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Se este fosse um Ramadão vivido em circunstâncias normais, a Mesquita de Lisboa estaria cheia na noite desta quinta-feira, para assinalar o início da época mais importante do calendário islâmico. Este ano, o Ramadão tem início oficialmente esta quinta-feira à noite e o primeiro dia de jejum para os muçulmanos será esta sexta-feira. Após a oração das 22h, congregações em todo o mundo iriam comer as três tâmaras que marcam o início do iftar, a refeição que quebra o jejum diário, já depois de o sol se pôr. E, de seguida, muitas delas passariam parte da noite em convívio, a primeira de muitas ao longo de um mês.
Este ano, contudo, não será assim. Por causa da pandemia do novo coronavírus que abala o mundo, muitas mesquitas estarão encerradas e grande parte dos muçulmanos foi convidada a fazer as orações e o iftar em casa. O mesmo acontece em Portugal, onde a Mesquita de Lisboa, na Praça de Espanha, foi encerrada pela Comunidade Islâmica, a fim de prevenir o contágio. Nem nesta quinta-feira será aberta uma exceção. A Isha’a, oração da noite, será celebrada pelo imã, o Xeque Munir, como faz todas as noites. Mas, desta vez, não terá atrás de si dezenas de pessoas prostradas em oração — estará sozinho, rodeado pelo silêncio.
Apesar disso, o imã da Mesquita Central de Lisboa diz-se “um privilegiado”. “Vivo aqui no edifício da mesquita, com a minha família e não preciso de sair de casa para ir à mesquita orar”, aponta, ao contrário dos muitos que o abordam a pedir para que abra as portas do edifício, mas que terão fazer a oração desta noite em casa. “Mas fico triste, pela oração de hoje, em especial”, afirma ao Observador, que pôde visitar o edifício em vésperas do momento mais importante do calendário para os muçulmanos.
“O Ramadão não é uma ‘festa’, no sentido de ser como a Passagem de Ano, por exemplo”, explica o Xeque Munir. “Mas as pessoas veem à mesquita, rezam, leem o Alcorão num espaço sagrado. E, depois, servimos o iftar. Famílias inteiras juntam-se e esse é um momento de convívio.” Habitualmente, a refeição estende-se até cerca das 23h30, momento em que os convivas iam para casa — os mais carenciados com caixas abastecidas de caril ou chamuças, para comerem uma última vez antes da aurora, no chamado su-hoor, por volta das 4h da manhã.
“As pessoas vão ter saudades disto. Vai ser um jejum mais prático, digamos assim”, resume o Xeque, que relembra que “viver o Ramadão num país não-islâmico é completamente diferente do que num país islâmico”. Em países como a Arábia Saudita, o Egipto, o Irão ou Líbano, os restaurantes fecham durante o mês do Ramadão e o próprio ritmo de vida tende a adaptar-se para acomodar a maioria da população, que passa o dia sem comer nem beber. Por essa razão, é habitual o quebrar do jejum ser feito em casa, em família, sem grande aparato.
Mas em países como Portugal, onde a comunidade islâmica é composta por cerca de 50 mil pessoas (numa população de 10 milhões de habitantes), a importância de partilhar esse momento torna-se redobrada. “Aqui valorizamos muito mais o convívio ‘ramadânico’, se é que existe a palavra”, resume o Xeque Munir. Este ano, contudo, não haverá nada disso. Tal como os católicos assistiram à missa de domingo de Páscoa à distância, também as orações recitadas pelos muçulmanos ao longo do dia serão transmitidas online, incluindo a da noite. Cada um poderá rezar sozinho e quebrar o jejum em casa, em família se a tiver, mas não poderá haver grandes ajuntamentos, tal como aconteceu com os católicos na Páscoa. O Ramadão acontece à mesma, ou não fosse sobretudo uma época espiritual, de purificação interior. “Mas o que perdemos é ao nível da comunidade”. E essa perda, infligida pela Covid-19, já não será recuperada.
Os que querem “exceções” e os que se contentam em rezar à porta
O jejum durante o Ramadão é obrigatório para os muçulmanos, mas excluem-se os doentes, razão pela qual os infetados com Covid-19 não serão obrigados a praticá-lo. Quanto aos restantes, a Organização Mundial da Saúde (OMS) considera que “devem poder jejuar como nos outros anos”, apesar de não existirem “estudos sobre a relação entre o jejum e o risco de infeção por Covid-19”.
“Independentemente da execução diferente nas práticas deste ano, é importante assegurar aos fiéis de que eles continuam a poder refletir, melhorar, orar, partilhar e cuidar — desde que a uma distância segura”, é o conselho da OMS para os quase 2 mil milhões de muçulmanos que existem em todo o mundo.
Nalguns países de maioria islâmica, como o Paquistão, as autoridades têm tido dificuldade em aplicar estas restrições para este Ramadão, com alguns dos próprios imãs a desafiarem as normas de saúde pública. Mas também há vários líderes religiosos, como o presidente-geral do Supremo Conselho Islâmico da Nigéria, que têm apelado ao cumprimento das regras: “Os teólogos do Islão são unânimes de que o Profeta avisou contra a propagação de doenças contagiosas e instou os muçulmanos a prevenir o contágio”, declarou Muhammad Sa’ad Abubakar. O facto de a própria Arábia Saudita ter decidido realizar as orações em Meca, o local mais sagrado para os muçulmanos, sem permitir a entrada anual de milhares de peregrinos tem ajudado alguns a compreender a dimensão dos efeitos da pandemia.
Em Portugal, a Comunidade Islâmica não teve dúvidas em decretar o encerramento da mesquita, mesmo contra a vontade de muitos dos fiéis. “Muita gente tem dificuldade em assimilar: ‘Então não posso ir à mesquita? Mas a mesquita é um local de cura!’”, conta o Xeque Munir ao Observador, relatando as várias vezes em que lhe é pedido que abra a porta da mesquita “só um bocadinho” para ir orar. “Mas eu não posso abrir exceções. É espiritualmente violento, é”, reconhece o imã, largando um suspiro.
Mas cada um vai-se adaptando como pode. “Ontem, cheguei aqui, abri a porta e estava um daqueles rapazes da Glovo, com a bicicleta e aquela mochila nas costas, a fazer a oração à porta da mesquita. Nem eu o convidei a entrar, e ele também não pediu. Mas ali estava”, recorda, com um sorriso. “Eu, por exemplo, agora todas as noites faço vapores de eucalipto e todas as manhãs tomo mel com aquilo a que chamam black seeds (sementes de cominho negras). E sinto-me melhor”, diz, inspirando fundo. “Se calhar é só psicológico, é uma ilusão, mas sinto-me melhor.”
No meio de uma situação tão atípica como a que se vive nos últimos meses em todo o mundo, são muitos os fiéis que o procuram, mais ansiosos, perguntando o que devem fazer: “Conheço o meu rebanho e portanto recomendo a um que recite uma determinada oração, a outro outra… Há a medicação. E depois há este outro apoio.”
As alterações nos funerais e a distância que a Covid-19 trará no futuro
O impacto psicológico da pandemia sente-se na comunidade, em várias facetas. Uma delas está precisamente nas mudanças obrigatórias que foram aplicadas nos funerais. Sem mortes por Covid-19 a registar na comunidade, há, contudo, alterações na realização dos funerais normais. “Hoje, quando uma pessoa morre, o corpo já não vem à mesquita. Não há lavagem do corpo, nem mortalha. Os corpos vão diretos para o cemitério e são enterrados dentro de um caixão e é dita uma curta oração. Respeitamos isso à risca”, garante o imã.
Aquilo que mais temia não veio a ser aplicado: a obrigatoriedade de cremação para qualquer corpo, independentemente da causa da morte. “O facto de não ser obrigatória a cremação já é um alívio para nós”, conta. “As pessoas iriam reagir muito mal se assim fosse, porque, de acordo com o Islão, o corpo é devolvido à terra.” Num caso de acidente, em que não seja possível resgatar o corpo, a situação não é dramática, porque “de acordo com o Profeta, essa pessoa é um mártir”, explica o Xeque Munir. Basta, por isso, a oração. Mas no caso de haver corpo, a ideia de cremação para um muçulmano é inaceitável.
As alterações nos rituais da morte mexem com a comunidade. Os familiares lamentam não poder ser eles a lavar o corpo do seu ente querido e a cobri-lo com um tecido simples e branco, como tantos outros fizeram a avós e pais — por vezes a filhos —, como forma de despedida. O corpo, deve, de seguida, ser enterrado o mais rapidamente possível, para cumprir os preceitos do Islão. A falta da lavagem e da mortalha está a ser aceite pela comunidade, mesmo que a contragosto, garante o imã. Todos sabem que, contra este vírus, não há muito a fazer.
“As pessoas no geral, e mesmo com os muçulmanos, não tem medo da morte, no sentido de que sabem que iremos todos morrer, um dia. Mas, neste caso, com esta pandemia, parece que o anjo da morte está em todo o lado”, lamenta o Xeque Munir. Há medo de tocar onde quer que seja, de não ter limpo tudo o que era suposto, de ter passado próximo demais de outra pessoa. “Quando a mesquita abrir, como é que vai ser?”, interroga-se o imã. “Vou fechar aqui as torneiras e vou obrigar as pessoas a fazerem a ablução [ritual obrigatório de lavagem antes da oração] em casa e cada um a trazer o seu próprio tapete. Só vou poder deixar entrar 20 pessoas de cada vez. E deixo quem de fora? É à vez? E acumulam-se ali todos à entrada? Isso também não pode ser…”, diz, deitando as mãos à cabeça.
À medida que o país for reabrindo, lentamente, também os muçulmanos em Portugal quererão voltar à sua mesquita. Vão querer deixar os sapatos à porta, atravessar a sala atapetada, dizer que “Deus é grande” e prostrar-se no chão — como continuam a fazer, todos os dias, cinco vezes ao dia, mas em casa. Mas vão querer fazê-lo acompanhados, em comunhão com os que jejuam consigo e a poder partilhar as primeiras tâmaras do iftar com alguém.
A mesquita garante que irá providenciar máscaras, óculos e álcool para todos os que a visitarem. As recomendações de segurança serão transmitidas e as ordens das autoridades de saúde respeitadas, assegura o Xeque Munir. “Mas, com todas estas limitações, acho que muitos vão continuar a optar por orar em casa”, confessa, quando arrisca pensar no futuro, que crê que já não voltará a ser igual ao que era. “A nossa tradição é fazer a oração ombro com ombro. Estar a uma distância de dois metros do outro não é natural.”