distinta de um ambiente prisional.“