Os combustíveis em Portugal são regularmente notícia por serem dos mais altos da Europa e por subirem muito ou descerem pouco. As culpas dividem-se entre a fiscalidade que está entre as mais pesadas da Europa — acima da média, sobretudo na gasolina — e as margens das petrolíferas, já que os preços antes de impostos (novamente na gasolina) estão entre os mais caros, como refere boletim publicado pela Entidade Reguladora dos Serviços Energéticos (ERSE) relativo ao segundo trimestre deste ano.
Gasolina portuguesa é a quinta mais cara da UE (com e sem impostos)
Desta vez — e na sequência de um ciclo especialmente longo de subidas nos preços (que refletem a retoma da procura após a segunda vaga de confinamentos causada pela Covid-19) — o Governo anunciou uma intervenção musculada nos preços dos combustíveis. A medida, ainda que temporária, já mereceu a censura das petrolíferas e suscitou alertas por parte da Autoridade da Concorrência sobre a sua eficácia. Por outro lado, ficaram por executar as recomendações feitas há três anos pelo regulador para aumentar o nível de concorrência no mercado.
Governo e reguladores coincidem no diagnóstico de que há falhas de concorrência no mercado de combustíveis, mas divergem sobre as soluções a adotar. A pressão para acelerar a transição energética para uma economia mais verde torna ainda mais difícil escolher a melhor estratégia para atacar o problema. A incerteza sobre a procura futura não atrai novos operadores ou grandes investimentos que podem não ser recuperados. E um mercado a perder músculo fecha-se mais nos operadores que já cá estão, aqueles que conseguem ganhar dinheiro porque já amortizaram os investimentos e controlam toda a cadeia.
Em 2018, num relatório de análise ao setor, a Autoridade da Concorrência (AdC) fazia quatro recomendações ao Executivo para estimular a entrada na cadeia logística dos combustíveis de novos operadores, independentes das petrolíferas com maior peso no mercado.
Entre as propostas estava a extensão ao Porto de Sines do pipeline que liga o parque logístico da CLC (Companhia Logística de Combustíveis), em Aveiras, à refinaria de Sines. O projeto abriria a porta a novos operadores via importação de produtos petrolíferos, que dessa forma os poderiam colocar no mercado nacional através da principal infraestrutura logística. Nem esta, nem as outras propostas apresentadas há três anos avançaram, admitiu na semana passada a presidente da Autoridade da Concorrência, numa audição de rotina no Parlamento.
Margarida Matos Rosa foi questionada sobre a intenção do Ministério do Ambiente, entretanto aprovada em Conselho de Ministros, de criar legislação para travar um aumento considerado excessivo das margens de comercialização no retalho de combustíveis. A presidente da AdC questionou a fixação de margens alertando para os riscos que representam para a concorrência as recomendações emitidas em 2018 e que ficaram na gaveta, tendo citado um relatório de julho da Agência Internacional de Energia sobre Portugal, que exorta o Governo a adotar, o quanto antes, essas recomendações.
“As recomendações da Autoridade da Concorrência precisam de ser implementadas de forma efetiva pelo Governo e existe preocupação de que a concorrência no mercado grossista e retalhista é ainda muito baixo”, diz a Agência Internacional de Energia.
O aumento das margens de comercialização dos combustíveis durante a primeira vaga da pandemia em 2020 não é uma novidade. Já tinha sido assinalado num estudo da Entidade Reguladora dos Serviços Energéticos, conhecido no final do ano passado. No entanto, para a ERSE, e segundo explicou fonte oficial deste regulador ao Observador, os picos registados pontualmente nas margens correspondem a “um período de funcionamento irregular dos mercados internacionais (cotações internacionais de petróleo muito baixas e até pontualmente negativas para alguns produtos) e uma quebra acentuada da venda de gasolinas e gasóleos nos postos de abastecimento”.
O documento foi enviado para o Governo com recomendações mais focadas na parte de logística — o elo da cadeia dos combustíveis onde os reguladores identificam um nível de concentração que trava a chegada de mais concorrentes operadores.
O que defendem os reguladores para aumentar a concorrência
A medida que teria mais impacto para promover a entrada de novos operadores passa por abrir a terceiros a capacidade de abastecimento e armazenagem da maior infraestrutura do país, a Companhia Logística de Combustíveis, que está ligada por pipeline à, agora, única refinaria do país, a de Sines, controlada pela Galp.
É isso mesmo que fonte oficial da Autoridade da Concorrência reafirma ao Observador. “A AdC tem vindo a alertar para a importância de assegurar que o regime de acesso de terceiros às instalações da CLC ocorra de forma efetiva e eficaz, de forma a promover as condições de concorrência e a facilitar a importação de combustíveis”. E recorda que a “própria Agência Internacional de Energia sinalizou, num relatório de julho de 2021 , a importância de se implementar as recomendações da AdC para o setor dos combustíveis, nomeadamente sobre o regime de acesso de terceiros às infraestruturas logísticas, sem demoras desnecessárias”.
O estudo promovido em 2018 indica que mais de 90% da capacidade de armazenamento é controlada pelas três maiores petrolíferas — Galp, Repsol e BP — e alerta para a existência de uma alta concentração de propriedade e exploração das áreas de serviço nas autoestradas. Foram estas recomendações feitas pelo regulador da concorrência, algumas das quais já vindas do passado:
- Promover o acesso de terceiros às infraestruturas logísticas da CLC, construindo um oleoduto (pipeline) da refinaria de Sines ao porto de Sines para permitir a operadores independentes e não acionistas da CLC trazerem produtos refinados de fora de Portugal.
- Promoção da concorrência nos postos das autoestradas. Concessionar postos por concurso público — e não através de negociação — e reduzir os prazos da concessões de 20 anos, considerado excessivo para postos já a operar.
- Maior transparência sobre preços, reforço e promoção do portal de preços.
- Avaliar impacto concorrencial de políticas públicas, medidas legislativas e regulamentos.
Apesar de reconhecer a necessidade de ultrapassar estrangulamentos no acesso de terceiros à infraestrutura dos combustíveis, o regulador da energia analisou o custo-benefício da extensão do pipeline de Sines e concluiu que o projeto só teria viabilidade económica se as importações dos produtos petrolíferos gerassem ganhos face aos preços da refinaria de Sines. Alertou para a incerteza sobre a evolução da procura de combustíveis — agravada pela pandemia — e para os riscos de um investimento que seria feito em contraciclo com o roteiro da transição energética, que teriam de ser compensados do ponto de vista dos promotores.
Ainda assim, a ERSE defendeu “a razoabilidade económica de equacionar outras possíveis medidas, entre os quais o incentivo ao acesso negociado às infraestruturas de Sines (refinaria e fábrica de polímeros da Repsol)” ou até a declaração de interesse público dos tanques da Galp e da Repsol em Sines, desde que salvaguardado o funcionamento eficiente da agora única refinaria do país (após o fecho da estrutura em Matosinhos).
Na sequência do estudo de 2018, a ERSE propunha ainda a atribuição de mais poderes de regulação para atuar nesta componente do mercado, sobretudo num contexto em que “será pouco provável prever um reforço da concorrência pela via da entrada de novos operadores. Com feito, será até mais plausível considerar uma tendência de maiores níveis de concentração em todos os segmentos da cadeia de valor”.
É por isso, é “recomendável a adoção de bases legais para um modelo regulatório ex-ante (antes do evento), mais interventivo, que replique os benefícios da concorrência e salvaguarde simultaneamente dois princípios basilares importantes num mercado em transição: a proteção dos consumidores e o equilíbrio económico-financeiro dos operadores que nele atuam”.
O que fez o Governo
Questionado sobre a execução das recomendações feitas pela ERSE e AdC, o Ministério do Ambiente e Ação Climática respondeu apenas em relação às indicações dadas pelo regulador da energia. “O estudo produzido pela ERSE produz um conjunto de considerações mais amplas sobre o funcionamento do mercado que o Governo se encontra a estudar com vista a definir a aferir a necessidade ou conveniência de introduzir alterações ao funcionamento do sistema petrolífero nacional”.
Quanto às recomendações feitas pela Concorrência e os comentários da presidente da AdC — a alertar para os riscos de fixar margens — a resposta oficial do MAAC passou por cima do tema e justifica a decisão política de abrir a porta a uma intervenção nos preços com as conclusões do estudo elaborado pela Entidade Nacional do Setor Energético (ENSE, tutelada pelo próprio ministério), segundo o qual as margens das empresas do setor subiram durante 2020, ano de pandemia.
O estudo a Análise da Evolução dos Preços de Combustíveis em Portugal “evidencia que, durante os meses críticos da pandemia, os preços médios de venda ao público desceram a um ritmo claramente inferior à descida dos preços de referência. As margens dos comercializadores atingiram, assim, em 2020, máximos do período em análise. Na gasolina, com 36,8 cêntimos por litro (cts/l), a 23 de março; e no gasóleo, com 29,3 cts/l, a 16 de março.”
Governo quer intervir nas margens da gasolina por um máximo de “um ou dois meses”
Perante estas conclusões, “o Governo procura, agora, munir-se das ferramentas necessárias para responder, entre outros, aos riscos apontados naquele estudo”. E nesse sentido, acrescenta o MAAC, “propôs à Assembleia da República a possibilidade de fixação de margens máximas ao longo da cadeia de valor dos combustíveis simples e do GPL engarrafado (este mercado já esteve sujeito no passado a preços máximos) por forma a assegurar o regular funcionamento do mercado e a proteção dos consumidores”. São medidas “necessariamente temporárias” e cuja eventual aplicação será feita “sob proposta da ERSE, ouvida a AdC”.
Sem comentar as recomendações feitas pelo regulador da Concorrência, o ministério dirigido por João Matos Fernandes refere que o “Governo entende que este quadro legislativo permitirá, com ampla participação de ambas as entidades com competências regulatórias e em matéria de concorrência para o setor energético, agir de forma expedita e corretiva”.
Margens sobem com queda de procura e baixa dos preços? É normal, concluem os reguladores
A iniciativa de criar legislação para limitar as margens de comercialização avança agora, sob a pressão pública perante o aumento dos preços finais, apesar de, no final do ano passado, o regulador da energia ter já sinalizado uma subida das margens brutas na venda de combustíveis em 2020 por efeito da pandemia. Num relatório mais profundo e fundamentado conhecido sete meses antes, a ERSE concluiu que “a forte quebra no consumo de combustíveis rodoviários teve impacto nas margens de comercialização praticada pelos operadores, com aumentos significativos na gasolina simples e no gasóleo simples de 33,8% e 20,7%, respetivamente, de 2019 para 2020”.
Mas se esta conclusão parece bater certo com a da ENSE, o regulador da energia avança uma justificação que não aponta para uma apropriação abusiva. “O aumento das margens de comercialização é, em certa medida, justificado pela necessidade de repercutir componentes fixas de custo na cadeia de valor por volumes de venda menores”. Por outro lado, a “rede de retalho dos combustíveis rodoviários” (…) tem associada uma forte componente de custos fixos, sendo de sublinhar o facto de, no decurso do estado de emergência, ter havido obrigatoriedade de manter em atividade dos postos, independentemente dos níveis de atividade”.
Mais. A forte queda do consumo levou a uma redução da taxa de rotação de produto nas infraestruturas, o que promoveu um maior desfasamento entre os momentos de aprovisionamento e a comercialização junto dos consumidores. “Sendo que o apuramento de margens de comercialização face a cotações, em base diária, eleva artificialmente as margens reais”. O aumento das margens, conclui ainda a ERSE, foi tanto maior quanto mais expressiva foi a queda de consumo, tendo sido mais visível na gasolina. Os últimos boletins semanais do regulador da energia apontam para uma grande estabilidade das margens de comercialização este ano.
Os ataques ao estudo que fundamentou a intervenção do Governo
O relatório da Entidade Nacional do Setor Energético foi já alvo de vários reparos. O mais agressivo veio do presidente executivo da Galp Energia. Esta segunda-feira Andy Brown aproveitou uma conferência com analistas para dizer que os cálculos feitos pela ENSE às margens na venda de combustíveis tinham vários erros. Segundo o gestor, 80% do aumento atribuído às margens das petrolíferas resulta de erros de cálculo, que não especificou.
Também a Autoridade da Concorrência desvaloriza os aumentos de margens identificados pela ENSE.
“No que diz respeito à evolução dos preços e das margens em 2020, importa enquadrar essas variações em Portugal com a verificada noutros países, no contexto destes momentos atípicos para o mercado e para a economia. A análise dos dados da DG-ENERGY permite constatar que, durante o 1.º trimestre de 2020, os preços médios antes de impostos da gasolina 95 e do gasóleo desceram, em geral, em linha com o preço médio ponderado da UE e de forma mais acentuada do que os preços em Espanha”, refere fonte oficial ao Observador.
A AdC remete ainda para a ERSE que, “no seu estudo, conclui para esse período que “[o]s preços de venda ao público estão fortemente acoplados à variação das cotações internacionais e as margens de comercialização respondem aos aumentos e retrações da procura”. Por isso, os aumentos de margem detetados em 2020 não foram reportados pela ERSE como novas preocupações relativas ao funcionamento do mercado.
No parlamento, a presidente da Autoridade da Concorrência realçou ainda que a análise da ENSE se centra numa amostra de dois anos e meio, de janeiro de 2019 e julho de 2021, “um período com momentos atípicos para o setor e para a economia”. A análise temporal alargada “é importante para fazer uma análise correta do comportamento dos operadores”, afirmou a responsável pela AdC.
Para a presidente da Autoridade da Concorrência, fixar preços e margens “tem riscos significativos para os quais é nosso dever alertar. Podem funcionar como ponto focal para todos os preços e caso as margens sejam fixadas a um nível mais alto do que vigoraria numa situação de concorrência. Caso a margem/preço sejam fixados a nível artificialmente baixo isso pode ter um impacto negativo nos investimentos e na manutenção dos ativos e potenciar a saída de operadores de menor dimensão e com impacto negativo na capilaridade da rede de postos e na concorrência”. Essas regras podem reduzir a flexibilidade dos operadores se não se tiver em consideração a assimetria de custos entre os operadores na fixação das margens. E no limite, podem resultar no risco de saída de operadores.
Já em 2018, o estudo elaborado pela Autoridade da Concorrência tinha verificado que as margens mais elevadas coincidem com momentos de mínimos do preço do Brent (petróleo). A “assimetria” entre o ritmo da descida das cotações do petróleo (mais rápido) e dos preços finais de combustíveis (mais lento) permite um aumento no curto prazo das margens.
O fenómeno — que na gíria do setor é descrito como preços que sobem como uma flecha e descem como uma pluma — verifica-se em vários países e já foi muito estudado. E pode ter contribuído para um aumento de margens quando o Brent baixou. Mas Margarida Matos Rosa assinalou também que, de acordo com os dados da Direção-Geral de Energia europeia, “Portugal parece ter acompanhado a evolução dos preços de outros países europeus”.
Se o oleoduto não é viável, há alternativas (mas tardam em sair do papel)
Em 2019, a ERSE promoveu o estudo do custo-benefício do oleoduto de 8 km entre o terminal do porto e oleoduto Sines-Aveiras (que começa na refinaria da Galp) proposto pela Autoridade da Concorrência em 2018. O resultado apontou para insuficiente viabilidade económica por implicar uma nova instalação de armazenagem e expedição que correspondia a quase dois terços do investimento e a mais de 90% dos custos operacionais.
A condicionar as contas estava também a esperada continuação da tendência de queda do consumo de produtos petrolíferos que foi acentuada com a pandemia. O investimento total era de 68 milhões de euros a preços de 2019 com a nova instalação a representar 44 milhões de euros enquanto o oleoduto multiproduto, os pipelines de transfega e a bombagem custariam quase 24 milhões de euros.
No parecer final — concluído já em 2020 — a ERSE refere que “os custos específicos obtidos, à exceção dos associados à mobilização de gasolina IO98, são razoavelmente competitivos, sobretudo se considerarmos que as instalações existentes no SPN (sistema petrolífero nacional) estão quase integralmente amortizadas e, no caso da CLC, as instalações de Aveiras de Cima têm rotações elevadas e custos de operação favoráveis”.
O projeto depende muito da possibilidade de se gerarem ganhos nas importações face aos preços do aparelho refinador nacional, sendo que esses ganhos devem ser sustentáveis a médio/longo prazo. As incertezas quanto à evolução do SPN sugerem a implementação de instrumentos de gestão de risco, como os mecanismos de abertura a operadores que preferirão usar as suas próprias infraestruturas.
“Perante esse desfecho, é razoável apontar para outras possíveis medidas, entre as quais o incentivo ao acesso negociado às infraestruturas existentes em Sines, designadamente na Refinaria de Sines e na fábrica da Repsol Polímeros. O acesso negociado às instalações existentes em Sines deve salvaguardar a continuidade das atividades que aí decorrem, sem a criação de constrangimentos operacionais para os seus operadores, e deve prever uma retribuição justa pelos serviços prestados.”
A ERSE sinaliza ainda outra direção. “A declaração de interesse público das instalações de armazenagem e expedição dos produtos petrolíferos existentes em Sines poderá ser uma solução alternativa”. Desde que fique salvaguardada a interoperabilidade das infraestruturas existentes, defendendo que a declaração de interesse publico ao parque de tanques “deve acautelar o funcionamento eficiente da refinaria, bem como atender à disponibilidade de reservas de segurança contratualizadas”.