A conversa não vai longa quando António Martins, reformado de 73 anos quase a fazer os 74, revela que votou no Chega, sem que a pergunta tenha sido feita. Há uma satisfação na voz, quase que um orgulho em dizê-lo, alavancado por uma confirmação coletiva da sua própria convicção: nos últimos dias, entre conversas de café e encontros na rua, já sabia que muitos dos seus conhecidos iam tomar a mesma decisão.
A mensagem do Chega entrou sem dificuldades numa freguesia que é mais dormitório do que empregadora, estrategicamente localizada perto de Quarteira, Albufeira ou Faro, para onde vai trabalhar quem ali cresce. Em Boliqueime, a célebre terra-natal de Aníbal Cavaco Silva, a mesma narrativa tão repetida por André Ventura de forma simples é repetida também por quem vai conversando com o Observador: “Já estamos cansados do PSD que não fez nada, o PS não faz nada. O Chega pode mudar, a ver se chegamos a algum sítio”, sintetiza António Martins.
A frase-feita não é necessariamente artificial. Há nas suas histórias um denominador comum: uma perceção de que Boliqueime e as freguesias à volta — incluindo a sua, mesmo ao lado, Paderne — foram, de certa forma, deixadas para trás. No mexido restaurante “O Rústico”, já passada a hora de almoço, e depois de a televisão transmitir uma reportagem em direto sobre o fenómeno Chega na freguesia, António Martins, que tem um historial de votos no PSD, dá quatro exemplos de descontentamentos quotidianos, todos ligados ao investimento público. E que foram pesando no seu sentido de voto.
“O Dr. Aníbal Cavaco Silva” — corrige-se e diz devagar com o indicador esticado, quase solenemente, “Aníbal António Cavaco Silva” — “não fez nada por Boliqueime. Temos uma avenida com o nome dele — eles dizem que é avenida, mas não é, está cheia de buracos”, começa por dizer, sem pudores. Nem o facto de ter trabalhado vários anos na fábrica de rações, então detida pelo pai do ex-Presidente da República, amolece a crítica.
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Ainda em matéria de estradas, “temos a nacional 270 que vai à Via do Infante e é uma miséria, ninguém ainda fez nada, não tem passeios, já houve mortes de ciclistas”, acrescenta depois. A terceira queixa: a sua médica de família reformou-se há mais de um ano e, desde então, não foi substituída. Para conseguir uma consulta, só chegando à fila do centro de saúde de Albufeira às 5 da manhã. Tarefa difícil para quem tem problemas de saúde e mais de 70 anos.
“Fui lá uma primeira vez e disseram-me que não tinha vaga, para chegar no dia seguinte às 8h00. No dia seguinte, cheguei às 8h00 e já não tinha vaga também. Pessoas a dormirem lá às 4h00, 5h00. Tive de ir a essa hora para conseguir consulta e só consegui porque fui a uma segunda-feira e havia dois médicos”, lamenta. “É por isso que digo que ninguém fez nada por nós. O outro mandou os médicos e enfermeiros emigrar e foram, ganham mais lá fora do que aqui, não voltam, claro.” E a quarta crítica: “Aqui no Algarve é só turismo, não existe mais nada. Temos alguma atividade agrícola, mas a água é pouca”.
Não longe de António Martins, José (nome fictício), que não quer revelar o nome nem a idade, reformado, é mais convicto na desconfiança. Nenhum partido do boletim de voto lhe valeu o apoio, nem mesmo o benefício da dúvida. O PS não agradou, o PSD também não, por ainda lhe ser recente a memória do corte salarial de que foi alvo durante a intervenção da troika.
“Não vale a pena votar. Voto sempre em branco desde que me fizeram aquilo”, afirma. Além disso, não acredita que o dinheiro seja suficiente para o que prometeu Luís Montenegro aos polícias (com o alargamento do suplemento de missão à PSP e GNR), aos professores (com a recuperação integral do tempo de serviço congelado) ou aos reformados (com a subida do valor de referência do complemento solidário para idosos). “Ele tem algum banco, por acaso? Há coisas que a gente vê logo que são mentira”. O Chega também não lhe agrada — “não é governo para Portugal”.
A descrença é profunda, alimentada por infortúnios diários que lhe complicam a vida e se arrastam há anos. Mais concretamente, o facto de, após vários pedidos ao executivo camarário, ainda não ter água canalizada em casa, depois de ter pago “1.500 contos” por um furo. “Tenho de comprar bidons quase todos os dias. Trabalhei 50 anos, já descontei. Não acha que devia poder ter água em casa?” Nestas eleições, o voto não foi em branco, mas nulo: traçou um risco de cima a baixo do boletim de voto em jeito de protesto. O amigo ao lado resume: “Se o oferecer fosse dar, há muito tempo que eu era rico. O oferecer não é dar, pobre sou e pobre fico”.
Em Boliqueime, nas legislativas de 2022, o PS tinha conquistado o primeiro lugar ao PSD. Em dois anos, os socialistas caíram para o terceiro lugar ao perderem 192 votos. Já o Chega capitalizou e não foi pouco: ganhou 476 votos, chegou aos 30% e pintou a freguesia de azul no mapa das eleições, numa mancha que não está sozinha. O partido de André Ventura venceu no círculo eleitoral de Faro com 27,2%, ou seja, mais de 64 mil votos, mais do que duplicando os resultados de 2022 (12,3%). Em segundo lugar, ficou o PS, afastado por mais de quatro mil votos. Em 16 concelhos, o partido de Ventura foi o mais votado em seis, incluindo alguns dos maiores.
O Algarve acabou a noite eleitoral pintado a azul, confirmando, ainda que parcialmente, o destino traçado por André Ventura dias antes. Num comício em Santiago do Cacém, na véspera do fim da campanha eleitoral, garantiu que os territórios de Setúbal ao Algarve passariam a ser “bastiões Chega”. “O Sul será todo nosso e será o início de uma reconquista invertida” para “correr com socialistas e comunistas”, estes últimos que acusou de “traírem aqueles que trabalham”. Não foi assim na totalidade, mas o crescimento foi notório.
Na mesma ocasião, Ventura radicalizou o discurso e retomou o ataque à “subsidio-dependência”, alegando que “hoje ganha-se mais sem trabalhar do que a trabalhar”. Esta linha argumentativa tinha sido alimentada, também, no dia anterior pelo líder do Vox, Santiago Abascal, quando referiu que não há respostas por parte desse “socialismo corrompido” para os “problemas de insegurança e imigração ilegal porque são os responsáveis pela imigração ilegal”.
A declaração foi feita em Olhão, no Algarve, concelho que também deu a vitória a Ventura com 29,3% dos votos, acima dos 26,7% do PS, com quase 600 votos de diferença. O argumento colhe bem junto de vários eleitores abordados pelo Observador, de Boliqueime à Quarteira, que olham com desconfiança para o imigrante que chega a terras algarvias.
As alegadas “tensões” étnicas onde o Chega vai buscar votos
Ana e Maria, ambas com nome fictício porque preferem não ser identificadas, dividem-se: a primeira, proprietária de um snack-bar que além da amiga só atende um cidadão de nacionalidade estrangeira, ao fim da manhã de uma segunda-feira — “isto aqui é sempre esta calmaria” —, nunca pensou que o Chega crescesse tanto. Já Maria, com o filho ainda bebé ao colo, tinha poucas dúvidas: já desde o Natal que em várias conversas, em diferentes contextos, lhe têm confidenciado a intenção de votar Chega.
Porquê este crescimento? Uma começa a responder e a outra rapidamente anui: falam numa “tensão” que existe entre os elementos da comunidade cigana e a restante população de Boliqueime, um tema “agressivo”, apelida Ana. As duas também alinham no argumento da “subsídio-dependência” de que dizem sofrer o Algarve, que o Chega sabe capitalizar. Apesar de, por exemplo, em janeiro, apenas 4% das famílias que recebiam o Rendimento Social de Inserção (RSI) estarem em todo o distrito de Faro ou de, em Loulé, o subsídio de desemprego ter chegado a apenas 2,3% da população residente em 2021, de acordo com os cálculos do Observador com base nos Censos e nas estatísticas da Segurança Social.
Além disso, Ana critica o que diz ser uma “tentativa de condicionamento” do voto por Marcelo Rebelo de Sousa, depois de conhecida uma notícia pelo Expresso de que o Presidente da República “tudo fará para evitar Chega no governo”. “Os portugueses não gostam de ser mandados“, diz, lembrando a citação atribuída a Júlio César: “Há nos confins da Ibéria um povo que nem se governa nem se deixa governar”. Também acredita que ainda está bem presente na memória a autorização dada por Pedro Nuno Santos à indemnização de 500 mil euros paga à ex-gestora da TAP, que não terá, argumenta, sido abonatória para o candidato socialista.
Maria acrescenta que estão a ressurgir certas “mentalidades do século passado”, incluindo nos mais jovens, sobre o papel da mulher na sociedade. “Somos filhos dos que passaram pela Revolução. Esta nova geração não. Não tem quem lhes diga como era”, acrescenta Ana. Também falam num descontentamento generalizado do setor agrícola, visível no protesto da sexta-feira anterior, em que os agricultores na estrada nacional 125, entre Boliqueime e Almancil, protestaram pelo aumento da capacidade de armazenamento de água na região, em situação de alerta devido à seca. “Só se lembram do Algarve na altura do verão“, atira mesmo Maria.
Mais acima, no deserto que é o centro de Boliqueime a uma segunda-feira à hora de almoço, Marília, de 84 anos, vestida a negro de cima a baixo, chama a atenção, encostada à parede da Igreja de São Sebastião de Boliqueime. Não se vê ninguém, à parte de Marília e um cão que se espreguiça ao sol mais à frente, ou um e outro carro que circulam muito espaçadamente. É a “calmaria”, já dizia Ana. Ao contrário de Ana e Maria, Marília não vê tensões étnicas com a comunidade cigana, nem tem razão de queixa. Pelo contrário.
Toda a vida lidei e trabalhei com ciganos. Um dia, quando trabalhava na Segurança Social, comentei com as minhas colegas que como era de noite tinha algum receio de sair àquela hora. Dizem logo dois ciganos que ouviam a conversa: ‘Não tenha medo, vamos buscá-la todos os dias’. As minhas colegas benzeram-se com a mão esquerda. Eles são pessoas como outras quaisquer. Se os tratarem bem, eles reconhecem; se não os tratarem bem, eles também reconhecem”, conta Marília.
Marília vê em Ventura um “sorriso simpático”, mais do que a Montenegro, em quem votou, e admite que o crescimento do Chega possa ter sido resultado “daqueles que prometem uma coisa e fazem outra”. Mas sempre votou PSD, já desde os tempos de Cavaco Silva, e agora não foi exceção. Antes, muitos votavam por ser o Cavaco da terra, mas os tempos mudaram e Boliqueime tem hoje uma grande parte da população que vem de fora ali dormir.
“Toda a gente conhecia o Aníbal, o filho do Teodoro. Conhecia a família, pai, mãe, tios, era boa gente. Mas a maioria das pessoas que estão aqui já não são de cá”, afirma. Em 2022, o PSD perdeu a liderança de Boliqueime para o PS, agora para o Chega.
O hospital, a barragem, os imigrantes
Na movimentada Avenida Doutor Francisco Sá Carneiro, em Quarteira, os cartazes que resistem à campanha eleitoral são discretos. Pequenos, repetitivos, quase que passam despercebidos. Mas os resultados da noite anterior ainda estão bem presentes na conversa que junta dois amigos à porta de uma boutique de relógios. O tema é o crescimento do Chega, que não surpreendeu nenhum dos dois. Também nenhum deles quer ser identificado.
Tiago (nome fictício), com cerca de 40 anos, não se inibe de defender o Chega, cujo crescimento entende. “Esqueceram-se do Algarve. Está por construir a barragem da Foupana, que ajudaria a responder ao problema da falta de água. O hospital central do Algarve está projetado há 16 anos, o Sócrates lançou a primeira pedra há 16 anos e ainda nada. Esquecem-se de nós. E o Chega tem dito algumas verdades”, começa por dizer. O amigo acrescenta: “Mas nada daquilo é exequível”. “Pode não ser, mas tem chamado a atenção e tem-se mexido.”
Uma mulher ouve-o a defender o Chega e pede licença para se intrometer na conversa: “Peço desculpa. É de Quarteira? Não? Então leve o Chega para a sua terra. Sou nascida e criada na Quarteira com muito orgulho e bendito 25 de Abril. Os pescadores quando havia um temporal não tinham reforma. É pena que os pais não ensinem aos filhos como era antes. Com 75 anos, ontem [domingo] tive vergonha”, diz, com a mira no que entende serem os ataques do Chega à comunidade cigana.
Mas vê uma possível explicação do crescimento do partido de Ventura no aumento da imigração no Algarve e a desconfiança de quem os vê chegar. “Alguma vez Quarteira dava vitória ao Chega?”, questiona. A verdade é que deu, com 30% dos votos, à frente dos 28,3% da AD e dos 19,8% do PS.
Francisca Magalhães, 65 anos, foi um desses votos. Chegou a Portugal há 39 anos vinda do Brasil e por cá fez a vida. Gostou da “mudança” de domingo passado, embora não concorde com tudo o que o Chega diz — como o tom “muito radical” e “bruto” que André Ventura muitas vezes imprime aos discursos, incluindo à imigração. Ainda assim, concorda com uma maior regulação da entrada de migrantes, um grupo onde ela própria se incluiu, há quase 40 anos, quando casou com um português. “Portugal está a carregar todo o mundo às costas e não consegue, não pode”.
O Chega “tem outras coisas boas que podem ajudar muita gente, como os mais idosos ou a distribuição do rendimento”, duas bandeiras que costumam ser associadas aos partidos da esquerda mas que têm sido capitalizadas por André Ventura. E que convenceram Francisca Magalhães e mais 3.312 eleitores em Quarteira. “Vamos esperar que consiga. Tem, pelo menos, de tentar”.