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“Por favor, por favor… não consigo respirar”. Deitado e algemado com a cara no alcatrão, na berma de uma estrada de Minneapolis (Minnesota), pressionado no pescoço pelo joelho de um polícia, a voz de George Floyd foi perdendo o fôlego. Indiferente aos apelos do afroamericano e de quem assistia à sua detenção, o polícia continuou a pressioná-lo. Floyd já não respirava, mas nem o polícia que o imobilizava nem a sua equipa o libertavam. Só o fizeram quando os bombeiros chegaram e era tarde demais. George Floyd foi levado de maca já morto, perante a incredulidade de todos os que assistiam e filmavam. As imagens depressa chegaram à internet e viralizaram, tornando-se no rastilho para uma série de protestos que começaram naquela cidade e alastraram até, pelo menos, 350 outras, pondo os Estados Unidos a ferro e fogo em plena crise pandémica.
O caso aconteceu no Memorial Day, a última segunda-feira do mês de maio em que é feriado nos Estados Unidos e em que se presta homenagem àqueles que morreram ao serviço do Exército americano. No dia seguinte, com as imagens da detenção e da sua morte em direto a espalharem-se rapidamente pelas redes sociais, começaram os protestos nas ruas. Primeiro na cidade onde tudo aconteceu, depois noutras. No final da semana, com a detenção do polícia acusado, os protestos que seriam pacíficos começaram a replicar-se e a terminar em confrontos com a polícia. Em apenas sete dias vários governadores viram-se obrigados a declarar medidas de emergência, como a declaração do estado de calamidade e o recolher obrigatório nos seus estados ou nalgumas cidades. Foram detidos milhares de manifestantes, 17 pessoas terão perdido a vida, entre elas pelo menos um polícia, e muitos ficaram feridos. A Guarda Nacional foi chamada a reforçar a segurança de mais de 20 estados e o Presidente Donald Trump já avisou: se a situação não acalmar, põe o exército na rua.
O Observador conta-lhe o que se passou nestes sete dias de confrontos nos Estados Unidos.
Como tudo começou?
O que aconteceu naquele dia 25 de maio pode ser reconstruído através das imagens de videovigilância da Chicago Avenue, de alguns estabelecimentos comerciais, das imagens captadas pelo condutor que estava estacionado atrás da carrinha de George Floyd quando ele foi abordado pela polícia, da própria polícia e dos vídeos captados por testemunhas da detenção, como demonstra uma compilação do Washington Post.
Segundo o dono de uma loja de conveniência da rua, Floyd, 44 anos, e o amigo entraram e tentaram comprar tabaco com uma nota falsa. Três funcionários da loja perceberam, depois, que os dois homens permaneciam dentro de uma carrinha Mercedes que estava estacionada e abordaram-no. Floyd estava ao volante. Minutos depois chegariam dois polícias de Minneapolis. Um abordou o condutor, outro o amigo, sentado no lugar do pendura. Não se sabe que palavras trocaram nesse momento, mas, em segundos, um dos polícias puxou Floyd do interior do carro e algemou-o, encostando-o depois a uma parede, até que chegaram reforços.
Nas imagens vê-se uma terceira pessoa, uma mulher, a sair do interior do carro. Ela e o amigo afastam-se enquanto falam com um polícia e Floyd é levado algemado para a frente da loja de conveniência, junto do carro dos polícias. Percebe-se que chega a cair e que os polícias o levantam. Chega uma carrinha policial que vem reforçar os primeiros agentes a chegarem ao local e que corta o ângulo de visão, impedindo de ver o que entretanto se está a passar. A imagem seguinte já mostra Floyd de cara no chão, do outro lado do carro policial, imobilizado por um dos polícia e com três outros à volta.
Várias pessoas começam a filmar a imobilização e ouve-se Floyd a alertar o polícia que não consegue respirar. O som é bem nítido nos vídeos amadores. Ao fim de cinco minutos de vídeo amadores, Floyd deixa de ouvir. Apesar das testemunhas apelarem ao bom senso dos agentes e pedirem que lhe meçam a pulsação, o polícia que o agarra não o liberta de forma alguma. “Não vê que ele não está a respirar?”, dizem. Segundo a acusação, George Floyd esteve 8 minutos e 25 segundos deitado no chão, com a pressão do joelho do polícia sobre o pescoço.
Quem são e o que aconteceu aos polícias envolvidos?
O polícia que pressionou Floyd contra o chão com o joelho no seu pescoço, acabando por matá-lo por asfixia — como provaram duas autópsias independentes reveladas esta terça-feira — chama-se Derek Chauvin e trabalhava no Departamento da Polícia de Minneapolis há 18 anos. O mesmo número, 18, eram as queixas contra ele por abuso policial. Só duas tiveram consequências disciplinares, segundo a CNN. Curiosamente, os dois ter-se-ão cruzado num mesmo trabalho (como seguranças) por um ou dois dias, mas há dúvidas sobre se se terão reconhecido.
Os outros três polícias que estavam com ele são:
— Tou Thao, que participou na detenção de Floyd e que já foi alvo de seis processos disciplinares por abuso policial (em cinco não foi alvo de nenhuma medida disciplinar, o outro continua aberto.
— J. Alexander Kueng, sem processos.
— e Thomas Lane, sem processos.
Os quatro foram demitidos logo na segunda-feira, horas depois dos acontecimentos. Chauvin acabou por ser detido na sexta-feira, depois de já terem começado os protestos nas ruas contra a violência policial e o racismo. Em conferência de imprensa, Mike Freeman, procurador de Hennepin, disse tratar-se da acusação mais rápida de sempre a um agente, sendo que não se exclui a hipótese de serem acusados os outros três envolvidos.
O próprio mayor de Minneapolis já disse publicamente que espera que o polícia que imobilizou Floyd seja condenado. “Ele estaria vivo hoje se fosse branco”, disse Jacob Frey, numa declaração que o coloca ao lado de quem está nas ruas por considerar que a polícia americana trata de forma diferente os negros. E que até já valeu críticas do próprio Donald Trump, por considerar que as suas palavras motivaram e apoiaram os protestos nas ruas.
No dia em que o polícia foi preso, Frey teve mesmo que decretar o recolher obrigatório. “O que começou por serem protestos pacíficos por George Floyd transformou-se em saques e em terrorismo doméstico na região. Precisamos ficar em casa esta noite”, disse numa publicação no Twitter. A noite, no entanto, não foi calma.
What started as largely peaceful protests for George Floyd have turned to outright looting and domestic terrorism in our region. We need you to stay home tonight.
— Mayor Jacob Frey (@MayorFrey) May 30, 2020
Como escalaram os protestos?
Os protestos contra a violência policial e o racismo começaram logo no dia a seguir morte de George Floyd, depois de na internet começarem a circular os vídeos que mostravam como Floyd morreu. Nessa mesma noite, centenas de manifestantes invadiram as ruas de Minneapolis, com alguns atos de vandalismo contra viaturas policias e com arremesso de objetos contra a esquadra onde os quatro polícias prestavam serviço.
Nos dias seguintes, os protestos continuaram, com as forças policiais a terem que usar gás lacrimogéneo e a dispararem balas de borracha contra a multidão. Houve também lojas incendiadas e começaram a assistir-se a várias pilhagens. Ao mesmo tempo noutras cidades iam-se organizando protestos semelhantes: Memphis, Louisville, Brunswick, por exemplo.
Em Los Angeles, já na quarta-feira, centenas de manifestantes concentraram-se no centro da cidade e acabaram por bloquear algumas ruas. A escalada de violência parece também ter sido impulsionada pelas posições públicas que emtretanto iam sendo tornadas públicas sobre o caso.
O governador do estado do Minnesota acabou por ativar a Guarda Nacional, uma força militar na reserva apenas chamada em situações de emergência, para fazer face ao vandalismo e aos incêndios provocados pelos manifestantes. “Vamos ser claros. A situação em Minneapolis já não é sobre a morte de George Floyd. É um ataque à sociedade civil para incutir medo”, disse o governador Tim Walz.
Para agravar a situação, como noticiou o The New York Times, o presidente norte-americano, Donald Trump, fez uma publicação considerada incendiária na rede social Twitter, precisamente no dia em que o agente que colocou o joelho no pescoço de Floyd foi preso. Chamou “bandidos” aos manifestantes, avisando que se começara o saque, começava o tiroteio. Criticou o mayor da cidade e ameaçou com as forças armadas. “Uma total falta de liderança”, atirou contra Jacob Frey. “Ou o mayor da esquerda radical, Jacob Frey, é muito fraco ou ajusta-se e coloca a cidade sob controle, ou enviarei a Guarda Nacional e concluímos o trabalho corretamente”, disse.
Se a morte de Floyd tinha sido um rastilho para os protestos, as declarações de Trump foram pólvora para o fim de semana que se seguiu, com protestos que acabaram por alastrar a 350 cidades e com os governadores dos estados obrigados a adotar medidas para travar a escalada de violência, com declarações de estado de emergência ou recolher obrigatório. E, também, o uso da Guarda Nacional de que Trump falou.
Porque é que uma semana após a morte os confrontos persistem?
Sete dias após a morte de Floyd, nas manifestações pacíficas marcadas para Nova Iorque, acabou por haver montras partidas perto do Rockefeller Center e de um dos armazéns da Macy. Em Filadélfia, a polícia teve que recorrer a armas não letais para dispersar os manifestantes antes da hora do recolher obrigatório. Já em Washington, nos arredores da Casa Branca, registaram-se vários confrontos e a hora do recolher foi antecipada para as 19h00. .
No domingo, Trump terá mesmo recolhido a um bunker, enquanto os protestos se intensificavam. Esta segunda-feira, depois de exigir que os governadores controlassem os seus estados, o Presidente decidiu discursar ao país, ameaçando colocar o Exército nas ruas se a violência continuasse e visitando uma igreja incendiada durante os protestos, enquanto os manifestantes eram dispersados com gás lacrimogéneo e balas de borracha. Mas condenou a morte de Floyd e garantiu que será feita justiça.
Já esta terça-feira, em St. Louis (Missouri), quatro polícias foram baleados durante os confrontos, mas estarão livres e perigo. Em Las Vegas, no Nevada, também um polícia foi baleado. Houve igualmente registo de ocorrências em Los Angeles (California) e em Atlanta (Geórgia).
Há já polícias a pedir um ponto final para tudo isto. Em Nashville, por exemplo, mais de 60 polícias da Guarda Nacional colocaram no chão os seus escudos contra os motins.
National Guard in Nashville put down their shield at the behest of activists and protestors. #GeorgeFloyd #nashville pic.twitter.com/apItQsweMJ
— Alex Kent (@AlexKentTN) June 2, 2020
Afinal destes confrontos resultaram quantos mortos, quantos feridos e quantas detenções?
Os números ainda não estão compilados, mas há já órgãos de comunicação social que, de acordo com os registos locais, estão a tentar fazer um balanço do que se passa nos Estados Unidos nestes sete dias. Segundo dados recolhidos pela Associated Press, até domingo tinham sido detidas 4.100 pessoas durante protestos nas várias cidades americanas. Mas estes números ficam aquém dos contabilizados pela CBS, relativamente a sexta, sábado e domingo — quando a violência escalou — e que foram divulgados esta terça-feira: 7.200 detidos em 43 cidades, 48 tiroteios (que podem eventualmente não estar diretamente relacionados com os protestos), 17 mortos e 64 armas apreendidas
Entre as vítimas mortais está um polícia, cuja morte foi anunciada sábado pelo Departamento de Segurança Interna — com ele foi baleado um outro polícia que estava à data em estado crítico, durante protestos em Oakland, Califórnia. O Departamento de Segurança Interna anunciou nesse dia que havia, então, vários polícias feridos, com “ossos partidos”, ou com ferimentos provocados por “cocktail molotov” na sequência dos protestos que acabaram em confrontos entre polícia e civis.
No domingo, o proprietário de um negócio em Louisville terá sido abatido pela polícia, com os polícias envolvidos a serem demitidos logo de seguida. Outros dois polícias foram demitidos em Atlanta, depois da forma como detiveram duas estudantes.
Durante o fim de semana, enquanto o governador do Minnesota dizia que no seu estado começava a acalmia, noutras cidades a polícia não tinha descanso. E a Guarda Nacional foi ativada em 23 estados, colocando na rua cerca de 17 mil militares.
Nas três cidades mais populosas do país, Nova Iorque, Los Angeles e Chicago foi onde aconteceram a maior parte das detenções. Mas também houve centenas de detidos em cidades como Phoenix, Richmond, Virginia e Dallas.
Onde foi declarado o estado de emergência?
Alguns governadores decidiram declarar o estado de emergência para poder dar mais poder à polícia para deter os manifestantes responsáveis por motins ou agressões. Noutros casos, como em Chicago, houve zonas encerradas e de acesso exclusivo a moradores ou trabalhadores.
O estado de calamidade ou de emergência foi declarado nos seguintes estados: Arizona, Texas, Virginia, Georgia, Missouri e Minnesota.
Onde foi declarado o recolher obrigatório?
Em 24 cidades foi mesmo declarado o recolher obrigatório e ninguém pode circular na rua durante a noite. Os militares da Guarda Nacional devem fazer esse controlo, no apoio que dão à polícia local. Nova Iorque só declarou o recolher obrigatório segunda-feira, depois de um agravamento da tensão durante o fim de semana.
- Arizona
- Califórnia: Los Angeles County, San Francisco, Beverly Hills, Santa Monica, West Hollywood, San Jose
- Colorado: Denver
- District of Columbia
- Florida: Miami, Orange County, Jacksonville, Orlando
Georgia: Atlanta - Illinois: Chicago
- Indiana: Indianapolis
- Kentucky: Louisville
- Michigan: Detroit
- Minnesota: Minneapolis, St. Paul
- Missouri: Kansas City
- New Jersey: Atlantic City
- Nova Iorque: Rochester
- Ohio: Cincinnati, Cleveland, Columbus, Dayton, Toledo
- Oregon: Portland, Eugene
- Pennsylvania: Philadelphia, Pittsburgh
- South Carolina: Charleston, Columbia, Myrtle Beach
- Tennessee: Nashville
- Texas: Dallas, San Antonio
- Utah: Salt Lake City
- Virginia: Richmond
- Washington: Seattle
- Wisconsin: Milwaukee, Madison
Como Trump tem lidado com o caso?
Donald Trump condenou a morte de Floyd, tal como tem condenado diariamente a violência dos protestos, chegando a acusar os manifestantes de serem todos “bandidos” ou de pertencerem a movimentos de extrema-esquerda. Disse também que por detrás das manifestações estaria o movimento “ANTIFA”. Nos últimos dias tem mesmo atacado os responsáveis das cidades onde se têm registado mais episódios de violência e já deixou o aviso: se eles não conseguirem resolver a escalada de violência, mandará o Exército para as ruas. “Se os estados ou cidades não tomarem as medidas necessárias para proteger a vida e a propriedade dos seus habitantes, vou chamar as Forças Armadas dos EUA para rapidamente resolver o problema por eles”.
“Sou o vosso presidente da lei e ordem. Vou mobilizar todos os recursos federais disponíveis, civis e militares, para pôr fim aos motins e pilhagens, para acabar com a destruição e os fogos postos e para proteger os direitos dos americanos cumpridores da lei”, declarou na noite de segunda-feira, na mesma altura em que foi fotografado com uma bíblia na mão, quando visitou uma igreja incendiada por manifestantes.
Esta terça-feira, no Twitter — a rede social que mais utiliza para comunicar, ainda que agora estejam em ‘guerra aberta’ — Trump disse que já fez mais pelos negros do que qualquer presidente desde Abraham Lincoln, lembrando todas as medidas que tomou.
My Admin has done more for the Black Community than any President since Abraham Lincoln. Passed Opportunity Zones with @SenatorTimScott, guaranteed funding for HBCU’s, School Choice, passed Criminal Justice Reform, lowest Black unemployment, poverty, and crime rates in history…
— Donald J. Trump (@realDonaldTrump) June 2, 2020