O Estado teria tido uma alternativa menos cara para intervir na TAP durante a pandemia se estivessem ainda em vigor os contratos assinados em 2015 na privatização conduzida pelo Governo do PSD/CDS, e parcialmente revertida, afirmou Sérgio Monteiro.

O então secretário de Estado das Obras Públicas iniciou a sua inquirição na comissão parlamentar de inquérito à gestão pública da TAP com a apresentação desta alternativa que estaria em linha, diz, com as “intervenções mais normais” feitas por outros países nas suas companhias aéreas e que passaram por emissão de garantias a empréstimos obtidos junto do setor financeiro. Uma solução que, lembra Sérgio Monteiro, chegou a ser proposta pela administração privada da TAP.

“Os contratos de 2015 permitiam uma intervenção deste género, mediante contra-garantias dadas ao Estado que podiam ser os ativos da TAP ou partes do seu capital (se a privatização de 2015 tivesse prosseguido, o Estado já não estaria no capital). Ainda que optasse por uma intervenção mais intrusiva que envolvesse a tomada de capital, não teria havido necessidade de pagar a David Neeleman para sair”.

Segundo Sérgio Monteiro, a mera execução dos contratos assinados com a Atlantic Gateway em 2015 permitia que o Estado exercesse o direito potestativo de comprar a empresa por 10 milhões de euros (a pagar à holding de Neeleman e Pedrosa), ficando com toda a capitalização colocada pelos privados e os ativos da empresa”.

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O ex-secretário de Estado de Passos Coelho remete agora para a auditoria “notável” do Tribunal de Contas às duas privatizações da TAP – e que esta quarta-feira foi amplamente citada para confrontar o ex-ministro do PS, Pedro Marques, com o resultado da recompra — a qual expõe os riscos para o Estado dos acordos de recomposição acionista de 2017, assinados pelo primeiro Governo de António Costa. “A realidade mostrou que esses riscos de materializaram”.

Segundo Sérgio Monteiro, “estamos a pagar a fatura em impostos do dinheiro injetado na TAP” que, argumenta, deve incluir os encargos com juros do endividamento adicional que o Estado teve de contrair para colocar os 3,2 mil milhões de euros na empresa. É uma fatura que estima em 75 milhões de euros que o leva a concluir: “A TAP custa-nos mais de 200 mil euros por dia só em juros”.

Ainda de acordo com Sérgio Monteiro, o recurso às garantias estatais manteria o acionista do setor na TAP, “não o ilibando de responsabilidades”. E diz que “anormal e único foi pagar a um acionista privado” para ele se livrar do problema.

Sobre o atual momento, o ex-governante que atualmente trabalha num fundo de investimento virado para o setor das infraestruturas, defendeu que é mais fácil privatizar hoje a TAP, do que quando o fez em 2015, Não tem o problema da manutenção no Brasil e com 686 milhões de euros da ajuda pública por receber. Sérgio Monteiro espera que o Governo seja bem sucedido e que o encaixe sirva para abater à dívida e defende que se trata de um processo fundamental para que a TAP tenha as mesmas condições que outras empresas sem a “interferência política nefasta”.

“Hoje não se privatiza por necessidade. Hoje a TAP está adequadamente capitalizada. Privatiza-se porque se reconhece que é o melhor para o seu desenvolvimento futuro”.

Fornecedores “funcionavam como bancos da TAP”

O ex-secretário de Estado quis desmistificar a ideia de que a TAP foi privatizada “à pressa” a 12 de novembro, e traçou uma linha do tempo desse processo. Lembrou que o decreto lei da privatização foi aprovado a 24 dezembro de 2014, e que já tinha sido antecedido pelo grupo de trabalho composto por nove dos 12 sindicatos da TAP, que participaram na definição dos termos do caderno de encargos, que é aprovado a 20 janeiro 2015. Após entregues as avaliações das consultoras PwC e Delloite até março, a 15 de maio foram entregues as propostas não vinculativas, e a 21 do mesmo mês tiveram início as negociações com dois dos três concorrentes, para que entregassem as propostas vinculativas.

A de 11 junho foi assinado o acordo de venda direta e o acordo de compromissos estratégicos e no dia seguinte foi selecionada a Atlantic Gateway para participar na fase exclusiva de negociações. A 24 junho é assinado o acordo de venda direta e de compromissos estratégicos, que estava sujeito a condições precedentes. A decisão de não oposição por parte da DG Comp chegou a 1 de outubro e foram pedidos esclarecimentos à Atlantic Gateway sobre o plano de capitalização, que são respondidos por último a 12 de novembro. A 23 outubro há uma nova resolução do conselho de ministros para um novo acordo relativo à estabilidade económico financeira da TAP. E no tal dia 12 de novembro, em que a venda é assinada, além da resposta da AG também foram obtidos os pareceres que faltavam, um da VdA e outro da PwC, e é adotada a resolução final do conselho de ministros que verifica as condições aprovadas em junho e que determina que a Parpública celebre o acordo de conclusão da venda.

Essa privatização só avançou em dezembro de 2014 porque o Governo precisou de “algum tempo” para recuperar a imagem da companhia desde a privatização falhada de 2012, e que tinha aumentado o volume de negócios da companhia. “No final 2014 considerámos que havia informação nova que determinaria que uma nova tentativa teria mais sucesso, os avaliadores financeiros concluíram que podíamos avançar novamente”.

Sérgio Monteiro admite que a privatização da TAP estava inscrita no memorando de entendimento com a troika, e era uma obrigação do Estado, mas também era uma necessidade da empresa porque a TAP estava em desvantagem competitiva com as congéneres, que podiam capitalizar-se junto de privados e a TAP, por ser pública, não tinha essa possibilidade.

A situação de tesouraria da TAP antes da privatização era “desafiante”, notou Sérgio Monteiro, por estar exposta a aspetos que não tinha tesouraria para controlar, além de que havia uma “crescente desconfiança nos credores sobre a sua capacidade de resolver compromissos sem uma injeção de capital”.

Agências de viagens, fornecedores, prestadores de serviços básicos como combustível “funcionavam como bancos da TAP, aceitavam receber mais tarde na expectativa que a TAP tivesse uma capitalização adequada”. Aliás, ressalvou, a primeira condição do caderno de encargos é uma adequada capitalização da companhia, já que um acionista privado não teria limitações para o fazer, desde que tivesse meios.

Sobre a suposta privatização “à pressa”, Sérgio Monteiro diz ainda estar convicto que mesmo que o Governo PSD/CDS tivesse ficado em funções, a privatização teria ocorrido no mesmo dia.

Carta conforto foi “imprescindível”

Confrontado com a muito falada “carta conforto”, que Pedro Marques diz ter colocado o Estado em risco, e que Miguel Pinto Luz afirma não ter existido, Sérgio Monteiro tem a sua versão, por ter participado “em parte da história”.

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“A carta clarifica aos bancos a posição que o Estado terá caso haja um incumprimento das mutuárias relativamente à dívida que estava contraída. O Estado não diz ‘eu pago’, ou ‘substituo-me no pagamento’. Não é uma garantia do Estado”, justificou. Era uma carta, segundo Sérgio Monteiro, que diz que caso haja um incumprimento, o Estado tinha direito de intervir e iria intervir, retomando o controlo da TAP e passando a ser novamente acionista único.

“A carta clarifica o que o Estado fará perante um direito que tem. Tem o direito potestativo. Diz que ‘eu Estado, através da Parpública, tenho direito potestativo. Exercerei esse direito caso haja incumprimento”. Na prática, o Estado passou a ter o dever de exercer um direito caso a TAP falhasse algum pagamento decorrente dos acordos financeiros que existiam naquela época, admitiu.

Mas a obrigação era contingente de um determinado facto ocorrer, acrescentou. E o Estado tinha mecanismos para controlar se esse facto ocorria ou não. Ou seja, se havia incumprimento. “Não era para a dívida toda, ou que a TAP estaria espatifada, porque havia mecanismos de controlo”.

Que passavam, explicou Sérgio Monteiro, pela monitorização da situação financeira da TAP, prevista no acordo de estabilidade económico financeira. Por exemplo, a empresa tinha a obrigação de depositar um montante 30 dias antes de a prestação ser devida, e “se a mutuária estivesse em dificuldade não tinha condições de depositar esse dinheiro”. Esse seria o primeiro sinal.

Além do controlo mensal, havia uma obrigação no acordo que dizia que a empresa estava obrigada a manter os capitais próprios consolidados da TAP SGPS no valor que tinha no dia da privatização, acrescida de 35 milhões de euros. Além disso, a dívida teria de ser 25 milhões de euros menor do que antes da privatização. Se o Estado exercesse o seu direito potestativo, encontraria este cenário, detalha. “No direito potestativo estava previsto que o Estado ficava com uma TAP melhor que a que tinha vendido”. Esta monitorização, acrescentou, “duraria muitos anos”, os necessários para se extinguirem as obrigações que davam origem ao direito potestativo.

Sem as cartas conforto, os bancos podiam ter bloqueado a privatização, admite Sérgio Monteiro. “A carta foi imprescindível”.