Como David Neeleman terá sido um dos únicos empresário da aviação a conseguir ganhar algum dinheiro com uma companhia aérea, numa altura em que este era o pior negócio do mundo — durante a pandemia. Este foi um dos enigmas que mais debate levantou na comissão parlamentar de inquérito (CPI) à TAP. E que não ficou esclarecido na proposta de relatório apresentada pela socialista Ana Paula Bernardo.
Se numa primeira ronda de audições, a maioria dos inquiridos afirmou desconhecer o racional do pagamento de 55 milhões de euros ao empresário americano em julho de 2020 — chegando mesmo a questionar a necessidade desse pagamento, como Lacerda Machado — os protagonistas mais envolvidos na transação responderam, mas tiveram algumas dificuldades em explicar a necessidade de pagamento e, sobretudo, que parcelas e racional estão dentro dos 55 milhões de euros.
Uma das justificações dadas pelos membros do Governo envolvidos na transação — os ex-ministros Pedro Nuno Santos e João Leão e o ex-secretário de Estado Miguel Cruz — apontou na direção do parecer emitido pela consultora jurídica da Parpública, a VdA, segundo o qual uma solução de retoma da TAP sem o acordo prévio de David Neeleman teria grande probabilidade de ser disputada judicialmente e com risco de perda para o Estado. O ex-ministro das Infraestruturas afirmou:
“A informação que tínhamos [a leitura da sociedade de advogados VdA] era no sentido de que um conflito judicial com Neeleman podia garantir a Neeleman ganhos que decorriam dos direitos de saída” e o direito às prestações acessórias pelo valor nominal (224 milhões de euros).
“Para nós era essencial um auxílio de emergência, senão, a TAP fechava”, afirmou o ex-ministro na CPI. Ou seja, era essencial tirar Neeleman da TAP e retomar o controlo da companhia de forma a avançar com a ajuda pública nos termos que o Governo queria, o que passava pelo direito de intervir na gestão privada para acautelar como o dinheiro público seria gasto. Isso era uma linha vermelha para o empresário americano.
A leitura feita pelos advogados era a de que, “fosse numa situação de bloqueio, fosse na passagem da empresa a pública, havia um risco de o Estado ter de pagar um valor bastante superior àquele que acabámos por acordar com o privado”, disse o ex-ministro das Infraestruturas.
Questionado sobre se esta consequência decorria do acordo de 2017, Pedro Nuno não afastou a hipótese, mas notou que não era claro que o Estado não teria de pagar nada a Neeleman, insistindo: “Qualquer processo de litigância era a pior coisa que podia acontecer à TAP, ainda para mais quando era preciso negociar o plano de reestruturação com Bruxelas”.
Mas acabou também por reconhecer que, depois da privatização de 2015, Neeleman ficou dono da companhia e perante um facto consumado, a negociação com os privados para recuperar “o controlo estratégico” da TAP foi “dificílima” e teve consequências porque o proprietário exigiu contrapartidas. E é nessa base que o acordo parassocial é construído, considerando ainda “natural que os privados tivessem exigido condições”.
E exigiram: Nas respostas dadas à CPI, o empresário americano foi claríssimo.
Depois da reversão parcial da privatização de 2015, pela qual o Estado passa a ter 50% da TAP e reforça a presença no conselho de administração com não executivos, “queríamos proteger-nos de uma eventual intenção de o Governo voltar a querer romper um compromisso assumido e tornar a empresa pública. Procurámos proteger a nossa posição no acordo parassocial que a Atlantic Gateway celebrou com a Parpública”.
Neeleman diz que “ficou estabelecido que, caso o Estado transformasse a TAP em empresa pública, isso consubstanciaria um incumprimento grave e que haveria direito a uma penalidade”. O custo da penalidade para o Estado estava definido no dito acordo de 2017 assinado pelos socialistas e chegou a ser mencionado por vários intervenientes, como tendo uma baliza mínima equivalente à capitalização colocada por Neeleman na TAP, os tais 224 milhões de euros.
“A informação que tínhamos era no sentido de que um conflito judicial com Neeleman podia garantir a Neeleman ganhos que decorriam dos direitos de saída” e o direito às prestações acessórias pelo valor nominal, referiu Pedro Nuno Santos. Também Miguel Cruz mencionou o valor nominal das prestações que teria de ser devolvido e que serviu de baliza máxima ao processo negocial que se realizou com o empresário americano.
A explicitação de que o critério de valorização das prestações a devolver seria o valor nominal ou contabilístico fez toda a diferença na interpretação jurídica do escritório que aconselhou o lado do Estado nesta negociação. À luz do acordo parassocial, a tomada de controlo da TAP pelo Estado sem o acordo prévio deste acionista privado daria a David Neeleman uma opção de venda da sua posição na companhia com dois preços sinalizados: o das ações que teria valor de mercado e o das prestações acessórias que teria valor contabilístico.
Esta nuance terá sido estabelecida com um propósito de salvaguardar que o empresário americano receberia no mínimo tudo o que tinha injetado (ainda que com fundos de terceiros) se perdesse o controlo da gestão para o Estado. E fez toda a diferença em 2020 nos piores meses da pandemia, em que o valor de mercado da TAP (e das suas prestações acessórias) seria zero ou muito baixo dada a crise profunda do setor, mas em que o valor contabilístico era o que estava inscrito nas contas para as prestações acessórias. Foi esse o motivo que levou a VdA a aconselhar o Estado a negociar, apesar dessa negociação ter decorrido em paralelo com a ameaça da nacionalização, um caminho que esteve em cima da mesa até à obtenção de um acordo com um diploma pronto a ir a Conselho de Ministros.
“Estávamos a ser assessorados por um escritório de advogados. Havia uma avaliação dos riscos que nos levou a optar por uma negociação. Não pagámos zero como desejávamos, mas pagámos menos do que o privado pediu”, referiu Pedro Nuno Santos.
João Leão revelou que Neeleman começou por pedir valores da ordem dos 200 milhões de euros e que a certa altura, também, queria maior proteção para os 90 milhões de euros de obrigações que colocou (via companhia brasileira Azul). “Havia exigências dos acionistas privados que eram muito superiores, e o Estado teve de fazer uma negociação muito exigente, com o apoio da sociedade de advogados, para que o valor ficasse dentro de um nível razoável”.
Pedro Nuno Santos até percebe porque se repete a pergunta dos 55 milhões. “Querem saber o que é o quê nos 55 milhões de euros”. É o valor em que as partes se encontraram dentro de algumas balizas”. Os 55 milhões resultam de uma negociação que permitiu ao Estado comprar ações, direitos económicos e prestações acessórias e evitar disputa judicial, explicita.
João Leão destacou três vantagens do acordo:
- O valor potencial associado às prestações acessórias era superior ao valor consensualizado;
- David Neeleman abdicou de qualquer potencial litigância face ao Estado, facilitando a negociação do plano de reestruturação com a Comissão por não existir um litígio com o principal acionista. (O empresário diz que aceitou negociar porque quis evitar um processo jurídico complexo. O diferendo seria avaliado em tribunal arbitral);
- Travou custos reputacionais para o Estado ao evitar uma nacionalização forçada.
Estado teria de pagar se não fosse o acordo de 2017?
A necessidade deste pagamento dos 55 milhões de euros foi contestada por pelo menos duas das personalidades ouvidas na comissão de inquérito, mas com argumentação distinta. Uma delas foi negociadora do acordo parassocial de 2017 que reviu o equilíbrio acionista e financeiro na empresa — Diogo Lacerda Machado defendeu que este acordo não estaria em vigor no quadro da pandemia, “dada a alteração tão radical das circunstâncias que, no meu entendimento, levou a que todo o capital até então investido na TAP estivesse perdido”.
Esta leitura foi contrariada por Miguel Cruz, o secretário de Estado do Tesouro que viria a liderar do lado do Estado o processo de 2020.
“Não concordo com a tese de que o acordo parassocial não tinha valor jurídico”. Apesar de não ser jurista, lembra que há vários exemplos de como durante a Covid as situações excecionais são sempre difíceis de enquadrar. “Não se podem escolher as cláusulas que valem e as que não valem. Mesmo no cenário limite de uma nacionalização, o” Estado ficaria ligado ao acordo parassocial que obrigava a devolver a Neeleman as prestações acessórias (227 milhões de dólares ou 224 milhões de euros), o valor nominal das ações, acrescido de 20%”. E insiste. “Não havia tempo, nem condições para qualquer tipo de litigância”.
Outro protagonista a questionar a aquisição de 2020 foi Sérgio Monteiro. O ex-secretário de Estado das Obras Públicas, que esteve por trás do processo de privatização de 2015, defendeu que os contratos assinados nessa data, e que foram alterados pelo Executivo socialista em 2017, teriam permitido uma ajuda pública na linha da dada por outros países, sob a forma de garantia estatal a empréstimos obtidos em mercado. O recurso às garantias estatais manteria o acionista do setor na TAP, “não o ilibando de responsabilidades”. Para o antigo governante do PSD “anormal e único foi pagar a um acionista privado” para ele se livrar do problema.
Este cenário proposto pela gestão privada da TAP foi afastado, segundo os ex-governantes socialistas, por duas razões: a situação financeira da TAP era muito mais frágil do que a das outras empresas que recorreram a um mecanismo excecional de ajuda não aplicável neste caso. A TAP precisava de mais dinheiro do que estaria disponível por esta via.
Sérgio Monteiro argumentou também que caso se tivesse optado por uma intervenção mais intrusiva que envolvesse a tomada de capital não teria havido necessidade de pagar o montante de 55 milhões de euros a David Neeleman. Segundo Sérgio Monteiro, a mera execução dos contratos assinados com a Atlantic Gateway em 2015 permitia que o Estado exercesse o direito potestativo de comprar a empresa por 10 milhões de euros (a pagar à holding de Neeleman e Pedrosa), ficando com toda a capitalização colocada pelos privados e os ativos da empresa”.
Questionado sobre a relação entre o pagamento dos 55 milhões de euros e o acordo parassocial assinado pelos socialistas, Pedro Nuno Santos reconheceu que essa foi a interpretação jurídica do acordo parassocial. Há várias interpretações, mas o Estado segue os pareceres que contrata.
No entanto, acrescenta, David Neeleman era o dono da empresa por causa da privatização anterior (feita por Passos Coelho). “E é perante este facto que o Governo vai fazer uma negociação muito difícil porque a empresa era de David Neeleman” que, assinala, “não estava obrigado a fazer nada”. O aconselhamento jurídico dizia que o Estado se arriscava a pagar, pelo menos, as prestações acessórias colocadas pelo empresário — 227 milhões de euros. “Havia até o risco de pagar um valor bastante superior”.
Não sendo evidente que, sem o acordo parassocial de 2017 o Estado não teria de pagar a Neeleman (ou pagaria 10 milhões de euros a dividir por Humberto Pedrosa), Pedro Nuno Santos insistiu na tecla: “Qualquer processo de litigância era a pior coisa que podia acontecer à TAP, ainda para mais quando era preciso negociar o plano de reestruturação com Bruxelas”, concluiu.
O seu antecessor na pasta — o ministro que lidou diretamente com a negociação do acordo de 2016/7 — não conhece a negociação feita três anos depois, mas manifestou algumas “certezas” que contrariam a sua inevitabilidade. A primeira é a de “que, se o privado tivesse direito a sair com 224 milhões de euros (a totalidade da recapitalização privada), não sairia com 55 milhões”.
O ex-ministro confirmou que a possibilidade de Neeleman recuperar as prestações acessórias colocadas no TAP estava no acordo parassocial assinado com o Estado na recompra de 2017, mas acrescentou que os passos previstos para essa devolução não foram dados. Daí que conteste a ligação dessa situação ao pagamento de 55 milhões feito em 2020 pelo Estado ao empresário. Citando o parecer jurídico de 2015 da mesma VdA (que alertou em 2020 o Estado para o elevado risco de litigância), afirmou que se Neeleman recebesse o dinheiro colocado na TAP antes do fim do fornecimento do prazo para a entrega dos 53 aviões, que era de 2025, teria de o entregar à Airbus, o fornecedor dos aviões.
“Não estou convencido de que Neeleman tenha feito esse acordo para entregar os 55 milhões à Airbus.”
Pelo contrário, Pedro Marques está convencido que essa cláusula não foi acionada porque implicaria tomar vários passos prévios que não foram feitos. E porque o dinheiro teria de ser entregue à Airbus e Pedro Marques não tem notícia de que isso tenha acontecido.
Segundo os testemunhos ouvidos na CPI, as prestações acessórias nunca saíram da TAP e foram absorvidas pelas operações de recapitalização da empresa no final de 2021. O dinheiro de Neeleman foi pago pela Direção-Geral do Tesouro.
Na abordagem ao tema dos 55 milhões de euros, a proposta de relatório da comissão parlamentar de inquérito, conhecida esta semana, conclui que em 2020 e perante a falta de acordo dos administradores indicados pelos privados à proposta de ajuda do Estado, restavam duas opões: a nacionalização e um acordo com os acionistas privadas.
Na sequência de uma negociação difícil, o Estado teve de pagar o valor de 55 milhões de euros de euros a David Neeleman. Um pagamento, conclui a relatora Ana Paula Bernardo, que decorreu de um acordo do qual o privado aceitou abdicar da litigância futura. O documento estabelece uma ligação entre este pagamento e um acordo entre Estado e privados, mas remete para 2015 e não 2017, embora sem explicar porquê. Diz apenas que a “componente relativa às prestações acessórias resulta do direito originário adquirido em 2015 com a assinatura da venda direta e do acordo de estabilidade económica e financeira que nesta dimensão não sofreu alterações no acordo parassocial de 2017”.
Reconhece que a existência de uma obrigação de pagar a David Neeleman “não é consensual”, ligando este tema a outro assunto quente que ficou por resolver (sem conclusões) na proposta de relatório, ao assinalar o “contexto de alguma incerteza jurídica sobre os termos em que foi realizada a privatização de 2015, com recurso ao mecanismo Fundos Airbus”.