Durante meses, o procurador que liderava a investigação à SAD do Benfica e ao seu assessor jurídico, Paulo Gonçalves, por corrupção deu ordens para que se mantivesse o caso no maior sigilo e num núcleo muito restrito de pessoas: não podia haver troca de informações por e-mail, porque suspeitava que havia intrusos no sistema informático do tribunal; não se podia ser inserida informação na plataforma dos tribunais, o Citius, e tudo o que fosse ao Tribunal de Instrução Criminal tinha de ir num envelope selado ou, já depois de haver detidos, numa pen.
Quando chegou a 5 de março de 2018, o dia que antecedeu as buscas à SAD do Benfica e aos tribunais de Guimarães e de Fafe — onde trabalhavam os funcionários judiciais alegadamente corrompidos com bilhetes e lugares cativos na Luz em troca de informações sobre processos –, o procurador Valter Alves nem quis receber por escrito a informação do número de polícias que iriam participar na operação e como se iriam organizar. Nada foi enviado por e-mail e a equipa que com ele foi bater à porta da casa de Paulo Gonçalves lá estava no dia seguinte.
Os inspetores tinham acabado de dar ordem de detenção ao ex-assessor jurídico do Benfica, pouco antes das 9h00, quando a mulher dele, na sala com um filho menor, decidiu ligar a televisão. E qual não foi o espanto de todos quando, na CMTV, aparece a informação de que a detenção já tinha acontecido, deixando Gonçalves completamente transtornado.
Estas foram algumas das informações que o procurador deu à procuradora Andrea Marques, sua colega, dias depois, quando foi chamado a prestar declarações num processo por violação de segredo de justiça que seria dirigido pela magistrada. É que além do Correio da Manhã, ainda as buscas da operação decorriam e a revista Sábado também já estava a noticiar o caso. A Polícia Judiciária só enviaria um comunicado sobre o caso e-Toupeira às redações já depois das 10h00, suspeitando-se, por isso de uma fuga de informação.
Procurador do e-Toupeira deu lista, mas MP apontou à PJ
Ouvido no processo aberto para investigar essa fuga, consultado pelo Observador, Valter Alves recordou que nesse dia um dos inspetores que estava com ele ligou ao seu coordenador da UNCC, a unidade que investiga os crimes de corrupção, Pedro Fonseca, a dar conta de que a detenção já estava feita. E forneceu também, a pedido da magistrada, uma lista com todos os nomes dos funcionários, magistrados e polícias que tinham tido acesso ao processo — o tal núcleo duro. Assim, sob suspeita podiam estar quatro nomes do Ministério Público (além dos nomes dele próprio e de Andrea Marques, que também participou em diligências, também os de dois outros procuradores), cinco nomes do Tribunal de Instrução Criminal de Lisboa, sete nomes de elementos da Polícia Judiciária e ainda a informação de que alguns outros elementos da Unidade de Telecomunicações e Informática (UTI) da PJ e do Instituto de Gestão Financeira e Equipamentos da Justiça (IGFEJ) podiam ter tido uma noção global do caso.
A procuradora Andrea Marques, a 26 de abril, deu conhecimento da sua participação no processo à sua superior hierárquica, a coordenadora Auristela Gomes Pereira, que não encontrou qualquer pressuposto para não a manter nos autos, perante a possibilidade de um conflito de interesses. Fernanda Pêgo, diretora do DIAP, subscreveu. Estava assim eliminado um nome da lista, logo à partida.
PJ mudou nome de comunicado à última hora e MP achou suspeito…
Apesar da lista de nomes, a procuradora estava convencida de que a fuga vinha da Polícia Judiciária. É que na notícia avançada pela Sábado, já na edição em papel a 8 de março, havia uma informação que constava no relatório da PJ, e que até já era pública, mas que não serviu de fundamento às buscas — o que levava a magistrada acreditar que a fuga vinha dali. Por outro lado, a própria PJ tinha decidido à última hora mudar o nome da operação. Os inspetores tinham escolhido o nome “Aquila”, o grego para Águia, mas o comunicado enviado às 10h37 mudara o nome para e-Toupeira. E isso parece ter sido relevante para o Ministério Público, embora no processo não se perceba exatamente porquê.
O Ministério Público mandou então a PSP vigiar ao longo de três meses os dois jornalistas que tinham avançado com a notícia da detenção, Carlos Rodrigues Lima e Henrique Machado, para ver com quem se relacionavam, mas não terão encontrado qualquer relação com a PJ. Carlos Rodrigues Lima foi até visto à porta do DCIAP e no Campus da Justiça, mas aparentemente não foi visto com inspetores da PJ, segundo o relatório entregue no processo (e não disponibilizado para consulta ao Observador).
… mas só fez perguntas à PJ sete meses depois
Só no final de outubro de 2018, sete meses depois de aberto o inquérito, a procuradora decidiu enviar um ofício confidencial à Direção Nacional da Polícia Judiciária a pedir informações sobre como funcionam os comunicados emitidos por aquela polícia. Queria perceber a que horas tinha sido carregado para a plataforma, bem como todos os registos e documentos existentes desde a elaboração do comunicado até ao momento da sua divulgação na página, com identificação dos intervenientes. O Ministério Público queria também saber se a Direção da PJ, à data da operação liderada por Almeida Rodrigues, tinha recebido nos dias anteriores alguma peça do processo do e-Toupeira, como o relatório policial do serviço relacionado com a operação, que pudesse ter saltado o circuito.
Como duas semanas depois, a 18 de outubro, a PJ ainda não tinha respondido, Andrea Marques voltou a insistir, com a referência de que o tema era “Muito Urgente”. O atual diretor, Luís Neves, acabaria por responder a 6 de março do ano seguinte, quase três meses depois.
Na resposta, Neves clarificava que a direção da Unidade Nacional de Combate à Corrupção remeteu, à data, à Direção Nacional uma proposta de comunicado sobre o caso e-Toupeira. O comunicado foi aprovado às 10h14, e devolvido à Unidade, que acabaria por fazê-lo chegar ao gabinete de imprensa para ser enviado a todos os órgãos de comunicação social. O primeiro e-mail saiu às 10h29, mas não havia qualquer documentação do processo sobre esta troca.
Dois dias depois a resposta de Luís Neves, Andrea Marques mandava inquirir três inspetores da Polícia Judiciária e dois oficias de justiça. Um deles, há dez anos na UNCC, explicou mesmo que era a brigada que participava na operação quem propunha o nome da operação, e o chefe e o coordenador decidiam aceitar ou não. Mas uma fonte contactada pelo Observador explicou que esta mudança de nome de Aquila para e-Toupeira ocorreu, sim, apenas para evitar problemas com o Benfica.
Os oficiais de justiça ouvidos corroboraram a segurança a que foi sujeito todo o processo e garantiram nunca terem contactado com jornalistas, a não ser alguma vez que os repórteres possam ter ido a tribunal. E também eles terão sido automaticamente afastados da lista de suspeitos.
MP decidiu apreender e-mails à PJ. Começou por um, até querer todos os do topo da hierarquia
Mas a inquirição de Manuel Santos, coordenador da UNCC, em maio, teve um desfecho diferente. Depois de o coordenador da PJ garantir que já não tinha na sua posse os e-mails trocados cerca de ano e meio antes no âmbito do e-Toupeira, a magistrada decidiu consegui-los por outra via. E, um par de dias depois, num despacho enviado ao IGFEJ, sustentava estar perante um crime muito grave que podia levar à fuga de suspeitos e à perda de provas. Pelo que pedia que fosse copiada a caixa de e-mail deste coordenador — entre 1 de janeiro e 30 de junho de 2018, incluindo backups — para o processo.
A resposta do IGFEJ foi rápida: tal só seria possível com os e-mails que Manuel Santos tivesse recebido, e apenas no último ano. Porque só faziam backup de um ano.
Andrea Marques pediu então à juiza de instrução que lhe permitisse obter uma cópia cega das caixas de correio eletrónico de Manuel Santos. Mas, por esta altura, já não bastariam apenas os e-mails daquele coordenador: queria mais — e incluía os elementos da Direção. Pedia uma cópia da caixa de correio de Almeida Rodrigues (à data diretor nacional), a da Direção da PJ (onde estava também o magistrado Pedro do Carmo, que só podia ser investigado pelo Tribunal da Relação), a da direção da UNCC, do secretariado da direção e do gabinete de imprensa — também pelo período de seis meses. No dia seguinte, a 4 de junho de 2019, a juíza autorizou a apreensão.
Buscas na PJ, I parte: os e-mails
A magistrada não perdeu tempo. Acompanhada de uma perita informática nomeada (que não integra a polícia), acompanhou todas as buscas. A certa altura, perguntou ao diretor Luís Neves se não teria um arquivo com faturas detalhadas emitidas em nome da PJ relativamente aos telefones de serviço dos funcionários. Neves prometeu procurar uma resposta, mas a sua insatisfação pelas buscas que estavam a decorrer era clara. E transmitiu-a à juíza de instrução dias depois.
Nessa carta, Luís Neves alertava para o facto de o Ministério Público não ter feito cópia cega entre as datas autorizadas, mas uma cópia forense que incluiu a totalidade dos ficheiros existentes em cada caixa de correio visada, através da cópia integral das respetivas extensões com a designação “pst.”. O que significou uma manancial de informação de anos, muita dela em segredo de Estado, segredo da NATO ou mesmo correspondência confidencial, nas mãos de uma procuradora que investigava um caso de violação do segredo de justiça. Luís Neves disse mesmo considerar esta apreensão desproporcional, sublinhando que até o período considerado era excessivo. É que, do seu ponto de vista, o crime em causa (a violação do segredo de justiça na divulgação da detenção de Paulo Gonçalves) só podia ser consumado até as 8h51 do dia 6, altura em que a operação foi divulgada. Pedia, por isso, que tudo o que não fosse necessário no processo fosse destruído.
O seu apelo não teve grande eco. A procuradora Andrea Marques manteve que era necessário apreender tudo, para não deixar escapar a informação que lhe podia indicar quem seria o autor da alegada fuga de informação.
A 5 de julho de 2019, porém, Luís Neves voltaria a comunicar por escrito com a procuradora, informando-a de que, de facto, tinha a faturação detalhada dos telemóveis dos seus inspetores, mas não iria fornecê-la. Na verdade considerava estar preso entre dois deveres: o da reserva da vida privada dos seus funcionários, do seu ponto de vista inviolável num crime destes, e o dever de cooperação com a investigação. Por isso, considerava que só com uma autorização de um juiz podia dar tal informação ao processo.
Buscas à PJ, II parte: a faturação detalhada
A procuradora Andrea Marques, no entanto, contrariou o diretor. Num despacho em que ordena a entrega da faturação diz mesmo que se os telefones são da PJ, então os seus funcionários não podem usá-los na sua vida privada, logo não haverá qualquer violação da sua vida íntima. E não hesita em ordenar novas buscas à PJ só para apreender a faturação. Sem a autorização prévia de um juiz.
Foi nas faturas do coordenador Pedro Fonseca que, depois de analisar os dados, a magistrada encontrou uma mensagem escrita enviada ao jornalista Carlos Rodrigues Lima feita no dia das buscas, pelas 8h40. A notícia da Sábado sairia 14 minutos depois. Desconhece-se, porém, o que estava escrito nessa mensagem, no processo está apenas o seu registo. Isso mesmo notou o jornalista, quando foi interrogado como arguido: sem o conteúdo, a existência da mensagem nada diz sobre as suas razões.
Esse coordenador da PJ, cujo nome foi apontado logo na primeira inquirição feita no processo, acaba por ser o primeiro arguido. Foi assim declarado a 5 de dezembro por violação de segredo por funcionário, num interrogatório que, além de Andrea Marques, contou também com a presença da diretora do DIAP, Fernanda Pêgo e que viria a ditar mais uma vista do Ministério Público às instalações da PJ.
É que, no final da sessão, as procuradoras decidiram apreender-lhe o telemóvel que usava à data. Mas o coordenador informou as magistradas de que o telefone estava a ser reparado numa Unidade da PJ que tem essa função. Perante essa resposta, a magistrada deu outro passo: se o telemóvel tinha avariado no dia anterior e ele tinha sido notificado antes de que iria ser constituído arguido, então algo não batia certo. Por isso arrancou novamente para as instalações da PJ.
Buscas à PJ, III parte: o telefone do coordenador arguido
De novo na PJ, a procuradora Andrea Marques foi recebida por João Melo, o diretor-nacional adjunto da PJ que também é magistrado e que fez questão de lhe dizer que partilhava da opinião de Luís Neves quanto à reserva dos telefones dos seus funcionários. A magistrada registou, mas avançou. Queria ir à Unidade de Telecomunicações e Informática apreender o telefone que lá tinha sido deixado por Pedro Fonseca no dia anterior. Só que tanto o responsável como a funcionária daquela Unidade garantiram que o telefone de Fonseca não estava lá. O coordenador tinha, de facto, pedido um telefone de substituição, mesmo que não fosse novo, mas só iria devolver o dele quando passasse todas as fotografias que ali tinha gravadas.
Pedro Fonseca foi então obrigado a entregar o telefone que estava, afinal, em seu poder — e que continua nas mãos do Ministério Público, que tem usado todas as ferramentas possíveis para tentar extrair todas as mensagens de WhatsApp, mesmo as que tenham sido apagadas.
Em fevereiro de 2020, o Ministério Público decidiu também passar as contas bancárias do coordenador a pente fino. No processo não consta qualquer relato de suspeitas de corrupção. Consta sim uma queixa anónima, ainda de abril de 2018, que Fernanda Pêgo decidiu juntar a este caso. Uma queixa que aponta o dedo à Sábado como sendo uma plataforma online que vende informações em segredo de justiça por 2,39 euros (o preço do formato digital da revista). Quando abriu este outro inquérito, Fernanda Pêgo falava em várias queixas. Na verdade, é só uma, de conteúdo igual, feita no site do DIAP e na PJ, dias depois de ter sido aberto o inquérito aos dois jornalistas da Cofina, que detém a Sábado e o Correio da Manhã.
Procuradora fez perguntas sobre mais jornalistas, mas só se focou nos dois que mandou vigiar
O levantamento do sigilo bancário foi depois ordenado também em relação às contas do jornalista Carlos Rodrigues Lima, o que poderia indicar que a procuradora suspeitava da troca de contrapartidas, sem nunca as referir. Mas tanto o antigo coordenador da PJ como os dois jornalistas arguidos estão indiciados apenas pelo crime de violação de segredo de justiça.