Índice
Índice
Desta vez, não foi por debaixo de um lava loiça em Oliveira de Azeméis que o Ministério Público (MP) e a Polícia Judiciária (PJ) descobriram um pequeno tesouro. A fórmula de sucesso passou por um simples email, a descoberta de uma conta bancária no banco Lloyds de Londres, a cooperação judiciária internacional e a colaboração da leiloeira Christie’s e de Maria Rendeiro — foi isso que permitiu ao MP e à PJ repatriarem com sucesso entre setembro e dezembro quatro obras de arte avaliadas em cerca de 378 mil euros.
Estas peças, de artistas contemporâneos de renome como Frank Stella e Robert Longo, são uma pequena parte das peças que o MP e a PJ suspeitam que Rendeiro desviou do espólio — constituído por 123 peças — que foi arrestado em 2010 no âmbito das investigações dos inquéritos à gestão do Banco Privado Português (BPP). Das 23 obras desviadas quando Rendeiro fugiu em setembro de 2021, avaliadas em cerca de dois milhões de euros, apenas foram recuperadas até ao momento nove peças.
MP recupera em Londres obras de arte desviadas por João Rendeiro
Desde o início das investigações ao caso BPP, em 2008, o MP conseguiu arrestar um total de ativos que valerão pelo menos 70 milhões de euros a três dos quatro ex-administradores do banco que foram condenados a penas de prisão efetivas e a entidades como a Fundação Elipse, tal como a procuradora Inês Bonina já tinha adiantado ao programa Justiça Cega da Rádio Observador. Cerca de 20 milhões de euros correspondem a contas bancárias apreendidas a João Rendeiro, Paulo Guichard e Fezas Vital, enquanto que a coleção Elipse foi avaliada em cerca de 35 milhões de euros.
E qual será o destino dos fundos e do produto da venda dos bens arrestados? O Observador explica-lhe tudo em pormenor.
Como um email permitiu descobrir uma conta bancária alimentada pela venda de arte
A recuperação de nove obras de arte que tinham sido alvo de descaminho quando estavam à guarda da viúva de João Rendeiro, Maria de Jesus, traduz o sucesso dos esforços do Ministério Público e da Polícia Judiciária desde 2021. João Rendeiro terá desviado um total de 23 peças, sendo que uma parte terá levado consigo durante a fuga empreendida no final de setembro de 2021 para evitar a prisão.
Apenas quatro dessas peças, da autoria dos artistas consagrados Helena Almeida, Pedro Calapez e Julião Sarmento, se encontravam em território nacional. As restantes seis foram repatriadas do Reino Unido, da Bélgica e dos Estados Unidos, sendo certo que algumas delas já tinham sido vendidas por ordem de João Rendeiro e os compradores aceitaram devolver as peças quando foram informados que as vendas tinham sido ilícitas por as mesmas terem sido arrestadas por ordem judicial de um tribunal português.
Todas as peças encontram-se arrestadas às ordens do chamado inquérito do descaminho, aberto após a fuga de Rendeiro.
No caso dos quadros “Rzochow”, de Frank Stella, e de Robert Longo (sem título), e dos bancos de mármore de Jenny Holzer (intitulados “Selections from Truisms: A Lot of Professional” e “Nothing Will Stop You”) — peças que foram recuperados no Reino Unido e nos Estados Unidos —, o sucesso da investigação começou com um simples email de João Rendeiro sobre o aluguer de um apartamento em Londres.
João Rendeiro e a sua mulher tinham arrendado um apartamento para conseguir abrir uma conta bancária no Lloyds Bank, um dos maiores bancos britânicos. Através da cooperação judiciária internacional com o Reino Unido, o MP e a PJ tiveram acesso aos extratos da conta e detetaram os depósitos regulares da leiloeira Christie’s do produto da venda de obras de arte. A partir daí, MP e PJ beneficiaram também da colaboração da leiloeira — que contratou o advogado Adriano Squilacce (que defende Ricardo Salgado no caso BES) para colaborar com a procuradora Inês Bonina.
O facto de a Christie’s se arriscar a uma investigação no Reino Unido por suspeitas de branqueamento de capital por vender obras de arte que estavam arrestadas por ordem judicial em Portugal também serviu de motivação para a leiloeira contactar os clientes a quem tinha vendido as peças e convencê-los a devolver as mesmas. Idêntica colaboração aconteceu com uma galeria de arte belga que já tinha vendido o quadro “Piaski” de Frank Stella.
A investigação apurou também que houve dinheiro resultante da venda de obras de arte da coleção de Rendeiro que foi depositado em contas na Suíça. Aliás, Suíça e Reino Unido são dois dos países para os quais foram expedidos nos últimos anos pedidos de cooperação judiciária internacional, aos quais se juntam ainda neste lote Estados Unidos, França, Espanha, África do Sul e Bélgica.
Todavia, há 12 obras de arte a que o MP e a PJ ainda não conseguiram encontrar o rasto. Foram, para já, declaradas como perdidas. Mas a investigação ainda não está encerrada.
[Já saiu o segundo episódio de “A Caça ao Estripador de Lisboa”, o novo Podcast Plus do Observador que conta a conturbada investigação ao assassino em série que há 30 anos aterrorizou o país e desafiou a PJ. Uma história de pistas falsas, escutas surpreendentes e armadilhas perigosas. Pode ouvir aqui, no Observador, e também na Apple Podcasts, no Spotify e no Youtube. E pode ouvir aqui o primeiro episódio.]
Maria Rendeiro não se opôs à devolução das peças mas não se deve livrar de acusação
Importante para o repatriamento das peças foi também a não oposição de Maria Rendeiro, a viúva de João Rendeiro, que já repudiou a herança do marido para não ser responsabilizada pelas dívidas de 35,2 milhões de euros, como o Expresso noticiou em junho de 2023.
Maria Rendeiro era a titular formal da conta no Lloyds Bank e, após a morte de João Rendeiro, era o contacto formal com a Christie’s. Ao Observador, o advogado Ricardo Sá Fernandes já tinha afirmado em março deste ano que a sua cliente tinha entregue aos autos do inquérito do descaminho um saldo bancário que se encontrava depositado num banco inglês. “Maria Rendeiro foi surpreendida em abril de 2022 com uma carta do Lloyds Bank a devolver, por cheque, o saldo existente nesse banco em seu nome [no valor de cerca de 300 mil euros]. Imediatamente, Maria Rendeiro entregou esse cheque à ordem do processo (não tendo, todavia, esse requerimento conhecido qualquer despacho)”, complementou a advogada Inês Montalvo, que representa Maria Rendeiro no inquérito criminal.
A titularidade da conta do Lloyds Bank por parte da viúva de João Rendeiro — que, ao que o Observador apurou, terá tido um saldo bancário apreendido no valor total de cerca de 700 mil libras (cerca de 844 mil euros ao câmbio atual) já tinha sido confirmada pela PJ em buscas domiciliárias realizadas à casa de Celeste Matos, irmã de Maria Rendeiro que a acompanhou de perto após a fuga do ex-líder do BPP e que tinha casa em Oliveira de Azeméis.
Foi na casa de Celeste Matos que a PJ encontrou dois cartões de débito de bancos internacionais: do inglês Barclays e de um banco norte-americano chamado TD Bank, que opera na costa leste dos Estados Unidos e que é conhecido por patrocinar os Boston Celtics, a equipa da NBA.
Os cartões de débito tinham como titular “Maria de Jesus Matos” — que é o nome de solteira de Maria de Jesus da Silva de Matos Rendeiro — e comprovavam que Maria Rendeiro tinha contas bancárias em Londres e nos Estados Unidos. Mais tarde, a investigação da PJ veio a descobrir que uma das contas em Londres era alimentada com fundos que provinham de um aluguer de um imóvel na capital do Reino Unido.
Celeste Matos explicou aos inspetores da PJ que utilizava esses cartões a pedido da irmã para fazer levantamentos diários de 300 euros por cartão. Tais fundos, segundo a própria Celeste, destinavam-se a pagar aos advogados e o montante total de levantamentos ascendia a 40 mil euros.
Além de várias caixas vazias de joias e de relógios — que Maria Rendeiro teria vendido, segundo a irmã —, a PJ encontrou ainda 14 caixas de relógios de luxo, sendo que alguns eram de ouro, debaixo do lava-loiça de Celeste. Entre as marcas estavam algumas das mais caras da relojoaria de luxo, como Rolex, Cartier, Franck Muller, Bulgari e Ulysse Nardin. Os relógios valerão mais de 100 mil euros.
Após essa descoberta, Celeste Matos explicou aos inspetores da PJ que esses objetos estavam ali a pedido da irmã.
Maria Rendeiro foi detida em novembro de 2021, tendo sido constituída arguida no inquérito do descaminho — inquérito que está a caminhar para o seu fim e que também tem como arguidos Florêncio de Almeida (ex-presidente da ANTRAL — Associação Nacional dos Transportadores Rodoviários em Automóveis Ligeiros) e o seu filho Florêncio Plácido de Almeida (ex-motorista de João Rendeiro).
Maria Rendeiro e os Florêncio de Almeida são suspeitos de terem colaborado com João Rendeiro na dissipação de património arrestado às ordens dos vários processos do caso BPP ou que tenha sido adquirido com fundos ilícitos desviados do BPP por parte de Rendeiro.
A juíza Tânia Loureiro já tinha considerado em 2021 que Maria Rendeiro não se encontrava “de boa-fé, adotando condutas reveladoras de que pretende que se adquira a convicção de que o ‘crime compensa’ ao obstaculizar a localização de bens aptos à satisfação das indemnizações devidas ao Estado e ao lesado”.
Ricardo Sá Fernandes contestou essa ideia da magistrada e diz que a a viúva do ex-líder do BPP tem colaborado com a Justiça, sendo certo que apenas terá como único rendimento a sua pensão de 705 euros.
Depósitos. João Rendeiro ficou sem 10 milhões e Fezas Vital sem 6,4 milhões de euros
Desde o início das investigações ao caso BPP, lideradas pela procuradora Inês Bonina, que o MP e a PJ têm apostado na chamada recuperação de ativos. Entre contas bancárias, numerário, ações e outros produtos financeiros, imóveis, carros, jóias, relógios, obras de arte e a coleção Elipse, a Justiça portuguesa conseguiu arrestar pelo menos 70 milhões de euros. Escreve-se “pelo menos” porque o valor dos imóveis, carros, jóias e relógios é indeterminado (conta o valor da venda quando tais ativos forem alienados) e poderá aumentar o valor total de 70 milhões de euros.
Dos bens arrestados, destaca-se a coleção Elipse — que se encontra em exposição no Centro Cultural de Belém e é constituída por peças de artistas plásticos nacionais como Pedro Cabrita Reis, Julião Sarmento, José Pedro Croft e Pedro Calapez, como também de internacionais consagrados como Ignasi Aballí, Franz Ackermann, Rosângela Rennó, Raymond Pettibon, John Baldessari, Ilia Kabakov, Mike Kelley ou Steve McQueen, entre outros.
A coleção foi avaliada em cerca de 35 milhões de euros, tendo sido adquirida pelo Estado em 2022. O valor da avaliação serviu para abater o valor dos créditos que o Estado tem a receber do BPP.
Do património financeiro dos arguidos João Rendeiro, Salvador Fezas Vital e Paulo Guichard destacam-se as 40 contas bancárias, cujos saldos foram arrestados às ordens de vários inquéritos criminais do caso BPP, nomeadamente do chamado caso dos prémios de 30 milhões de euros que os ex-administradores decidiram atribuir a si próprios.
João Rendeiro, com as suas 18 contas bancárias em Portugal e na Suíça, ficou sem um total de 10,6 milhões de euros, aos quais se somam cerca de 68 mil euros em numerário que lhe foram apreendidos em buscas judicias. Rendeiro tinha boa parte do seu património colocado na Suíça, nomeadamente em nome de uma sociedade offshore chamada Octavia Foundation — que tinha igualmente Maria Rendeiro como beneficiária. Os cerca de 7,7 milhões de euros depositados no banco HSBC em nome da Octavia foram arrestados pela Confederação Helvética a pedido das autoridades portuguesas.
Já Salvador Fezas Vital, que se encontra a cumprir na prisão da Carregueira uma pena de nove anos e seis meses por se ter apropriado de 7,7 milhões de euros do BPP (à qual se acrescenta uma pena de dois anos e seis meses por burla a um cliente do banco), perdeu cerca de 6,4 milhões de euros em depósitos bancários e cerca de 81 mil euros em numerário que lhe foi apreendido em buscas judiciais.
Das 14 contas bancárias abertas por Fezas Vital e por familiares destacam-se as contas no Edmond Rotschild, banco suíço com sucursal em Portugal, onde o ex-administrador do BPP depositou cerca de quatro milhões de euros em nome próprio. Fezas Vital tinha ainda uma sociedade offshore chamada Kelford com conta no Banque Privée Espírito Santo (que declarou insolvência em 2014, na sequência da falência do Grupo Espírito Santo) mas o saldo apreendido foi de apenas 2.513,46 euros.
Já Paulo Guichard foi alvo de arrestos em sete contas bancárias, ficando sem 3,8 milhões de euros e 7.000 euros em numerário. A Suíça foi também o país escolhido por Guichard para esconder cerca de 3,5 milhões de euros: cerca de dois milhões depositados na UBS em nome de uma offshore designada de Star e cerca de 1,5 milhões de euros depositados em nome próprio no banco Pictet.
Inês Bonina. “O caso BPP foi um momento de aprendizagem para o Ministério Público”
Guichard entregou-se na prisão do Vale do Sousa (Paços de Ferreira) em abril de 2022 para cumprir pena de quatro anos e oito meses por ter falsificado a contabilidade do BPP, tendo sido condenado mais tarde a outras duas penas: uma de nove anos e seis meses por se ter apropriado indevidamente de cerca de 7,7 milhões de euros e outra de três anos por burla qualificada ao embaixador Júlio Mascarenhas, cliente do BPP.
Resta Fernando Lima, também ex-administrador do BPP, que se encontra a cumprir pena de prisão de seis anos em Setúbal desde Setembro de 2023 pelos crimes de abuso de confiança qualificada, fraude fiscal qualificada e branqueamento de capitais no caso dos prémios. Lima apropriou-se indevidamente de 2,1 milhões de euros do BPP.
Os lesados poderão ser indemnizados com os ativos arrestados?
A pergunta tem uma resposta condicional para todos os clientes do BPP: sim, desde que o Estado e a massa falida do BPP sejam ressarcidos na sua totalidade e também desde que tenham sido reconhecidos pelo Tribunal do Comércio como credores no processo de insolvência em curso.
Explicando melhor — até porque a resposta simplificada mistura processos de jurisdições diferentes que nada têm a ver uns com os outros.
A esmagadora maioria dos ativos que foram arrestados pelo MP estão no processo do caso dos prémios — que transitou em julgado em novembro de 2024. Ora, apenas duas entidades deduziram pedido de indemnização cível nesses autos contra os ex-administradores: o Estado e a massa falida do BPP.
O Estado porque reclamou a João Rendeiro (a dívida ao fisco não se extinguiu com a sua morte), Fezas Vital, Paulo Guichard e Fernando Lima o pagamento dos impostos em falta pelos prémios indevidamente atribuídos. Só no caso de João Rendeiro, que se apropriou de 13,6 milhões de euros, estão em causa um pouco mais de cinco milhões de euros por pagar. No total, o fisco reclama cerca de 12 milhões de euros aos quatro gestores.
E a massa falida do BPP porque reclama o pagamento do total de prémios indevidamente atribuídos aos quatro ex-administradores: um total de cerca de 30 milhões de euros.
Logo, só após o pagamento destas quantias ao Estado e à massa falida do BPP — cerca de 42 milhões de euros — é que poderão ser feitos pagamentos a outros lesados.
Contudo, e antes dos clientes do BPP, surgirão o Banco de Portugal e a Comissão de Mercado de Valores Mobiliários, que condenaram João Rendeiro e os seus colegas de administração ao pagamento pesadas multas.
E só depois deverão surgir os clientes do BPP. Um deles deverá ser o embaixador Júlio Mascarenhas, que perdeu poupanças no valor total de 250 mil euros e que conseguiu convencer a Justiça a condenar João Rendeiro, Paulo Guichard e Salvaador Fezas Vital a penas de prisão efetiva. Mascarenhas tem um processo de execução em curso para tentar recuperar o valor total das poupanças que perdeu junto do processo criminal dos prémios.
Há ainda outra hipótese de os clientes do BPP que foram lesados recuperarem uma parte ou a totalidade do seu capital perdido: no processo de insolvência que corre termos no Tribunal do Comércio de Lisboa. Para tal, contudo, é fundamental que se tenham apresentado nesse processo no momento em que o BPP foi declarado insolvente (em 2010) e que tenham sido reconhecidos de forma definitiva pelo tribunal como credores do banco.
Seja como for, o caminho não é fácil. Em primeiro lugar, porque o Estado é sempre credor privilegiado. É verdade que, segundo o último relatório da Comissão Liquidatária do BPP, o Estado já recuperou cerca de 411 milhões de euros dos cerca de 450 milhões de euros que foram emprestados no final de 2008 ao BPP e que foram alvo de garantia do Estado. Mas ainda tem a haver cerca 160 milhões de euros.
É importante notar que os antigos clientes do BPP já receberam cerca de 185 milhões de euros que foram pagos pelo Fundo de Garantia de Depósitos e pelo Sistema de Indemnização aos Investidores, sendo certo que a Comissão Liquidatária do BPP não prevê quando poderão ser feitos novos pagamentos face à situação negativa de cerca de mil milhões negativos da massa falida — um valor que resulta de um passivo de cerca de 1,2 mil milhões de euros e de um ativo de apenas 224 milhões de euros.