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A temperatura do debate público sobre alterações climáticas tem vindo a aumentar a um ritmo muito mais rápido do que a temperatura média da Terra. O assunto do aquecimento global entrou na agenda mediática há cerca de 30 anos, com a assinatura do Protocolo de Kyoto, mas levou tempo a conquistar lugar na mente do cidadão comum. O tema receberia forte impulso em 2006, com a estreia do documentário Uma verdade inconveniente, de Al Gore (vice-presidente de Bill Clinton e candidato derrotado nas eleições presidenciais de 2000), e com as subsequentes tournées mundiais – mais de um milhar de palestras (principescamente remuneradas) – que Gore empreendeu para o divulgar. Porém, a atenção dos governantes e das massas foi desviada, em 2007, pelo estoiro da “bolha” das hipotecas subprime nos EUA, cujos estilhaços espoletaram a crise das dívidas soberanas na Europa, que se prolongou até meados da década seguinte. Com a assinatura, em 2015, do Acordo de Paris (uma admissão implícita de que o Protocolo de Kyoto não fora levado a sério pelos seus signatários), as alterações climáticas entraram no léxico corrente dos cidadãos do mundo desenvolvido, sem, contudo, conseguir inflamar o seu empenho e mobilização. Por mais pertinentes que sejam os seus alertas e por mais sólidos que sejam os seu argumentos, cientistas e tecnocratas têm dificuldade em cativar a atenção das massas e seria precisa a entrada em cena, em 2018, de Greta Thunberg para que as alterações climáticas fossem tomadas a sério fora do círculo restrito das organizações ambientalistas.

Greta Thunberg tinha apenas 15 anos quando iniciou a sua “greve pelo clima” (Skolstrejk för Klimatet), em frente ao edifício do Parlamento sueco, e não trazia consigo dados novos sobre o degelo dos glaciares, mas a sua aura de santinha visionária inflamou as mentes e gerou uma reviravolta, se não nas atitudes e nas medidas efectivas, pelo menos no discurso público sobre alterações climáticas. A maioria dos cidadãos do mundo desenvolvido passou a colocar estas no topo das suas preocupações (quando respondem a inquéritos ou são entrevistados na rua, não tanto nas escolhas quotidianas e estilo de vida); os governantes e líderes políticos (com excepção do segmento mais à direita no espectro) ganharam o hábito de polvilhar generosamente os seus discursos com as palavras “descarbonização”, “sustentabilidade” e “biodiversidade” (ainda que nem todos compreendam estes conceitos e as suas implicações); as empresas, independentemente de distribuírem gás, fabricarem refrigerantes ou providenciarem cruzeiros marítimos, entraram em competição para transmitirem a impressão de serem mais “verdes” do que as suas rivais e reivindicaram como seus principais desígnios, não a venda de produtos e serviços, mas a salvação dos pandas-gigantes, dos ursos polares, da Amazónia e da Grande Barreira de Coral Australiana; as estrelas do showbiz começaram a fazer prelecções às massas ignaras sobre como deveriam levar uma vida mais frugal e sustentável, ainda que elas mesmas levem a vida de dissipação (ver Urinar no duche não adia o fim do mundo); e os media passaram a acompanhar as Conferências das Nações Unidas Sobre Alterações Climáticas (COP) e as suas deliberações com a febricitação que usualmente estava reservada à eleição de um novo papa ou aos sorteios do calendário de jogos da Champion’s League.

O presidente Joe Biden discursa na COP-27, em Sharm el-Sheikh: Hoje são raros os países que não se fazem representar ao mais alto nível nas COPs, sinalizando o seu (suposto) empenho na resolução da crise climática

As COPs mais recentes acabaram, após discussões intensas que se prolongaram pela madrugada dentro, por produzir o proverbial “fumo branco”, tão ansiado pelos jornalistas (que têm dificuldade em redigir notícias que não possam ser formuladas em termos de “fumo branco”, “cartões amarelos”, “sinais vermelhos” e “linhas vermelhas”), mas os “ambientalistas” menos distraídos começaram a perceber que os esperançosos acordos arrancados a ferros de cada COP eram demasiado ambíguos e não produziam resultados práticos (ver As alterações climáticas e a conferência das Nações Unidas: O Grande Circo Carbónico). E foi então que os activistas das organizações ambientalistas e os jovens que tinham aderido às greves pelo clima (ou Fridays for Future, como também se tornaram conhecidas) começaram a sentir-se ludibriados – até porque as (eventuais) consequências da inacção em termos de políticas ambientais recairão mais sobre eles do que sobre a geração que hoje ocupa lugares de poder e decisão – e decidiram endurecer a sua luta: em vez de desfilarem em manifestações folclóricas e inócuas, passaram a bloquear estradas, ruas, pontes e entradas de sedes de empresas do sector energético, a vandalizar obras de arte em museus, a ocupar escolas secundárias e universidades e a exigir a demissão de responsáveis governamentais na área do ambiente e da indústria.

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Este activismo mais agressivo ganhou particular visibilidade em Outubro-Novembro de 2022, tirando partido de uma consciencialização acrescida dos cidadãos europeus em relação às alterações climática, após um Verão excepcionalmente quente e seco (ver Temperaturas recorde, fenómenos extremos, seca global: Seremos capazes de mudar o nosso comportamento?) e coincidindo com a realização, no Egipto, da COP-27 (ver Alterações climáticas: A COP-27 ergue a tenda em Sharm El Sheikh). Muitas destas acções de agitprop poderão ser contraproducentes: por um lado, levam a um cerrar de fileiras dos que perfilham mundividências mais conservadoras, que negam a realidade das alterações climáticas ou, embora reconheçam que estas são reais e com causa antropogénica, entendem que não pode parar-se a marcha do progresso só por causa do bem-estar dos ursos polares e que, se a Terra já sobreviveu a incontáveis mudanças no clima ao longo da sua história, também sobreviverá a esta. Por outro lado, alguns dos que crêem que é imperativo reduzir as emissões de gases com efeito de estufa (e, como os activistas, desesperam com o arrastar de pés dos governos e os malabarismos das grandes empresas) entendem que os métodos dos paladinos da “justiça climática” são ilegítimos ou estúpidos e contribuem para desacreditar a causa.

Janeiro de 2023: Activistas da “plataforma” Parar o Gás atribuem a designação de “local de crime!” à sede da REN (iniciais que o website da plataforma faz corresponder, por equívoco, a Redes Eléctricas Nacionais, em vez de Redes Energéticas Nacionais)

Nem a zizânia entre “ambientalistas” e “desenvolvimentistas” (um diálogo de surdos), nem o discurso optimista dos governantes (“o nosso país está na dianteira da luta pela neutralidade carbónica”), nem a propaganda eco-friendly das empresas (“estamos a trabalhar para um futuro em que os céus são azuis e o ar é puro”) ajudam a que compreendamos os desafios que enfrentamos e, muito menos, a que definamos e sopesemos as políticas que permitiriam superá-los. Esta tagarelice improdutiva e cada vez mais estridente que hoje inunda o espaço público decorre de a esmagadora maioria dos seus protagonistas pouco saber sobre o funcionamento dos sistemas biofísicos da Terra e da maquinaria e dos processos que asseguram a nossa alimentação, abrigo, conforto, segurança, deslocação, comunicação e restantes conveniências da civilização contemporânea.

Foi para explanar estes conceitos básicos, indispensáveis à formação de qualquer opinião que vá para lá do “acho que…” ou “li no Facebook que…” e ao estabelecimento de qualquer debate que não se resuma a uma troca de soundbites, que Vaclav Smil publicou, em 2022, How the world really works: A scientist’s guide to our past, present and future, que foi editado em Portugal pela Crítica com o título Como o mundo realmente funciona e com tradução de Luís Santos. Dada a amplitude dos assuntos tratados por Smil e atendendo a que alguns deles já foram abordados em artigos sobre ambiente publicados no Observador, o presente artigo far-lhes-á referência amiúde, evitando repetir enquadramentos e argumentações.

A capa da edição portuguesa do mais recente livro de Vaclav Smil, publicado pela Crítica

“Fim ao fóssil!”

A actividade contestatária dos jovens activistas climáticos atingiu um pico de intensidade durante a realização da COP-27, entre 6 e 20 de Novembro de 2022, e teve focos um pouco por todo o mundo desenvolvido – incluindo Portugal. As acções de agitprop dos jovens portugueses foram relatadas na maioria das reportagens com indisfarçada simpatia e foram alvo de remoques ácidos ou de aplauso incondicional pelos opinadores, de acordo com a sua orientação mais à direita ou mais à esquerda. Esta divisão ideológica dos opinadores não pode ser separada do facto de vários protestos terem unido explicitamente a luta pela “justiça climática” à luta contra o capitalismo, que, na mundividência destes activistas, é o grande culpado do aquecimento global e, em geral, da degradação do planeta; este vínculo esteve patente em palavras de ordem como “fim ao capitalismo fóssil” e “o lucro é mais poluente do que toda esta gente”.

Os opinadores que se colocaram – por vezes apaixonada e embevecidamente – do lado dos “jovens zangados” parecem não perceber que a revolta destes se dirige precisamente contra a sua geração, que acusam de, de forma egoísta, estar a saquear os recursos naturais e a destruir o ambiente, em prol do seu presente bem-estar, deixando às gerações seguintes uma pesada factura por pagar (ver capítulo “Greta, os seus devotos e os seus adversários” em Como a pequena Greta salvou o planeta). E a verdade é que a maioria destes opinadores nunca antes fizera uso da sua tribuna nos media, nem a sua influência ou o seu poder enquanto professores universitários ou políticos, para alertar a humanidade para as ameaças ambientais, só despertando para a causa ambiental a reboque das manifestação mais recentes. Alguns opinadores vão ao ponto de incitar os jovens ao protesto, proclamando que este é não só um direito como um dever, e Helena Lopes, no Público de 29.11.22, explicava que “como não tenho idade para me ir colar a obras de arte, escrevo artigos”, de onde se depreende que aprova o ataque a obras de arte como forma legítima e apropriada de protesto pela inacção dos governos perante as alterações climáticas. O que se seguirá nesta brilhante linha de raciocínio? Interromper concertos de jazz para protestar contra os níveis excessivos de poluição atmosférica na Avenida da Liberdade? Patear peças de teatro para denunciar a baixa percentagem de reciclagem de plásticos? Apupar bailarinos para pressionar o Governo a interditar a exploração de lítio em Portugal? Soprar vuvuzelas nas bibliotecas públicas até que se abandone de vez a ideia de construir um aeroporto no Montijo?

Liceu Camões, Novembro de 2022

A identificação de um número apreciável opinion-maker com o mais desmiolado e inconsequente activismo climático pode ter várias explicações: nalguns casos, é para sinalizar o alinhamento com as mais modernas tendências da sociedade e a pertença a uma elite “cool” e “progressista”, por oposição aos botas-de-elástico que negam as alterações climáticas. Estando o opinador para lá da meia-idade, é possível que se trate de nostalgia pelas experiências pessoais de rebelião juvenil quando do Flower Power, do Maio de 1968 ou do PREC. Noutros casos ainda, poderemos estar perante uma retorcida manifestação de má consciência, ou seja, o opinador admite, lá no fundo, ter vindo a beneficiar da pilhagem irresponsável da Terra e procura uma forma de expiar essa conduta reprovável, que deixará à geração que agora se manifesta um planeta delapidado.

Ignorância na Era do Google e do smartphone

Os opinadores com posição crítica sobre os protestos apontaram a inconsistência, incongruência e superficialidade do activismo ambiental. A denúncia é justa: por sincera e justificada que possa ser a sua eco-ansiedade, a maioria destes activistas pouco ou nada sabe dos assuntos sobre os quais perora, as suas exigências, formuladas sempre em tom impositivo, não têm sustentação e a sua oposição ao “capitalismo fóssil” parece esgotar-se na repetição veemente e mecânica de palavras de ordem vazias – quando António Costa Silva, Ministro da Economia e do Mar, convidou os activistas que assediavam o seu Ministério, para o que julgava, ingenuamente, ser uma troca de ideias, descobriu, surpreso e magoado, que do outro lado da mesa não havia ideias nem disponibilidade para o diálogo, apenas a reiteração pueril da exigência da sua demissão.

Acção “Parar o gás, fora Costa e Silva”, no Ministério da Economia e do Mar, Lisboa, 15 de Novembro de 2022

A denúncia, pelos opinadores “hostis”, da ignorância demonstrada pelos jovens activistas foi contestada pelos opinadores “favoráveis”, embora os próprios jovens admitam, implicitamente, essa ignorância, ao fazerem constar da sua lista de reivindicações “aulas sobre a situação ecológica e ambiental” e Helena Lopes, no acima referido artigo no Público (“Acerca da ‘ignorância’ dos jovens ocupas ou dos professores”), defende que “os responsáveis nos ministérios da Educação e do Ensino Superior” têm a obrigação de “facultarem aos jovens os conhecimentos que lhes são pedidos”.

Estranha-se que estes jovens, que nos são sistematicamente apresentados como “a geração mais bem preparada de sempre” e que, na qualidade de “nativos digitais”, têm fama de se mover com agilidade nos meandros da World Wide Web e de nela encontrarem toda a informação de que necessitam, tenham de recorrer ao Estado para serem elucidados sobre o efeito de estufa e o ciclo do carbono. Como compreender que estes jovens atormentados pela “eco-ansiedade” não tenham curiosidade em perceber o que está na sua origem? Talvez a eco-ansiedade juvenil resulte sobretudo de o seu motivo de terror ter contornos indistintos e estar envolto em sombras, como as criaturas monstruosas dos livros de H.P. Lovecraft. Se os eco-ansiosos perdessem algum tempo a estudar o assunto em vez de repetirem atoardas e ideias vagas e deformadas provenientes de fontes duvidosas, talvez conseguissem pôr de lado os ansiolíticos e pugnar pelo ambiente de forma mais eficaz e menos melodramática.

Outro aspecto paradoxal da luta dos jovens portugueses pela “justiça climática” – e em particular das acções de Novembro passado – é o facto de a maioria dos activistas serem alunos da área das Humanidades e de as manifestações e ocupações com maior visibilidade terem decorrido na Escola Artística António Arroio e na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. O caminho mais natural para jovens genuinamente preocupados com o aquecimento global, a degradação do ambiente, a extinção de espécies e o esgotamento dos recursos naturais seria inscreverem-se em cursos como ecologia, engenharia de ambiente, tratamento de resíduos, conservação ambiental, energias renováveis, agronomia, produção animal, silvicultura, gestão agroflorestal, gestão pesqueira, ordenamento do território, etc., que os habilitariam a desempenhar papel efectivo na luta para salvar o planeta. Porém, a eco-ansiedade dos jovens não os impele para este tipo de cursos, como atesta o facto de, nos anos mais recentes, o curso de Engenharia de Energias Renováveis, no Instituto Politécnico de Bragança, ter ficado completamente entregue às moscas (ver capítulo “A derradeira esperança da humanidade: Os jovens” de Alterações climáticas, ideologia e sectarismo: O que está afinal em jogo em Sharm El Sheikh?). Em contrapartida, ao ler as reportagens sobre activistas ambientais nos media nacionais fica-se com a impressão que o curso mais popular entre eles é Relações Internacionais.

Outro paradoxo do activismo climático juvenil prende-se com a participação cívica: o escalão etário dos 18 aos 30 anos, quando lhe é dada a oportunidade de escolher quem elabora e executa as políticas nacionais – onde se incluem, inevitavelmente, as políticas de ambiente e energia – opta maciçamente pela abstenção (fenómeno que, diga-se de passagem, não é exclusivamente português). Ou seja, em contraste com a minoria fortemente politizada – que é a que se manifesta e, supõe-se, vota – a maioria dos jovens portugueses não se interessa por política, apesar de ser esta que determina o futuro dos glaciares, dos ursos-polares e do seu bem-estar. A ideia, recorrente no discurso dos media e dos políticos, dos “jovens portugueses” como uma entidade homogénea, dotada de fortíssima consciência ambiental e imbuída de sentimentos altruísticos, não tem fundamento e não há forma mais eficaz de a demolir do que considerar este simples dado, apurado pelo estudo “Health behaviour in school-aged children”, promovido pela Organização Mundial de Saúde: apenas 1% dos jovens portugueses vai para a escola de bicicleta.

Lisboa, 17 de Outubro de 2022: Bloqueio da sede da Galp por activistas climáticos, “para interromper a sua actividade criminosa que nos conduz à crise climática e do custo de vida”. O que aconteceria no mundo real se todas as empresas que distribuem combustíveis fósseis fizessem a vontade dos activistas e cessassem de imediato “a sua actividade criminosa”?

“Na altura não se falava tanto desses temas”

Em boa parte, a ideia de que os jovens representam a derradeira esperança do planeta e de que estão a fazer opções concretas que contribuem para evitar o apocalipse climático é uma fábula romântica e amável criada pelos media. Um caso exemplar é o artigo “Os empregos verdes são uma opção consciente dos jovens – e vieram para ficar”, surgido no Público de 02.11.2021, que, num tom entusiástico, e até militante, relata casos de jovens que “tiveram oportunidade de escolher um emprego verde e não hesitaram. Todos querem fazer a diferença naquele que é considerado um sector fundamental para o combate às alterações climáticas e para o desenvolvimento sustentável”.

Saltemos sobre o jovem biólogo que criou uma empresa de produção de grilos para consumo humano – esperando que a Humanidade nunca tenha de descer a este patamar – e detenhamo-nos na jovem arquitecta, então com 29 anos, que decidiu dedicar-se à “construção e reabilitação urbanas e a consultoria ambiental”. O cenário de idealismo e fervor ecológico urdido pelo artigo esvazia-se num ápice quando a jovem admite que o que a levou a abraçar este ramo de actividade foi, muito prosaicamente, “a precariedade laboral e a vontade de ter melhor qualidade de vida”; por outras palavras, o que a impeliu a fazer a pós-graduação em Gestão de Sustentabilidade, não foi o nobre propósito de salvar o planeta mas o prosaico facto de não ter conseguido, durante anos a fio, arranjar emprego. E porque não se voltou antes para a construção sustentável, pergunta a jornalista? Porque, responde a jovem arquitecta, “na altura não se falava tanto desses temas”.

Façamos uma pequena viagem no tempo: em 1987, 15 anos antes do nascimento desta jovem arquitecta, as Nações Unidas publicaram Our common future (O nosso futuro comum), um documento de 300 páginas (também conhecido como Relatório Brundtland) que teve ampla repercussão e que examinava as questões da degradação ambiental, da capacidade de carga dos ecossistemas, das alterações climáticas, da perda de biodiversidade, do desenvolvimento sustentável, das assimetrias de desenvolvimento e distribuição de rendimentos, e sugeria medidas para mitigar estes problemas. O Protocolo de Kyoto foi assinado em 1992, no ano em que esta jovem nasceu, e a primeira COP teve lugar quando ela tinha três anos; quando estava no penúltimo ano da licenciatura, em 2015, foi assinado, durante a COP-21, o intensamente debatido e publicitado Acordo de Paris.

No que respeita especificamente à intersecção entre arquitectura, ambiente e sustentabilidade, tudo começou muito antes desta jovem nascer, já que a figura que é usualmente apontada como pioneira da arquitectura solar, George Fred Keck, projectou os seus primeiros edifícios na década de 1930. É certo que, na era do petróleo a pataco a arquitectura solar não atraiu muitos seguidores, mas o “primeiro choque petrolífero”, em 1973, colocou-a na linha da frente da disciplina.

Sloan House (1939), em Glenview Illinois, uma das primeiras casas solares projectadas pela Keck & Keck Architects

Se é verdade que os anos mais recentes viram surgir novos materiais e tecnologias de construção sustentável, outros há que já têm décadas de provas dadas. É o caso da popular parede Trombe, que foi desenvolvida pelo engenheiro Félix Trombe, pioneiro da energia solar em França, em parceria com o arquitecto Jacques Michel, na década de 1950 (mas remonta, a bem ver, a 1881, ano em que o conceito foi patenteado por Edward S. Morse). Já não falando de soluções “sustentáveis” de orientação, isolamento, ensombramento e ventilação que são tão antigas quanto as cidades e a arquitectura.

Escola dotada de parede Trombe, em Salta, Argentina

Eco-guerrilheiros ou eco-tontos?

Se aos jovens activistas não falta determinação para lutar por aquilo em que acreditam, já aquilo em que acreditam parece não passar de uma infusão de clichés e de slogans destituídos de sentido ou razoabilidade.

Uma das palavras de ordem entoadas em Novembro passado era “para a nossa espécie não ficar extinta, é preciso neutralidade carbónica até 2030” – rima, mas é tola, pois a ameaça (real) representada pelas alterações climáticas não é a extinção do Homo sapiens, que continuará a ser, durante os anos mais próximos, sejam eles mais frescos ou mais quentes, a espécie dominante na Terra. O problema da Terra é precisamente o contrário: o número excessivo de Homo sapiens (e o número excessivo dos seus animais domésticos e de companhia) e a quantidade crescente de recursos necessária à satisfação das suas necessidades, confortos, caprichos e aspirações. Se a temperatura média do planeta aumentar dois ou três graus centígrados, o Homo sapiens continuará a medrar, ainda que os seus elementos mais pobres e que habitam em planícies costeiras e em leitos de cheia passem a ter uma vida muito mais sobressaltada e árdua ou se vejam mesmo obrigados a migrar para outras paragens. Quem corre risco de extinção são as numerosas espécies de animais e plantas que já hoje se encontram em situação periclitante, devido a séculos de acção humana, e cujos requisitos em termos de parâmetros biofísicos são menos elásticos do que os do versátil Homo sapiens, como é o caso dos ursos polares (Ursus maritimus), do bacalhau-do-atlântico (Gadus morhua), da tartaruga-de-couro (Dermochelys coriacea), do coral-chifre-de-veado (Acropora cervicornis) ou da rã-pintada-da-colômbia (Rana luteiventris). Poderá faltar bacalhau na mesa da Consoada de 2050, mas certamente (salvo colisão de um asteróide com a Terra) não faltarão humanos sentados à sua volta.

À medida que a temperatura média da água do Atlântico Noroeste aumenta, o habitat do bacalhau-do-atlântico – espécie já seriamente debilitada pela sobrepesca – vai minguando

Outro slogan de Novembro passado era “fim ao capitalismo fóssil”, como se o comunismo e a economia planificada fossem consumidores mais moderados e racionais de combustíveis fósseis e outros recursos e mais zelosos na preservação do ambiente do que as economias de mercado (ver capítulo “Sob a bandeira verde do comunismo” em Como a pequena Greta salvou o planeta).

Se descontarmos os micro-estados insulares, que são anomalias estatísticas, os países com maiores pegadas de carbono per capita não são “democracias burguesas” nem verdadeiras economias de mercado. Este pouco honroso top 10 é dominado pelas petromonarquias do Golfo Pérsico: 1.º Qatar, com 35.64 toneladas de CO2/ano; 2.º Bahrain, com 21.60 toneladas; 3.º Kuwait, com 20.91 toneladas, 4.º Emiratos Árabes Unidos, com 20.70, 5.º Brunei (uma petromonarquia islâmica do Sudeste Asiático), com 17.95 toneladas; 6.º Arábia Saudita, com 16.96 toneladas; 7.º Oman, com 16.90 toneladas; 8.º Austrália (o mais perdulário dos países de modelo ocidental), com 15.22 toneladas; 9.º Canadá (que tem como atenuante o facto de a maior parte do seu território ter um clima gélido), com 14.43 toneladas; 10.º Cazaquistão (uma petrotirania da Ásia Central), com 14.22 toneladas (dados de 2020).

Se, amanhã, o mago Slavoj Žižek, num passe de mágica, fizesse desaparecer Wall Street e abolisse o capitalismo e todos os países passassem a ter economias planificadas de moldes socialistas, o consumo de combustíveis fósseis e as emissões de CO2 não teriam alteração significativa (a não ser que a sociedade entrasse em colapso e regredisse para o patamar de desenvolvimento de Cuba ou da Coreia do Norte).

Doha (na imagem), no Qatar, disputa com Dubai, nos Emiratos Árabes Unidos, o título de Capital Mundial da Insustentabilidade

Outro slogan revelador do profundo desconhecimento que os activistas têm das engrenagens do mundo é “o lucro é mais poluente do que toda esta gente”. Aparentemente, estes eco-activistas, provenientes maioritariamente das classes média e média-alta, ignoram que é precisamente para suprir os apetites e o trem de vida de “toda esta gente” que o Grande Capital labora e polui dia e noite, sem descanso, e que o “lucro” apenas é possível quando os produtos e serviços que os execrados capitalistas colocam no mercado respondem às necessidades, desejos e critérios dos consumidores.

Esta manifesta repulsa pelo “lucro” e pelo “capitalismo” está em plena sintonia com a reacção de uma das porta-vozes dos activistas climáticos quando foi conhecida a decisão judicial de condenar a uma multa de 295 euros, por crime de desobediência, quatro activistas envolvidos na ocupação da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa: “A História vai absolver-nos” (Público, 16.12.22).

Manifestação de apoio aos activistas detidos na sequência da ocupação da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa

Não é uma frase original e espontânea: ficou indissoluvelmente ligada a Fidel Castro, que a pronunciou no discurso de defesa proferido quando do seu julgamento, em Outubro de 1953, por ter liderado o assalto ao Quartel Moncada, em Santiago de Cuba. O que é mais surpreendente nesta frase não é a filiação política que atesta (que era perfeitamente previsível), é a sua desmedida pretensão: estes activistas vêem-se a si mesmos como protagonistas da História, imaginam-se a ser lembrados e julgados (favoravelmente!) pelas gerações vindouras como heróis e mártires da Grande Luta pela Justiça Climática. Terem colado as mãos ao chão para tentar evitar a sua remoção pelas autoridades do local que ocupavam equipara-se, nas suas mentes, a dar o peito às balas na revolta contra uma ditadura sanguinária.

Fidel Castro, ainda sem a sua “icónica” barba, detido após a insurreição fracassada de Julho de 1953

A bolha em que vivem os decisores

A maioria dos adultos maduros que expressam publicamente a sua solidariedade com as Jeannes D’Arc climáticas e os Che Guevaras vegan não dão mostras de possuir mais conhecimento sobre questões ambientais do que os jovens. Não é de estranhar, uma vez que, como os activistas, a maioria dos seus apoiantes no espaço público fizeram a sua formação e desenvolvem a sua actividade na área das Humanidades. Não foi por acaso que, em Portugal, a mais relevante tomada de posição colectiva face aos protestos juvenis, a “Declaração de apoio aos jovens activistas climáticos”, surgida no Público de 13.11.2022, reuniu figuras do meio artístico e cultural e professores e investigadores universitários da área das Humanidades e quase não atraiu signatários de outras latitudes (salvo alguns “desempregados” e “reformados” tresmalhados). A declaração exige “ao Governo Português que ouça com urgência os apelos destas jovens pessoas estudantes e que em diálogo com a comunidade científica ponha em marcha um plano de acção mais ambicioso e consequente contra o fracasso climático” – percebe-se a intenção, mas é inquietante que a nata da cultura, das artes e das Humanidades escreva (ou subscreva) expressões como “jovens pessoas estudantes” (poderão alguns estudantes ser não-pessoas?) e “fracasso climático”.

Do lado dos governantes, políticos e decisores também escasseia o conhecimento sobre o funcionamento dos sistemas naturais e da maquinaria que sustenta a presente civilização, como foi destacado em Estará na História a origem da desigualdade entre países ricos e países pobres? (capítulos “Quem nos guia por este caminho sinuoso?” e “Ecologistas e economistas”). Em Portugal, a Assembleia da República tem sido dominada por advogados/juristas, professores (dominantemente na área de Humanidades), gestores e economistas. A percentagem de engenheiros (sobretudo engenheiros civis), que começou por rondar os 20%, tem vindo a sofrer continuada erosão e, com excepção dos médicos, é raro encontrar alguém com formação em ciências da natureza (biologia, ecologia). As ciências da Terra (geologia, oceanografia, climatologia, hidrologia) são praticamente ausentes e o mesmo se passa com especialidades ligadas à produção primária (agronomia, silvicultura, engenharia de minas) e à indústria (engenharia química, engenharia de materiais, engenharia de processos, gestão industrial). Um estudo divulgado em 2022, que analisou a composição da Assembleia da República entre 1976 e 2019, concluiu que não só a formação em Direito é a mais comum no parlamento, como tem vindo a estender o seu domínio a todos os grupos parlamentares, quer se sentem no extremo direito ou no extremo esquerdo do hemiciclo. Naturalmente, os governos espelham esta distribuição em termos de área de formação.

Nas fileiras dos partidos há quem esteja ainda mais alheado do mundo real: são os que cedo na vida assumiram cargos na estrutura partidária ou se tornaram funcionários do partido; quem seguiu este caminho costuma conhecer a fundo os órgãos distritais e concelhios do partido e ser eficaz a arregimentar votos, canalizar influências e gerir descontentamentos e ambições, mas será melhor que não lhe perguntem nada sobre o ciclo do azoto ou sobre fertilidade dos solos.

“A vida no campo”, por Felix Schlesinger (1833-1910): A estrumação no período Romântico

O mais insólito é que nem sequer os dirigentes dos partidos que se assumem como “ecologistas” têm formação na área: no PAN, Inês Sousa Real é jurista e o seu antecessor, André Silva, é engenheiro civil com mestrado em Reabilitação e Conservação de Interiores; Heloísa Apolónia, que representou no Parlamento o Partido Ecologista Os Verdes durante quase um quarto de século, é jurista; Rui Tavares, do Livre, é historiador e a sua antecessora no Parlamento, Joacine Katar Moreira, é licenciada em História e doutorada em Estudos Sociais. Claro que estas formações e ocupações não impedem, à partida, que se adquiram, por conta própria, conhecimentos noutras áreas, mas muitas das suas intervenções dos líderes dos partidos “ecologistas” espelham a visão romântica, sentimentalona e “disneyficada” do mundo natural típica do segmento médio-alto da classe urbana e que, nalguns casos, se confunde com o “animalismo”.

O progresso tornou mais expedita e higiénica a estrumação dos terrenos agrícolas; também tornou os campos ainda mais distantes dos gabinetes onde se governa o país

Deve realçar-se que a formação em ciências da vida e da Terra ou na produção agro-florestal e industrial está longe de conferir automaticamente uma visão global dos problemas ambientais e civilizacionais. A expansão acelerada da galáxia do conhecimento e os constrangimentos inerentes à carreira académica conduziram à fragmentação e à hiper-especialização, levando a que haja zoólogos que consagram toda a carreira ao estudo de uma espécie de copépode que parasita o salmão e bioquímicos que devotam a vida à elucidação dos compostos responsáveis pelo odor desagradável emanado pelos pés, não sabendo mais sobre o recuo dos glaciares ou o branqueamento dos corais do que um licenciado em filologia românica. O afunilamento do conhecimento é uma forma de ignorância em expansão acelerada.

Não há adultos na sala?

Não é de espantar que boa parte da classe política viva divorciada do mundo natural de que, agora, se reivindica defensora e que as suas propostas e intervenções públicas sobre assuntos do foro ambiental oscilem entre o lugar-comum e o disparate. É, por exemplo, corrente ouvir governantes e políticos proclamar que urge defender a Amazónia por esta ser “o pulmão do mundo”. Vaclav Smil cita como exemplo (pg. 206) um tweet de Emmanuel Macron, de 22 de Agosto de 2019, que afirma que “A nossa casa está a arder. Literalmente. A floresta tropical da Amazónia – os pulmões que produzem 20% do oxigénio do nosso planeta – está em chamas”. Não faltam razões válidas para preservar a Amazónia e as outras florestas tropicais que ainda nos restam – nomeadamente a sua biodiversidade ímpar, o seu papel no ciclo da água e no clima global e o facto de serem importantíssimos “sumidouros” (“sinks”) de carbono – mas a oxigenação da atmosfera não é uma delas, pela simples razão que uma floresta tropical madura consome tanto oxigénio como o que produz (ver Para que serve afinal a Amazónia?). Para mais, como Smil explica no subcapítulo “O oxigénio não está em risco” (pg. 205-08), a quantidade de oxigénio na atmosfera terrestre está longe de inspirar preocupação.

O uacari (Cacajao calvus) é uma das muitas espécies da floresta amazónica que tem vindo a declinar em resultado da desflorestação

Emmanuel Macron tem reputação de ser um homem inteligentíssimo, culto e experiente, a sua formação passou pela Universidade de Paris Nanterre (onde estudou filosofia), por Sciences Po, i.e., o Instituto de Estudos Políticos de Paris (onde concluiu um mestrado em políticas públicas), e pela École Nationale d’Administration (que o habilitou a exercer funções de inspector de finanças) e trabalhou como banqueiro de investimento na Rothschild & Co. É um curriculum impressionante, mas nem ele nem os curricula certamente bem fornidos dos numerosos assessores que rodeiam o cargo de Presidente da República Francesa impediram Macron de fazer uma proclamação que mostra que não faz ideia do que está em jogo na presente crise ambiental.

Smil tem a caridade de não mencionar as intervenções daquela que é a figura internacional que mais (e mais retumbantes) declarações faz sobre assuntos de ambiente: o Secretário-Geral das Nações Unidas. António Guterres tem também reputação de possuir uma inteligência fulgurante, que lhe valeu o Prémio Nacional dos Liceus, em 1965, e permitiu concluir o curso de engenharia electrotécnica no Instituto Superior Técnico com média de 19 valores. A este brilhante percurso académico seguiu-se uma carreira preenchida na política nacional (deputado a partir de 1976, primeiro-ministro em 1995-2002) e na ONU, primeiro como Alto Comissário para os Refugiados (2005-2012) e depois como Secretário-Geral (desde 2017). E, todavia, os seus discursos sobre ambiente pouco diferem, em teor, fundamentação e tom, da histeria apocalíptica dos jovens activistas (ver capítulo “Carnificina climática” em Alterações climáticas, ideologia e sectarismo: O que está afinal em jogo em Sharm El Sheikh?). Não há cliché melodramático nem metáfora inepta nem antropomorfização pueril da natureza que lhe repugne: em Novembro passado, na COP-27, começou por surgir, no dia de abertura da conferência, numa mensagem vídeo em que avisou que “o planeta está a enviar um sinal de sofrimento” e alguns dias depois deslocou-se a Sharm el-Sheikh para fazer uma intervenção polvilhada por frases tremendistas como “estamos numa auto-estrada para o Inferno climático e com o pé ainda a pressionar o acelerador” e “a Humanidade tem uma escolha: cooperar ou perecer. Um Pacto de Solidariedade Climática ou um Pacto de Suicídio Colectivo”: O discurso foi acolhido, não com a chacota que mereceria, mas com um coro de aprovação de opinadores nacionais e internacionais, dando a entender que estes conhecem mal o cancioneiro dos AC/DC e as questões ambientais.

[Live at COP-27: António Guterres reinterpreta “Highway to Hell”, um êxito de 1979 dos AC/DC:]

“Escutem os cientistas!”

Apesar de Greta Thunberg viver aterrada pela perspectiva de um cataclismo climático iminente e de o seu tom ser estridente e alarmista, há um ponto em que a jovem activista parece ser sensata: é quando apela aos políticos e decisores para que “escutem os cientistas”.

Porém, é preciso considerar que “os cientistas” não são uma entidade monolítica nem são imunes às fraquezas humanas. É bom lembrar que muitos cientistas aceitaram, durante anos a fio, serem pagos pelas grandes empresas de combustíveis fósseis para ocultar e distorcer informação sobre aquecimento global e para produzir “estudos” desmentindo que tal fenómeno estivesse em curso e tivesse origem antropogénica (como outros antes deles foram subornados pela indústria tabaqueira para ocultar a correlação entre tabagismo e cancro do pulmão). Aliás, um artigo publicado na revista Science a 12 de Janeiro de 2023 por investigadores de Harvard, intitulado “Assessing ExxonMobil’s global warming projections”, revelou que o próprio departamento de investigação da ExxonMobil não só estava perfeitamente consciente da realidade do aquecimento global e da sua conexão com a queima de combustíveis fósseis desde 1977, como desenvolveram modelos matemáticos que geraram previsões sobre o aumento da temperatura média do planeta que se verificou serem muito próximas dos valores que viriam a ser efectivamente registados – previsões essas que, claro, nunca divulgaram. Esta revelação diz-nos mais sobre a perfídia e hipocrisia da ExxonMobil do que sobre o talento dos seus cientistas, já que, logo em 1908, o químico sueco Svante Arrhenius, sem dispor de computadores nem de longas séries de dados de temperaturas e concentração de CO2 na atmosfera, produziu uma estimativa que se revelaria também assaz precisa para o aumento da temperatura média global associado à duplicação da concentração de CO2 em resultado da queima de combustíveis fósseis.

Svante Arrhenius, em 1909

Por outro lado, também é preciso entrar em linha de conta com os cientistas que hoje se afadigam a publicar artigos anunciando cataclismos climáticos e ambientais iminentes e com os que “prometem cada vez mais inovações ‘disruptivas’ e ‘soluções’ fomentadas pela inteligência artificial” para o problema do aquecimento global, assentes no “armazenamento, ainda inexistente, de electricidade em larga escala ou [na] captura irrealisticamente maciça de carbono” (Smil, pg. 244-45). Como até os mais distraídos terão descoberto durante a pandemia de Covid-19, há cientistas que não hesitam em “martelar” resultados e fazer proclamações exorbitantes e que sabem ser destituídas de fundamento, só para desfrutarem de 15 minutos de glória televisiva (ver Covid-19: Os modelos de previsão merecem credibilidade?).

Nada disto invalida a exortação de Greta Thunberg a que se escutem os cientistas: a comunidade científica está dotada de regras e procedimentos para identificar e denunciar (e, eventualmente, desautorizar e banir) os seus membros desonestos ou dados a fantasias, e os seus processos de verificação e certificação pelos pares permitem definir o que são factos comprovados e teorias credíveis (até que novos factos infirmem os anteriores e novas teorias providenciem explicações mais completas e robustas). No que respeita ao aquecimento global de origem antropogénica, a comunidade científica há muito que chegou a uma posição consensual e tem vindo a divulgar as suas estimativas e a lançar os seus alertas, pelo que não é imprescindível que se realizem mais estudos sobre a ecologia dos batráquios na Colômbia nem se desenvolvam modelos matemáticos mais sofisticados para simular o efeito do metano libertado pelos búfalos-de-água na temperatura média do planeta, para determinar que medidas são necessárias para minimizar o aquecimento global e como deverão ser colocadas em prática.

O sistema oceano-atmosférico e os ecossistemas são demasiado vastos, complexos e caóticos e as cadeias causais são demasiado longas e tortuosas para permitirem simulações quantitativas a longo prazo dos efeitos das emissões de gases de efeitos de estufa com elevado grau de precisão (ver Alterações climáticas: Estaremos todos no mesmo barco?), pelo que é contraproducente gastar tempo a discutir se as alterações climáticas irão eliminar 31%, 30%, 29% ou 3% das árvores da Europa até 2050 devido à diminuição da precipitação e ao incremento dos fogos florestais – só um charlatão ou um presunçoso ousará avançar um número preciso e só alguém alheado da realidade do mundo e da natureza e pressupostos dos modelos criados para o simular ousará acenar com tais “previsões” como argumento para a acção.

Smil gasta o início do capítulo “Compreender o futuro” a denunciar esta voga avassaladora das previsões quantitativas emanadas do universo académico: “Actualmente, cada um pode fazer previsões – mesmo sem quaisquer aptidões matemáticas – e com o simples recurso a software pronto a usar”, mas a maioria destas “não passa de simples palpites” (pg. 247). “O advento da computação ubíqua engordou as fileiras [dos profetas] e, com a demanda insaciável dos meios de comunicação por notícias más, as suas previsões e cenários recebem uma distribuição e atenção […] sem precedentes (pg. 250) (sobre a falibilidade dos modelos matemáticos, ver Covid-19: Os modelos de previsão merecem credibilidade?).

[Evolução registada e prevista da temperatura média à superfície da Terra entre 1970 e 2100, tomada como diferença em relação à média registada entre 1970 e 2000. Projecção recorrendo ao modelo GFDL CM2.1 da NOAA (National Oceanic and Atmospheric Administration, o equivalente americano do IPMA) e considerando o cenário A1B (crescimento económico rápido) do SRES (Special Report on Emission Scenarios) do IPPC (Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas):]

Um livro para nos reaproximar das realidades materiais da vida na Terra

É pouco relevante discutir se devemos tentar limitar o aumento da temperatura média da Terra em 1.5º C ou em 2º C (tomando como referência o período pré-Revolução Industrial). O que é crucial é:

1) Determinar a capacidade de carga e os limites de resiliência (aqui justifica-se o uso deste termo hoje aplicado ao desbarato) do sistema Terra
2) Avaliar as necessidades actuais e previsíveis da civilização
3) Ponderar que opções se nos oferecem para ajustar as segundas à primeira

É isso que Vaclav Smil faz em Como o mundo realmente funciona, escrito de forma a ser compreendido por leitores sem qualquer formação científica, alicerçado em factos comprovados e em dados e cálculos credíveis, e que se pauta por uma clareza meridiana e uma invulgar ponderação e equilíbrio.

Vaclav (pronuncia-se “vátsláf”) Smil nasceu em 1943 em Plzeň (os germanófonos chamavam-lhe Pilsen – sim, foi aqui que nasceu a cerveja pilsner), hoje na República Checa, e estudou na Faculdade de Ciências Naturais da Univerzita Karlova, em Praga, onde, conta, foi iniciado nos segredos da Natureza, “da geologia às nuvens”. A repressão pelos tanques soviéticos da Primavera de Praga, em 1969, fê-lo buscar refúgio nos EUA – onde se doutorou em Geografia – e em 1972 tornou-se professor de ciências do ambiente na Universidade de Manitoba, no Canadá, onde permaneceu até se reformar. Entre 1976 e o presente publicou uma quarentena de livros sobre ambiente, ecologia, história das civilizações, progresso tecnológico, energia, produção agrícola e alimentação, e Como o mundo realmente funciona pode ser visto como uma síntese brilhante dos temas que o ocuparam durante a vida, com o fito de dar respostas às presentes dúvidas e ansiedades sobre a crise ambiental, em particular no que respeita às alterações climáticas e às alternativas energéticas. Pode também ver-se Como o mundo realmente funciona como um complemento e uma actualização de The Earth’s biosphere: Evolution, dynamics and change, outro prodigioso livro-síntese, publicado vinte anos antes e que resume, em pouco mais de 300 páginas, os factos essenciais do mundo natural (da engrenagem bioquímica da fotossíntese ao sistema de correntes oceânicas, da formação da Terra ao século XXI) e a forma como este tem vindo a ser modificado pela civilização.

Smil apresenta Como o mundo realmente funciona como uma tentativa de remediar as lacunas e equívocos da maioria das pessoas em relação ao “funcionamento mais fundamental do mundo contemporâneo”. Smil atribui esta desconexão cognitiva não só às já mencionadas expansão e fragmentação do saber, como à urbanização e à mecanização, que levaram a que “a maior parte dos habitantes de cidade modernos [esteja] desligada não só do modo como produzimos alimentos, como, também, da forma como construímos máquinas e aparelhos”. A estes fenómenos soma-se o facto de a sociedade ter ficado embeiçada com “o mundo da informação, dos dados e das imagens” e de “as mentes mais brilhantes” do nosso tempo, “sejam advogados ou economistas, programadores ou gestores financeiros”, derivarem “as suas retribuições desproporcionadamente elevadas […] de um trabalho completamente afastado das realidades materiais da vida na Terra” (pg. 11-13).

Mapa global da produtividade primária dos ecossistemas terrestres e marinhos. Ao contrário do que prevalece no imaginário popular, as águas tropicais são muito menos produtivas do que as das regiões árctica e antárctica

Alguns factos incontornáveis

É impossível fazer uma síntese de um livro que já é, em si mesmo, um formidável trabalho de síntese, mas é pertinente mencionar algumas das suas constatações, conclusões e advertências:

● Os aumentos extraordinários na produção de alimentos registados desde o século XIX foram conseguidos à custa de aumentos extraordinários do consumo de energia, sob a forma de combustíveis fósseis: “entre 1900 e 2000, a população global aumentou quase quatro vezes”, “os terrenos agrícolas aumentaram cerca de 40%” e o “consumo de energia antropogénica na agricultura cresceu 90 [noventa] vezes, com esse aumento a ser liderado pela energia incluída nos elementos agroquímicos e nos combustíveis consumidos directamente pela maquinaria agrícola” (pg. 80), que as energias renováveis não serão capazes de substituir no curto prazo. E é claro que à energia gasta na produção das colheitas “em bruto” é necessário ainda somar a que é gasta no “processamento e comercialização dos alimentos, a sua embalagem, transporte, serviços grossistas e retalhistas, armazenamento e preparação” (pg. 81).

Apesar das mudanças dramáticas operada nas fábricas pela introdução da máquina a vapor, nos campos o trabalho continuou ainda durante muitas décadas a depender essencialmente da força de homens e animais: “Lavrando no Nivernais”, por Rosa Bonheur (1849)

● Em 2020, o consumo médio de energia per capita de 40% da população da população mundial (incluindo quase toda a que vive na África sub-sahariana) “não ultrapassava os valores verificados na Alemanha e na França de 1860” (pg. 14), pelo que é previsível que, à medida que as suas populações crescem, os seus PIBs aumentam e os seus padrões de vida se elevam, os países em desenvolvimento aumentem o seu consumo total de energia.

● “As únicas acções eficazes no sentido da descarbonização […] não têm passado de efeitos colaterais dos avanços técnicos em geral […] e das alterações em curso na produção e gestão […]. O impacto global da recente reviravolta no sentido de descarbonizar a produção de electricidade – através da instalação de painéis solares fotovoltaicos e de turbinas eólicas – tem sido completamente obliterado pela rápida ascensão das emissões de gases com efeito de estufa na China e em toda a Ásia” (pg. 220-21).

● Os SUV (Sport Utility Vehicles), que começaram a ganhar popularidade nos EUA no final da década de 1980, e no século XXI têm dominado incontestavelmente as preferências dos condutores à escala global, trouxeram aumentos de emissões de CO2 que anularam “quaisquer ganhos de descarbonização resultantes da lenta disseminação da posse de veículos eléctricos” (pg. 229). “Na década de 2010, os SUV tornaram-se a segunda maior causa de do aumento das emissões de CO2, a seguir à geração de electricidade e à frente da indústria pesada, da camionagem, da navegação e da aviação” (ver A caminho do Inferno, ao volante de um SUV). Poderia acrescentar-se que os veículos eléctricos, pelo caminho, terrivelmente errado, que estão a tomar (privilegiando, não a funcionalidade e a economia, mas o luxo, a potência exorbitante, as acelerações vertiginosas, a multiplicação de mordomias e a ostentação), irão contribuir muito menos para a descarbonização e para a sustentabilidade do que tem sido anunciado (ver Promessas, ilusões e falácias da mobilidade eléctrica).

Cadillac Escalade de 2021, um dos pináculos do conceito SUV: mais de 400 HP de potência e mais de 2.5 toneladas de peso

O ano em que vamos atingir a neutralidade carbónica (e entrar no Paraíso)

Uma das principais conclusões de Como o mundo realmente funciona é a de que, uma vez que a nossa civilização pouco tem feito para se libertar da dependência dos combustíveis fósseis, “a completa descarbonização da economia global até 2050 só será exequível à custa de um retrocesso económico global impensável, ou como resultado de transformações extraordinariamente céleres que se baseiem em desenvolvimentos técnicos próximo do miraculoso” (pg. 14). É inevitável concluir que as metas de descarbonização, vagamente esboçadas nos Acordos de Paris, em 2015, e acesa e inconclusivamente debatidas nas COPs que se seguiram, são irrealistas e é até possível que as emissões globais de CO2 em 2050 não sejam inferiores às de 2022.

Nesta perspectiva, o anúncio feito por António Costa, a 7 de Novembro passado, por ocasião da sua participação na COP-27, de que Portugal está em condições de antecipar a meta da neutralidade carbónica para 2045, só pode ser lido como uma fanfarronice inconsequente. A nova meta de 2045 assenta, em boa parte, no facto de o Governo português ter “delineado” uma “estratégia nacional para o hidrogénio” que pretende que “deixemos de ser importadores de combustíveis fósseis e possamos ser exportadores de energia verde” (ver capítulo “O gás natural não tem cheiro” em Alterações climáticas e fontes de energia: Soluções miraculosas e truques de prestidigitação e capítulo “Descarbonização à portuguesa” em Alterações climáticas: Estaremos todos no mesmo barco?). Estamos, portanto, no território da “declaração de intenções” ou do “wishful thinking”: ninguém pode afirmar que nos próximos anos o hidrogénio será um combustível relevante no sistema energético europeu ou mundial, já que existe um sério obstáculo (raramente mencionado pelos entusiastas do hidrogénio) à sua utilização em muitas aplicações: possui uma baixa densidade energética em termos de volume.

Densidade energética de diferentes combustíveis e formas de armazenamento de energia: no eixo vertical a densidade é expressa em termos de volume (megajoules por litro), no eixo horizontal é expressa em termos de peso (megajoules por quilograma). A densidade energética do hidrogénio (em termos de volume) é muito inferior ao dos combustíveis fósseis líquidos

Mesmo que o hidrogénio seja adoptado em grande escala, é previsível que seja produzido o mais perto possível do local onde irá ser consumido, pelo que não sabemos se alguma vez fluirá hidrogénio na rede de gasodutos que nos preparamos para construir; e mesmo que flua, nada nos garante que não flua em sentido contrário ao previsto, ou seja, que se trate de hidrogénio produzido com a energia das centrais nucleares francesas e espanholas e se destine a cobrir o deficit energético português.

Mas António Costa não corre risco algum com esta atrevida proclamação: se ainda estiver vivo em 2045, não será seguramente primeiro-ministro e, de qualquer modo, ninguém se recordará já da sua bravata. Costa poderia, com igual assertividade (e ligeireza), ter anunciado para 2045 a criação de um milhão de “empregos verdes” ou a instalação da primeira colónia portuguesa em Marte. Aliás, é esse o seu estilo de governação: uma sucessão de promessas grandiloquentes e “irritantemente optimistas” – na educação, na saúde, na habitação – que não faz ideia de cumprir, pois sabe que a memória dos cidadãos e dos media está a ficar mais curta e a sua atenção, mais dispersa.

Mas a nova data de 2045 escolhida por António Costa talvez tenha outra explicação: este é o ano em que o tecnoguru Ray Kurzweil – o Profeta da Singularidade – prevê que “a inteligência das máquinas terá ultrapassado a inteligência humana” e em que “a inteligência biológica e não biológica [irão] fundir-se” (Smil, pg. 247). Uma vez que, após este portentoso evento, um novo mundo de possibilidades se abre ao ser humano, desde colonizar sistemas solares distantes a fazer o upload da consciência para a cloud e passar a ter uma existência desmaterializada, tornar-se-á irrelevante que a electricidade seja gerada pela queima de carvão em centrais térmicas ou por hamsters a trotar nas rodas das suas gaiolas, que a temperatura da Terra suba ou desça três ou quatro graus, ou que o arquipélago de Tuvalu seja ou não engolido pelo Oceano Pacífico.

O atol de Funafuti, o maior do arquipélago de Tuvalu, alberga a capital do micro-Estado homónimo. A altitude média do arquipélago é de apenas dois metros, mas, a partir de 2045, a subida do nível dos oceanos deixará de angustiar os tuvaluanos, uma vez que poderão mudar-se para o Metaverso

Mas António Costa não está sozinho na sua crença na descarbonização-por-decreto: não falta quem acredite que é possível compensar décadas de inacção e manobras dilatórias no combate às alterações climáticas através de medidas administrativas, incentivos fiscais e empreendedorismo. Entre a torrente de livros sobre a crise climática publicados em 2022 está Supercharge me: Net zero faster, da autoria de Eric Lonergan e Corinne Sawers, que é um guia para atingir a neutralidade carbónica em apenas dez anos, de forma indolor (isto é, sem sacrifício dos padrões de vida dos cidadãos do planeta). O livro é apresentado como sendo “baseado num realismo implacável sobre como governos, empresas e indivíduos realmente se comportam” e, na opinião de Mark Blyth, distinto professor de economia na Brown University, “converte a maior ameaça que enfrentamos na maior oportunidade”. Lonergan & Sawers propõem atingir este mirífico desiderato através de medidas que designam como EPICs, ou “Extreme, Positive Incentives for Change” (“incentivos positivos e extremos para a mudança”), que consistem, basicamente, uma cornucópia de subsídios e benefícios fiscais para promover a electrificação maciça do transporte, para que os agricultores deixem de produzir carne e leite e para que os cidadãos se convertam ao veganismo. Para os autores, o único obstáculo à neutralidade carbónica é a falta de uma visão clara e eles, claro, estão absolutamente seguros de que a possuem, ou não fosse Lonergan um dos mais afamados gestores de hedge funds (“fundos de cobertura”) da City londrina e Sawers directora na empresa americana de consultoria empresarial McKinsey & Company. É difícil imaginar alguém mais alheado do mundo real, das nuvens e dos aquíferos, do krill e das baleias, do capuchinho-equatoriano e da tartaruga-de-couro, do cultivo de trigo na Índia e das siderurgias da Coreia do Sul, da minas de carvão da Austrália e do smog da megalópoles chinesas, do que os gestores de hedge funds e os consultores empresariais. E é por a rota da civilização nas últimas décadas ter sido definida precisamente por este tipo de criaturas que chegámos ao melindroso ponto em que estamos hoje; que elas apregoem, agora, ter a solução para nos salvar é de um desplante e de uma arrogância que só podem ser classificados como “épicos” (como dizem agora os adolescentes).

Quando os “adultos responsáveis” se propõem atingir a neutralidade carbónica em dez anos, não podemos surpreender-nos com a exigência dos activistas adolescentes para que o uso de combustíveis fósseis cesse até 2030. Se os segundos fossem confrontados com a extensa lista de coisas de que têm desfrutado até agora, na qualidade de rebentos da classe média-alta de um país do mundo desenvolvido, e de que teriam de prescindir para que a sua radical meta de descarbonização fosse atingida, é muito provável que reconsiderassem as suas reivindicações; já os gurus da alta finança não vacilariam, pois sabem que a bolha de privilégio em que vivem os protegerá sempre de privações e contratempos e pouco terão a recear de secas, furacões, recessões económicas e subidas do preço do pão.

Os mitos da salvação ex machina e a realidade

Smil considera que as propostas salvíficas dos tecno-deslumbrados – “os campos serão substituídos por agricultura urbana em altura”, “a desmaterialização, alimentada pela inteligência artificial, acabará com a nossa dependência […] de metais e de minerais processados”, os edifícios serão construídos por gigantescas impressoras 3D, os recursos minerais que vierem, eventualmente, a escassear na Terra poderão ser obtidos na Lua, a terraformação de Marte dar-nos-á um planeta B –, não passam de “fantasias, alimentadas por uma sociedade em que as notícias falsas se tornaram comuns e na qual a realidade e a ficção se misturam de tal forma” que seduzem “as mentes mais frágeis, susceptíveis às visões de culto” (pg. 13).

Extracção de minério na Lua, ilustração na revista Popular Mechanics de Outubro de 2004

Muitos dos problemas ambientais e civilizacionais que hoje enfrentamos e a nossa incapacidade em superá-los (ou até em reconhecê-los) resultam de a humanidade estar absorta na “adulação laudatória dos avanços científicos e técnicos sem precedentes”, associados aos “poderes milagrosos da inteligência artificial e das redes neuronais e de aprendizagem […] e da edição genómica” (pg. 261-62). Ou seja, o Homo sapiens, em vez de reconhecer humildemente as suas limitações, ficou embriagado com os seus triunfos e imagina, agora, possuir uma natureza divina, atitude que, na opinião de Smil, tem expressão paradigmática no best-seller Homo Deus, de Yuval Noah Harari (ver Quer tornar-se num deus? Pergunte-lhe como). Harari, que desenvolveu algumas das teses de Homo Deus no ainda mais presunçoso e desvairado 21 lições para o século XXI (ver O que devemos ensinar aos nossos filhos? Há um guru que mostra o caminho), não está só, faz parte de uma brilhante constelação de tecnoprofetas e de magnatas da indústria 4.0 e da nova economia digital que conseguiu capturar a mente de governantes, CEOs, intelectuais e jornalistas (ver capítulos “Os gurus das elites” e “A casta dos meta-barões” em Estará na História a origem da desigualdade entre países ricos e países pobres? e “A Natureza nem sempre é amiga”: Vírus, livros e metáforas).

Contrastando com os cenários “disruptivos” e utópicos anunciados pelos tecnoprofetas e pelos meta-barões, Smil prevê que “os fundamentos básicos das nossas vidas não serão alterados de modo drástico nos próximos 20 a 30 anos, apesar do fluxo quase ininterrupto de alegações de inovações superiores […]. O aço, o cimento, o amoníaco e o plástico irão manter-se os quatro pilares materiais da civilização; uma porção dominante do transporte mundial irá ainda recorrer” a combustíveis fósseis; “as searas continuarão a ser cultivadas por tractores […] e ceifadas com ceifeiras-debulhadoras” e todas estas máquinas serão movidas, essencialmente, a combustíveis fósseis (pg. 261). Resulta daqui e do facto de o CO2 libertado para a atmosfera aí permanecer, em média, durante pelo menos 200 ou 300 anos (ver capítulo “Como reverter o aquecimento global com palavras” em Alterações climáticas: Estaremos todos no mesmo barco?) que as alterações climáticas terão de ser encaradas, não como uma possibilidade ou um inconveniente passageiro, mas como algo com que a humanidade terá de habituar-se a viver durante as próximas gerações, mesmo que conseguisse pôr em prática medidas de descarbonização menos tíbias do que as que têm sido implementadas até agora.

“Os ceifeiros” (1565), por Pieter Brueghel, o Velho (c.1525-1569). Se atendermos as reivindicações de “Fim ao fóssil!” e a rejeição pelos movimentos animalistas da exploração do trabalho animal, teremos de colher o pão exclusivamente com o suor dos nossos rostos

“Não sou um optimista nem um pessimista, sou um cientista”

O debate da crise ambiental há muito que degenerou num bruaá de conversa fiada, promessas irrealistas, exigências lunáticas, pantomimas hipócritas, greenwashing descarado, tergiversações que mordem a sua própria cauda e opiniões que são tanto mais jactanciosas quanto mais são destituídas de fundamento e de racionalidade, o que 1) impossibilita qualquer debate sério, e 2) assegura que nunca serão tomadas medidas relevantes para enfrentar a crise ambiental, já que falar sobre ela e exprimir preocupação com ela equivale, na cabeça de muita gente, a ter “tratado” dela.

Num espaço público cujas regras são, cada vez mais, ditadas pela lógica confrontacional, maniqueísta e bombástica das redes (ditas) sociais, as atenções tendem a convergir para os discursos extremistas – dos que temem que toda a humanidade pereça num cataclismo climático de contornos hollywoodescos antes do fim do ano e dos que garantem que a Terra pode perfeitamente suportar uma população de 16.000 milhões de habitantes com um trem de vida e uma pegada ecológica equivalente à do qatari médio. Smil declara “não sou um optimista nem um pessimista, sou um cientista” e a sua abordagem à crise ambiental é equilibrada e assente em factos, o que fará com que seja vista como pouco apelativa: a imaginação das massas deleita-se é com visões de “ciclones-bomba”, hiper-tornados e cenários ao estilo Mad Max; ou então com uma Terra de cidades inteligentes, em que tudo é reciclado, toda a energia provém de painéis fotovoltaicos em órbita a centenas de quilómetros da Terra, toda a alimentação provém de hortas verticais e tanques de microalgas, o ar é purificado por “torres biofílicas” revestidas de algas e ninguém trabalha mais de duas horas por semana e pode consagrar o seu tempo a workshops de origami e de mindfulness, a abraçar árvores, a produzir cerveja artesanal, a deambular pelo Metaverso e a ensaiar coreografias para o TikTok.

[A cidade do futuro, uma criação do arquitecto indiano Manas Bathia e do programa de inteligência artificial Midjourney:]

Como o mundo realmente funciona é uma das exposições mais lúcidas e pertinentes sobre a encruzilhada em que se encontra a humanidade e deveria ser amplamente lido, relido, assimilado, debatido e interiorizado por todos os que se preocupam com “o nosso futuro comum”, e, em particular, por quem ocupa cargos onde se tomam as decisões que moldam esse futuro. Seria mesmo recomendável que os candidatos a cargos no Governo, além de terem de preencher o questionário de 36 perguntas sobre incompatibilidades, conflitos de interesses e situação fiscal e patrimonial, fossem submetidos a um exame sobre Como o mundo realmente funciona, tendo de demonstrar dominar os conceitos e factos explanados no livro. O mesmo deveria aplicar-se a quem escreve e fala nos media sobre questões de ambiente e sustentabilidade, sejam jornalistas ou colunistas, e a líderes de partidos políticos que se intitulem “ecologistas” ou “ambientalistas”. E, uma vez que os jovens activistas climáticos exigem que os programas escolares passem a incluir aulas sobre alterações climáticas e ambiente, poderia introduzir-se, entre o 10.º e o 12.º ano, uma disciplina inteiramente centrada em Como o mundo realmente funciona. Não para dissuadir os jovens de protestar contra o Governo pela sua inacção perante as alterações climáticas e outras crises ambientais, mas para conferir foco, consistência, pertinência, rigor, acutilância, razoabilidade e, logo, legitimidade aos seus protestos.

Notas sobre a tradução

Uma vez que Como o mundo realmente funciona prima pelo rigor e pela clareza de exposição e cobre áreas científicas muito diversas, deveria ser alvo de cuidados especiais na tradução e revisão. Nem sempre é o que acontece e duas das falhas dizem respeito a termos que estão por trás de conceitos capitais e repetem-se ao longo do livro.

Embora o contexto nunca deixe quaisquer dúvidas de que o autor se refere ao processo de fissão nuclear – a quebra do núcleo de um átomo de elevado número atómico (que, nas centrais nucleares é, comummente, o urânio) em átomos de elementos mais “simples” –, a tradução refere-o como “fusão”. Ora a fusão é o processo inverso, em que os núcleos de dois ou mais átomos de um elemento “simples” (como hidrogénio ou hélio) se fundem para criar átomos de elementos mais “pesados”. Este erro, que ocorre, nomeadamente, nas pg. 35, 53, 174, 253-54 e 267, é grave, uma vez que dá uma imagem completamente equívoca das opções energéticas que se apresentam à civilização: a fissão nuclear é um método de produção de energia comprovado e amplamente utilizado (ainda que muito contestado), enquanto a fusão é apenas uma possibilidade ainda em estudo (e que poderá nunca se revelar comercialmente viável).

A outra confusão grave envolve o silício: este elemento químico, com o símbolo Si e a designação inglesa “silicon”, é um dos mais abundantes no universo e os silicatos (formados por um átomo de silício e quatro de oxigénio) representam 90% da crosta terrestre; os silicatos são constituintes centrais dos cimentos, cerâmicas e vidros, e os cristais de silício de elevada pureza são a trave-mestra da indústria electrónica (nomeadamente nos hoje muito falados semicondutores). Infelizmente, e apesar das claras explicações providenciadas por Smil, o silício é sistematicamente designado na versão portuguesa do livro (pg. 96, 99, 109-10, 114 e 116) como “silicone”; ora o silicone é um polímero contendo silício que é usado como cola, vedante e isolante térmico e eléctrico e em implantes de cirurgia estética e é designado em inglês por “silicone” (a região californiana conhecida como “Silicon Valley”, não equivale em português a “Vale do Silicone” mas a “Vale do Silício”, uma vez que é afamada pela concentração de empresas na área da electrónica, não de clínicas de implantes mamários). Na pg. 148 o elemento Si é correctamente designado como “silício”, mas este momento passageiro de lucidez não levou tradutor nem revisores a darem-se conta das incongruências que cometeram atrás.

Outra confusão sistemática envolve as “noras” , que aparecem várias vezes em contextos que deixam claro que o autor fala de moinhos de água ou azenhas (“watermills”).