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Como se financiam os partidos lá fora? E o que podemos aprender com eles?

Os partidos alemães conseguem dinheiro como? E os franceses? E os espanhóis? Com a discussão sobre o financiamento na estaca zero, o que aprendemos olhando lá para fora? Ensaio de Nuno Gonçalo Poças.

Os Ensaios do Observador juntam artigos de análise sobre as áreas mais importantes da sociedade portuguesa. O objetivo é debater — com factos e com números e sem complexos — qual a melhor forma de resolver alguns dos problemas que ameaçam o nosso desenvolvimento.

O tema do financiamento partidário incendiou o debate público – justamente, diga-se. Ora, agora importa não ficar pela superfície da polémica e ir ao cerne da questão: se os partidos devem ser financiados, como definir qual o sistema de financiamento mais adequado? Se procura uma resposta absoluta, desista. Um pouco por todo o mundo, as opções são diversas e variadas. Mas, como se verá de seguida, há algo que pode assumir logo à partida: sem um sistema de fiscalização adequado, não há modelo de financiamento que possa corresponder às necessidades de um regime democrático. Esse é o nervo sensível do debate (que os partidos não querem ter).

Mas, antes de se ir a esse ponto, comece-se pelo óbvio: não há democracia sem partidos. Mas também não há democracia se ela for exclusivamente partidária. E menos democracia há sem um modelo de financiamento que satisfaça as necessidades dos partidos, a contenção das contas públicas e o cumprimento de regras de transparência, de fiscalização e rigor que a própria democracia deve comportar.

Num modelo ideal, os partidos viveriam da boa cobrança de quotizações e da generosidade dos seus militantes. Na vida real, os partidos não têm militância que chegue para cobrir as suas necessidades financeiras. É por isso que, sendo os partidos os atores principais do sistema democrático, é de senso comum que lhes sejam garantidas fontes de financiamento que lhes permitam assegurar a realização de atividades partidárias, de campanhas eleitorais, de contratação de pessoal administrativo ou até de garantir o contacto permanente com os militantes e o eleitorado em geral. A dúvida é, portanto, como enquadrar esse financiamento. É sobre essa questão que este ensaio se debruça.

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Financiamento público, privado ou misto? As tendências internacionais

Nenhum modelo de financiamento partidário é perfeito. Por um lado, um financiamento exclusivamente privado transforma o partidarismo num fenómeno económico, de mercado concorrencial, limitando o surgimento de novos partidos e colocando em risco a sustentabilidade de muitos partidos, ameaçando-se assim a representatividade das sensibilidades políticas e ideológicas no quadro partidário. Por outro lado, um financiamento exclusivamente público limita a potencial influência de indivíduos ou pessoas coletivas na vida interna dos partidos, impede a entrada de novos agentes no jogo político e fomenta a partidarização da máquina do Estado. Ou seja, qualquer um deles, no limite, acaba por criar condições, de uma forma ou de outra, para afastar os cidadãos dos partidos, da atividade política e da democracia. Como resolver o dilema? Olhando para o que, no século XX, têm sido as tendências internacionais.

É verdade que o financiamento da atividade partidária já se fez unicamente com os recursos privados das elites que tinham lugar exclusivo no processo eleitoral e no quadro político-partidário. A evolução dos sistemas políticos e da própria sociedade ocidental conduziu ao fim dos antigos partidos de base aristocrática e fez surgir os grandes partidos de massas, democratizando com isso as próprias estruturas de financiamentos: nas décadas de 1950 e 1960, países como a Holanda ou a Áustria chegaram a apresentar taxas de filiação partidária que garantiam o financiamento em cerca de 90%.

Com o declínio da participação financeira privada, nuns casos, ou por opção ideológica, noutros, os Estados começaram a optar pela via do financiamento público (sendo que a estes fatores acresce o fenómeno do encarecimento das campanhas eleitorais, uma realidade que se tornou mais evidente já nos anos 90). A Alemanha fê-lo logo na década de 50, a Suécia e a Finlândia na de 60, Noruega, Itália, Áustria, Grécia, Espanha e Portugal na 70, Dinamarca, França e Bélgica nos anos 80, Chipre, Holanda, Irlanda e Luxemburgo nos anos 90 e até a Islândia, já em 2006. No bloco continental, o financiamento público da atividade e das campanhas partidárias é generalizado, seja em regime exclusivo, seja em regime misto. É a solução que se escolhe quando nenhuma das opções é agradável. Uma solução combinada entre o financiamento público e o privado, com limites às fontes e às quantias doadas por privados e a garantia de que os dinheiros públicos são fiscalizados por uma entidade independente.

Uma coisa é certa em todos estes exemplos: sem regras de transparência e fiscalização, sem mecanismos de fiscalização políticos e jurídicos, sem instrumentos de prevenção da corrupção, não há financiamento partidário possível.

As democracias anglófilas têm optado por uma relação mais liberal entre os partidos e o Estado. Em países como o Reino Unido, a Austrália, a Nova Zelândia ou os Estados Unidos, os partidos são tratados pelo Estado como entidades privadas que defendem interesses privados, o que lhes garante uma ampla margem de liberdade para que criem relações financeiras com outras entidades privadas, singulares ou coletivas.

Podíamos ser muito simplistas e dizer que os países que têm um sistema bipartidário muito forte, e nos quais existe uma divisão histórica entre capital e trabalho, são os países da tradição liberal no que diz respeito ao financiamento partidário. É o que aparentemente sucede no Reino Unido: um partido de natureza liberal-conservadora é financiado maioritariamente por empresas e um partido de natureza socialista é financiado por sindicatos. Mas o financiamento partidário é demasiado cinzento – e nem na mais antiga democracia consolidada do mundo se encontram pretos e brancos. Mesmo no Reino Unido, o partido da oposição tem parte dos seus custos financiados pelo Estado, de forma a garantir um mecanismo de compensação face ao partido vencedor, que passa a dispor da estrutura do Governo para se organizar. Ou, para dar outro exemplo, a Irlanda, de natureza igualmente liberal, tem a sua atividade política financiada em cerca de 75% por dinheiros públicos. Ou ainda o Canadá, que proíbe, a par da distante França, as doações empresariais.

Por outro lado, a tendência mais estatal de financiamento também não é especialmente ortodoxa. É certo que na maioria dos países os partidos são tratados legalmente como entidades privadas de serviço público, mas, apesar de haver neles uma tendência para restringir a atuação de privados numa questão tão sensível como a do financiamento partidário, não deixa de ser admitido, em não poucos países de matriz publicista, o financiamento por empresas.

Uma coisa é certa em todos estes exemplos: sem regras de transparência e fiscalização, sem mecanismos de fiscalização políticos e jurídicos, sem instrumentos de prevenção da corrupção, não há financiamento partidário possível. Sem essa fiscalização, resta apenas o saque e o incentivo a que os partidos vivam cada vez mais fechados sobre si próprios, afastados das pessoas e presos numa teia de interesses e de situações mais ou menos opacas.

Conclusão: a discussão sobre as virtudes de cada um dos modelos (público, privado ou misto) é importante, mas, independentemente do modelo, o que deve estar de facto em discussão são os mecanismos de fiscalização. E, acima de tudo, ter essa discussão no seio da sociedade civil, fora do monopólio dos partidos e do Parlamento. Sendo certo, claro, que independentemente das regras, haverá sempre quem tente ignorá-las. Mesmo grandes democracias como Itália, França, Alemanha ou Estados Unidos não deixaram de ter grandes casos de corrupção envolvendo financiamento eleitoral ou partidário.

Na prática, que sistemas de financiamento foram adotados nos vários países?

Na teoria tudo isto é simples. Mas, quando se mergulha na realidade de cada contexto nacional, as áreas cinzentas começam a sobressair, tornando mais difícil a identificação de padrões – difícil, mas não impossível. Veja-se cinco exemplos internacionais que, frequentemente, são mencionados na literatura académica sobre o tema: Alemanha, Reino Unido, França, EUA e Espanha.

Alemanha

Os alemães foram vanguardistas em questões de financiamento partidário, nomeadamente no financiamento público. Porém, durante várias décadas, o Tribunal Federal entendeu que esse financiamento teria de ser efetuado através do mero reembolso de despesas de campanha eleitoral, julgando inconstitucional o financiamento por meio de subvenções. Só na década de 1990 este modelo de subvenções em função do número de votos obtidos substituiu o anterior. A estas verbas, os partidos alemães devem somar o financiamento que obtêm de contribuições e donativos privados, nos quais se podem incluir pessoas singulares ou coletivas.

A contabilidade dos partidos é sujeita a auditorias internas e externas antes do controlo pelo Presidente do Parlamento Federal (Bundestag), que, por sua vez, fixa as taxas de subvenção a atribuir e verifica o cumprimento das normas aplicáveis, sendo assessorado por uma comissão administrativa especializada. É certo que as decisões do Presidente do Bundestag são passíveis de impugnação junto dos tribunais judiciais, mas não deixa de ser curioso que o próprio Presidente do Parlamento Federal não esteja, ele próprio, sujeito a quaisquer regras de accountability.

Reino Unido

Desde 2001 que existe a Electoral Comission, uma entidade independente que presta contas ao Parlamento e que tem um conjunto muito vasto de poderes para fiscalizar e controlar os donativos recebidos pelos partidos, os seus relatórios e contas e as despesas com as campanhas eleitorais que estes levam a cabo.

Para garantir a efetiva independência dos membros da Electoral Comission, foi criado um conjunto de normas que proíbe, por exemplo, os seus membros de terem qualquer ligação aos partidos políticos fiscalizados.

O Parlamento define o valor admissível das despesas com as campanhas eleitorais, dentro do quadro de financiamento de que se falava anteriormente, e existe um regime sancionatório muito apertado para os incumprimentos – no limite, a violação de regras de financiamento, no Reino Unido pode implicar a anulação da eleição ou a perda do mandato do infrator.

França

França tem um regime de financiamento público, através da atribuição de subvenções, e privado, através de donativos de pessoas físicas francesas – os donativos de empresas ou de estrangeiros são proibidos – com limites máximos quanto ao valor. O financiamento eleitoral, por outro lado, prevê ainda o reembolso de despesas de campanha até 50% das mesmas, mediante o cumprimento de determinados requisitos.

A Comission Nationale des Comptes de Campagne et des Financiaments Politiques, criada em 1990 e tornada entidade independente em 2003, fiscaliza as contas dos partidos e dos candidatos eleitorais, mas tem sido alvo de algumas críticas, nomeadamente pelo IDEA (International Institute for Democracy and Electoral Assistance), que lhe tem apontado lacunas no âmbito dos seus poderes de controlo e fiscalização, tratando-se, afinal, de uma entidade independente, mas sem poderes.

O regime sancionatório francês prevê as infrações penais, que são avaliadas pela Procuradoria da República, ou para as infrações meramente contabilísticas, que são sancionadas por via pecuniária.

Estados Unidos da América

O modelo de financiamento americano é maioritariamente privado, existindo algumas modalidades de financiamento público meramente residuais. Aliás, os donativos dos cidadãos americanos aos partidos ou aos candidatos podem ser deduzidos fiscalmente, o que acaba por criar, pelo menos em teoria, uma relação direta entre o financiador e o financiado. Os financiadores, sempre privados, são divididos entre os pequenos (até 200 dólares), os grandes (acima desse valor), os chamados PAC (Political Action Committee) ou os Super PAC (que podem receber quantias sem limite máximo tanto de pessoas físicas como de empresas, sindicatos ou outros grupos de interesses, sendo que não podem fazer donativos a candidatos ou partidos, podendo antes fazer eles próprios as suas campanhas a favor de uns ou contra outros candidatos ou ideias). Existem ainda casos de autofinanciamento, uma excentricidade para a realidade europeia.

A Federal Election Comission é, desde 1975, o órgão fiscalizador das contas políticas americanas. É, porém, um organismo com atribuições limitadas já que, com exceção das contas das eleições presidenciais, apenas tem poder para fiscalizar contas de campanhas eleitorais se receber uma queixa ou se pelo menos quatro dos seus membros votarem a favor da abertura de um processo de investigação – o que, no caso concreto da FEC, é muito pouco provável, em função das filiações partidárias dos seus membros e do facto de a própria FEC não possuir mecanismos de investigação próprios que lhe permitam agir com independência, celeridade e rigor. Por outro lado, ainda, a FEC depende diretamente do Congresso, que lhe pode limitar as verbas de funcionamento, o que não deixa de ser altamente constrangedor para uma entidade que devia possuir um grau de independência inatacável.

Espanha

O sistema espanhol assenta essencialmente no financiamento público, sendo que o financiamento privado continua a ter pouca expressão junto dos partidos. O modelo é também o da subvenção distribuída pelos partidos que garantam assento parlamentar, em função do número de votos e de mandatos obtidos. O modelo tem sido criticado por não fomentar o pluralismo e a criação de novos partidos – o Ciudadanos foi a exceção que confirmou a regra.

Espanha tem o modelo de supervisão concentrado no Tribunal de Contas que, no entanto, não dispõe de poder sancionatório. A perversão do modelo espanhol é flagrante: o Tribunal de Contas pode apenas propor ao Parlamento que aplique sanções aos partidos que cometam irregularidades. Como bem identificou o IDEA, são os partidos, no limite, a decidir se devem ou não aplicar sanções a eles próprios.

E em Portugal, como funciona o financiamento partidário?

O modelo português é complexo e centra-se em duas fases distintas de financiamento: a lei prevê regras específicas sobre o financiamento dos partidos políticos e outras exclusivamente destinadas ao financiamento de campanhas eleitorais.

Olhe-se primeiro ao financiamento dos partidos políticos. Os donativos de pessoas singulares estão sujeitos ao limite anual de 25 vezes o valor do Indexante dos Apoios Sociais (421,32 euros em 2017) e são proibidos os donativos anónimos e os donativos ou empréstimos de natureza pecuniária ou em espécie de pessoas coletivas nacionais ou estrangeiras, exceto a contração de empréstimos junto de instituições de crédito e sociedades financeiras. E, até agora, as angariações de fundos têm como limite, por partido, o valor correspondente a 1500 vezes o valor do IAS.

Já o financiamento público é dividido entre as subvenções para financiamento dos partidos e as subvenções para as campanhas eleitorais. A subvenção pública para financiamento da atividade dos partidos funciona da seguinte forma: a cada partido que haja concorrido a ato eleitoral, ainda que em coligação, e que obtenha representação na Assembleia da República é concedida uma subvenção anual. O valor desta subvenção consiste numa quantia equivalente a 1/135 do valor do IAS por cada voto obtido na última eleição legislativa. Esta subvenção é também concedida aos partidos que tenham concorrido ao referido ato eleitoral e que, não tendo conseguido representação parlamentar, obtenham um número de votos superior a 50.000.

O tratamento legal das angariações de fundos não é pacífico – e a mais recente iniciativa dos deputados ainda menos a pacificou, por via do fim do limite e da questão fiscal relacionada com aquelas. O caso da Festa do Avante pode ser, a este título, o mais paradigmático. O evento é tratado como uma angariação de fundos, encontrando-se isento de IVA e de IRC. Mas, na prática, trata-se de um festival de Verão que beneficia, quando comparado com as promotoras de espetáculos, de isenções fiscais por via da legislação de financiamento partidário.

As penas de prisão aplicáveis a quem participe na atribuição e obtenção de financiamento proibidos situam-se entre um e três anos. O que, traduzindo, significa que muito dificilmente uma situação deste tipo dará origem a penas de prisão efetiva. 

Em Espanha, por exemplo, os partidos estão isentos de IRC sobre os rendimentos que obtêm para financiamento de atividades que constituem o seu objeto ou fim específico, o que inclui rendimentos obtidos através do exercício de atividades próprias. É tudo uma questão de interpretação – em Espanha um caso como o da Festa do Avante não estaria livre de múltiplas e contraditórias interpretações. Em Portugal o PCP escuda-se na isenção de IRC e na isenção de IVA permitidas pelo artigo 10.º n.º 1 alínea h) da Lei de Financiamento, apesar de a norma exigir que a isenção não provoque distorções de concorrência, incidindo sobre fornecimento de bens ou serviços em iniciativas de angariação de fundos em proveito exclusivo do partido.

A Entidade das Contas e Financiamentos Políticos (ECFP) tem entendido que a Festa do Avante não pode ser considerada uma única atividade de angariação de fundos, já que nela ocorrem múltiplas atividades, de diferentes naturezas, que deviam ser analisadas contabilisticamente de formas diferentes, o que, não acontecendo, não permite que se avalie se o limite à angariação de fundos foi ou não ultrapassado (o fim do limite à angariação de fundos eliminaria este “problema”).

Em relação ao financiamento das campanhas eleitorais, este é tratado autonomamente, sendo que as receitas e despesas das mesmas constam de contas próprias restritas à campanha. As contas anuais dos partidos e as contas das campanhas eleitorais são apreciadas pelo Tribunal Constitucional (TC), que se pronuncia sobre a sua regularidade e legalidade, sendo para o efeito coadjuvado pela ECFP, um órgão independente que funciona junto daquele Tribunal. Nesse âmbito, a ECFP é responsável pela instrução dos processos que o Tribunal aprecia, bem como pela fiscalização da correspondência entre os gastos declarados e as despesas efetivamente realizadas.

É aqui que, simplificando, começam os problemas de fiscalização no modelo português. Compreende-se o sentido de ter sido criado um outro organismo – a ECFP – para coadjuvar o TC (que tem, sobretudo, a seu cargo a apreciação de constitucionalidade e legalidade de normas) nessa matéria. Mas é a própria criação da ECFP que explica que o TC não é a entidade adequada a fiscalizar o financiamento e a contabilidade dos partidos, tendo o atual regime de fiscalização contribuído apenas para a proliferação de entidades e mecanismos de controlo do Estado, neste caso para efeitos de supervisão das contas partidárias. E nem o TC nem a ECFP têm os mecanismos de independência que a Electoral Comission britânica tem – não é, entre nós, por exemplo, estranho que um juiz do Tribunal Constitucional deixe de o ser para integrar um Governo, ou o contrário, o que constitui uma perversão completa do princípio da separação de poderes. Os seus membros podem, de facto, ser independentes – e não há sequer razões para acreditar que não o tenham sido. Mas não é porque a lei garanta que o sejam. Ou seja, os mecanismos de fiscalização ficam muito aquém do desejável e do que é prática noutros países, embora nenhum dos modelos esteja isento de críticas.

Acresce que as penas de prisão aplicáveis a dirigentes partidários, mandatários financeiros, candidatos presidenciais, pessoas singulares e administradores de pessoas coletivas que participem na atribuição e obtenção de financiamento proibidos (ou que não observem os limites de financiamento ou que obtenham para as respetivas campanhas receitas proibidas) situam-se entre um e três anos. O que, traduzindo, significa que muito dificilmente uma situação deste tipo dará origem a penas de prisão efetiva. Já os partidos políticos que não cumpram as obrigações legais ou que obtenham receitas para a campanha eleitoral por formas não consentidas são punidos com coima – o que, por seu lado, não parece ser dissuasor suficiente.

Este é um dos problemas que sobressaem da análise do modelo de fiscalização em Portugal: o regime atual não inibe os partidos de incorrer na prática de irregularidades financeiras – afinal, a sanção será, no limite, o pagamento de uma coima, ainda que avultada. E alternativas para tornar o regime mais inibitório não faltariam. Com efeito, parece mais eficaz um regime que preveja como sanção a impossibilidade de os partidos apresentarem candidaturas em atos eleitorais posteriores ou com a perda de mandatos, como prevê o direito britânico, em cumulação com o atual regime de punição por coimas e de responsabilidade criminal.

Parece equilibrado um regime que concilie o pagamento de coimas com a proibição de concorrer a atos eleitorais e, em última instância, com a perda de mandatos, o que, em bom rigor, só será possível com decisões céleres. Mesmo o agravamento das sanções, penais ou não, não constitui qualquer ameaça à democracia. Pelo contrário, trata-se de um mecanismo sancionatório reforçado que pretende estimular o cumprimento das regras, o respeito pelos fundos públicos e o cumprimento das funções político-constitucionais dos próprios partidos. Afinal, um partido que sistematicamente incumpre de forma grave as regras de financiamento é um partido que não representa a vontade popular, que não concorre em condições de igualdade, e que não respeita, inclusive, o regime democrático.

Sob esse ângulo de análise, torna-se claro que o atual modelo de financiamento deturpa o objetivo final da existência dos partidos. Por um lado, porque lhes assegura um financiamento sem exigir contrapartidas cívicas. Por outro, porque dificulta a apreciação das suas contas, na medida em que se dispersa a atividade fiscalizadora entre o financiamento regular e o financiamento especial para campanhas eleitorais.

Certo, certo é que a ineficácia de um regime complacente com más práticas financeiras gera, por seu turno, desconfiança relativamente aos próprios partidos no seu conjunto, ao sistema político e, em última instância, à democracia.

O que retirar desta discussão? Que o essencial está ainda por discutir

Não é fácil chegar a conclusões simples no que diz respeito ao financiamento partidário. As realidades comparadas não são uniformes, não existem casos de grande sucesso, nenhum modelo adotado por nenhum Estado é inatacável. De facto, o modelo de financiamento português não está nem alinhado nem desalinhado com as melhores práticas internacionais, unicamente porque não há melhores práticas internacionais. Existem apenas bons exemplos em modelos de financiamento que, no global, não são perfeitos. Mas é também por isso que a discussão sobre o tema é tão importante, em Portugal como noutros países. É pela imperfeição do sistema que se torna tão relevante a sua discussão – fora do Parlamento e fora das salas fechadas dos partidos. São várias as questões que carecem de debate público.

1. É essencial a manutenção da subvenção partidária em função dos votos e mandatos obtidos? A fraca participação política e a garantia de independência dos partidos face a interesses privados diz que sim, pelo menos teoricamente. Mas também continua a fazer sentido a existência de financiamento privado, ainda que com limites, à semelhança do que acontece com a maioria dos sistemas que o admitem. É a existência desse limite ao financiamento privado ou às angariações de fundos que garante, também, a independência dos partidos face a grandes interesses privados ou, no limite, à existência de donos de partidos, além de contribuir para a manutenção do pluralismo e para o fortalecimento da ideia de que os partidos não se inserem num mercado concorrencial como é o dos festivais de Verão, por exemplo.

2. Faz ou não sentido que os partidos se encontrem isentos do pagamento de determinados impostos? A polémica chega-nos hoje graças ao alargamento dessa isenção, mas não traz, substancialmente, nada de novo. O artigo 10.º da Lei n.º 19/2003 não é recente e as interpretações que, por exemplo, a Autoridade Tributária tem feito dele justificavam a clarificação da norma.

O que seria discutível – e até agora os partidos não o fizeram e, salvo raras exceções, a sociedade também não tem feito – seria a existência ou não do regime de isenção fiscal dos partidos no seu todo. É verdade que na maioria dos países os partidos beneficiam de isenções fiscais, sobretudo em relação ao pagamento de imposto sobre imóveis ou de IVA, como acontece em Espanha ou no Reino Unido, nos casos em que tal coincida com o exercício da sua atividade política. Mas questionar continua a ser legítimo: será razoável isentar os partidos do pagamento de impostos quando já recebem subvenções públicas e são suscetíveis de receber donativos privados ou capazes de angariar fundos, ainda que com limites?

Não parece desprovido de sentido a aplicação de sanções, como acontece no Reino Unido ou na Colômbia, que impliquem a perda de mandatos pelo partido ou pelo dirigente infrator. Que mais pode temer um partido: o pagamento de uma coima ou a perda de um mandato?

3. É também importante discutir se faz sentido manter a competência sobre a fiscalização das contas partidárias na esfera de um tribunal político como o Tribunal Constitucional ou se seria mais prudente transferi-las para o Tribunal de Contas, eliminando a ECFP e, com isso, evitando a proliferação de entidades intermédias que, por mais independentes que sejam, não trazem formal e/ou materialmente qualquer celeridade, imparcialidade ou objetividade nas decisões. Ou ainda, como parece ser o entendimento dos deputados, autonomizar a ECFP, dotando um órgão administrativo de novas competências.

4. Depois, seria conveniente discutir se o órgão fiscalizador, seja ele qual for, deve possuir meios (legais, humanos e financeiros) para investigar e fiscalizar ou se deve apenas ser uma mera “entidade de carimbo”, como já disse a ex-presidente da ECFP. É verdade que a lei prevê que a ECFP pode realizar inspeções ou auditorias, mas não é claro que possua sequer meios para isso. Além disso, é imperativo discutir o caráter independente desse órgão – e aqui parece evidente que a Electoral Comission britânica tem, como se viu, o mérito de ser efetivamente um órgão independente e, não menos importante, de possuir meios de fiscalização das contas partidárias (o que, no caso português, não acontece legalmente com a ECFP ou com o próprio TC). O que agora aparentemente os deputados decidiram fazer foi enquadrar formalmente a ECFP, sem a dotar de meios ou de novo enquadramento orçamental. O que fica por discutir é a criação de mecanismos de independência e atuação fiscalizadora por parte da entidade que supervisiona as contas partidárias – seja a ECFP ou outra qualquer.

5. Por fim, não menos importante é a capacidade de que esse órgão fiscalizador deve ser dotado para fazer aplicar sanções sobre os partidos incumpridores e, mais, que regime sancionatório é suficiente para dissuadir os partidos de cometerem irregularidades. O que a lei prevê é que os partidos vejam os seus benefícios suspensos para o caso de não apresentarem as suas contas, mas não é prevista qualquer sanção semelhante para o caso de se verificarem irregularidades nas contas apresentadas. E não parece desprovido de sentido a aplicação de sanções, como acontece em casos tão díspares como são os do Reino Unido ou da Colômbia, que impliquem a perda de mandatos pelo partido ou pelo dirigente infrator. Que mais pode temer um partido político: o pagamento de uma coima ou a perda de um mandato? Trata-se, de uma regra que não tem sido aplicada com frequência, mas que pode trazer um efeito dissuasor maior. O que releva é, sobretudo, que seja criado um modelo de fiscalização que traga celeridade, imparcialidade e rigor, de forma a, caso seja necessário, aplicar sanções em tempo e com justiça.

O que, até ao momento, fica do debate público é muito pouco. O debate chegou à sociedade em má hora e da pior forma possível. E, como todas as discussões públicas dos últimos e dos próximos tempos, vem carregado de ruído, de indignação e de uma vontade imensa de que a conversa sobre o tema termine para que surja um novo. Mas este é um debate demasiado importante para ser ignorado. Pela questão dos limites ao financiamento, dos poderes de fiscalização ou dos regimes sancionatórios. O que parece, de facto, é que estamos novamente a perder a oportunidade de reformar o sistema.

Nuno Gonçalo Poças é advogado e foi assessor no XIX Governo. Escreve no Observador sobre o sistema político e a justiça.

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