Depois de anos a contestarem nos tribunas o pagamento da CESE (contribuição extraordinária sobre o setor energético) e terem acumulado litígios de centenas de milhões de euros, as empresas de energia têm um trunfo na guerra contra a taxa introduzida no Governo de Passos Coelho como temporário, mas que se tem eternizado com os socialistas no poder. Este trunfo jurídico foi dado pelo Tribunal Constitucional e pode ser jogado por energéticas que não atuam no setor elétrico, mas que pagam CESE como a Galp e a empresa de distribuição de gás que foi vendida a investidores internacionais.
E tudo por causa de uma mudança de política energética, bem intencionada, que o primeiro Governo de António Costa adotou na sequência de um acordo com a EDP para reduzir a dívida tarifária da eletricidade, pelo qual a totalidade da receita cobrada na CESE passou a ser transferida para o sistema elétrico. Esta decisão de 2018 abriu caminho à retoma do pagamento de contribuições cobradas à elétrica (que tinha suspendido a sua liquidação).
A receita anual da CESE, cerca de 120 milhões de euros, permitiu baixar o preço da eletricidade em 2019 e tem todos os anos contribuído para reduzir a dívida tarifária. Mas, ao contrário do compromisso então assumido com a EDP, o valor cobrado não tem diminuído e a própria taxa (que incide sobre os ativos) tem sido renovada todos os anos. Em 2022 e 2023, aplica-se cumulativamente com a taxa europeia sobre lucros inesperados aplicada apenas à Galp em Portugal.
Por outro lado, a alteração do destino da verba, que antes era uma receita do Estado, foi o principal argumento para o Tribunal Constitucional mudar de posição sobre a CESE que passou a ser considerada inconstitucional quando aplicada a empresas fora do setor elétrico.
Ao contrário de outras empresas, como a REN e numa fase inicial a EDP, que pagaram a CESE mas contestaram judicialmente, a Galp nunca pagou esta contribuição desde 2014 e acumula um litígio contra o fisco de mais de 300 milhões de euros. Uma parte da CESE por cobrar diz respeito às empresas de distribuição regional de gás natural que a Galp vendeu um consórcio formado pela Allianz, Marubeni e Toho Gas e que constitui hoje o grupo Floene. Foi uma distribuidora deste grupo que conseguiu esta viragem histórica na guerra jurídica das empresas de energia contra o Estado e contra o Fisco. A Floene estima que a empresa pode recuperar 50 milhões de euros da CESE paga desde 2018, afirmou o seu presidente em declarações ao jornal Expresso.
O fundamento invocado no acórdão de março dará força a todas as contestações apresentadas por empresas de transporte e armazenamento de gás natural. E, acredita Filipe de Vasconcelos Fernandes, assistente na Faculdade de Direito de Lisboa e consultor sénior na VdA, a outras empresas fora do setor elétrico, nomeadamente a Galp e a sua atividade de refinação que foi sujeita a esta contribuição.
De constitucional e inconstitucional
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Neste acórdão, o artigo em causa é o 13.º da Constituição do qual derivam os princípios estruturantes dos tributos (impostos, taxas, contribuições financeiras), explica o professor de direito e jurista da VdA, Filipe de Vasconcelos Fernandes.
“No caso dos impostos, que repousam sobre o princípio da capacidade contributiva, assim sucede; de igual forma, no caso de taxas e contribuições financeiras, o princípio em causa é a equivalência. Sucede que, no caso das contribuições financeiras (categoria a que o Tribunal Constitucional reconduziu a CESE, desde o Acórdão n.º 7/2019), o referido princípio da equivalência expressa-se numa ótica de equivalência de grupo, à luz do qual é suficiente presumir a existência de certos benefícios ou utilidades para imputar certo encargo fiscal ao sujeito passivo”.
O que o Constitucional fez, no Acórdão n.º 101/2023, foi essencialmente dizer que o nexo de equivalência de grupo típico das contribuições financeiras deixou de poder dar-se por verificado após 2018, para as concessionárias das atividades de transporte, de distribuição ou de armazenamento subterrâneo de gás natural. E decidiu-o justamente por entender que ao subsetor do gás natural não podem ser impostos encargos respeitantes a um problema específico do subsetor da energia elétrica.
Em suma, apesar de, em tese, a CESE repousar sobre benefícios presumidos para os respetivos sujeitos passivos (ou sobre danos que lhe sejam presumidamente atribuídos), esse caráter presumido não pode ir tão longe ao ponto de admitir toda e qualquer presunção, cedendo – como foi o caso – sempre que não possa sequer estabelecer-se esse nexo relacional, em função das regras de funcionamento de cada subsetor do sistema energético nacional (neste caso, e novamente, o gás).
Ao violar o princípio da equivalência, o artigo da Constituição que deve invocar-se, conforme inicialmente explico, é justamente o 13.º.
No ano passado, a Galp constituiu uma provisão nas contas de 380 milhões de euros para fazer face a eventuais responsabilidades relativas à cobrança desta contribuição que tem vindo a contestar judicialmente desde 2014. As contas de 2022 têm ainda uma provisão de 14,7 milhões de euros para compensar a compradora da Galp Gás Natural Distribuição (empresa que tem agora a designação de Floene) pela eventual necessidade de esta pagar contribuições passadas que foram impugnadas, mas o montante reduziu-se substancialmente face aos 80 milhões de euros registados em 2021. A Galp já pagou entretanto três milhões de euros da CESE, relativa aos anos de 2014 e 2016, presumivelmente na sequência de processos com um desfecho favorável que não são já suscetíveis de recurso.
A própria Galp, que não respondeu às perguntas do Observador, indica no seu relatório e contas de 2022 que está a analisar o alcance da sentença — decisão favorável com retroativos a 2018 no que respeita ao litígio com a Autoridade Tributária (AT) — para outras entidades do grupo Floene e do próprio grupo Galp.
Até agora, o Constitucional tinha validado a CESE num acórdão de 2019 suscitado por uma ação colocada pela REN (Redes Energéticas Nacionais) que tinha perdido o processo contra o Fisco no Centro de Arbitragem Tributária. A Galp tem seguido um caminho mais longo, que começou pela reclamação graciosa junto da própria AT das primeiras CESE, seguindo para a impugnação nos tribunais administrativos. Todas as decisões favoráveis às empresas obtidas neste circuito têm acabado por cair no Supremo Tribunal Administrativo porque invocam como fundamento a inconstitucionalidade e esbarram na decisão de 2019.
Para Filipe de Vasconcelos Fernandes, jurista especializado na CESE, este acórdão de 2023 vai ter consequências em outros processos. Em primeiro lugar, nos que foram apresentados por empresas do mesmo setor (transporte e distribuição de gás), mas também para entidades que não fazem parte do setor elétrico, como é o caso da refinação. A REN também poderá vir a tirar partido do acórdão para contrariar a CESE cobrada sobre os ativos de transporte e armazenamento de gás.
Ainda dentro do setor elétrico, defende o jurista, haverá um reforço dos argumentos para a impugnação em casos específicos como o das produtoras renováveis que perderam a isenção do pagamento de CESE em 2019, no caso de terem contratos com tarifas feed-in (sobretudo eólicas), ou seja, com tarifas garantidas num prazo longo.
Contribuições até 2018 e CESE sobre os contratos de gás ficam na mesma
A decisão do Constitucional, considera o jurista, fortalece a impugnação judicial das liquidações da CESE cobradas a partir de 2018. Isto porque o acórdão só colocou fora do sistema elétrico as contribuições pagas por outros setores a partir dessa data quando a alteração legislativa transferiu a totalidade da receita para o défice tarifário da eletricidade. Até então, a CESE era vista pelo Constitucional como uma contribuição financeira, comparável a taxas cobradas pelas entidades reguladoras, explica o jurista. O acórdão veio mudar a natureza da CESE para algo comparável a um imposto, ainda que essa classificação não fique explícita.
No entanto, Filipe de Vasconcelos Fernandes, que representa algumas empresas neste setor, está “moderadamente otimista “face aos resultados destas contestações. Se, por um lado, é “expectável que o Tribunal Constitucional venha a ser inundado com processos a invocar a inconstitucionalidade da CESE”, o jurista admite que os juízes podem tender a fazer “uma leitura restritiva” e retrair-se de estender os fundamentos do acórdão de março a outros setores que não os diretamente visados no mesmo — transporte e distribuição de gás natural.
Para além de excluir todas as CESE cobradas até 2018, nem todas as contribuições extraordinárias aplicadas ao setor energético fora da eletricidade podem vir a encaixar na argumentação dos juízes do Constitucional. De fora fica a CESE II, uma contribuição criada em 2015 sobre os contratos de abastecimento de gás natural da Galp, e cuja receita tem como destino o sistema do gás natural.
Para Filipe de Vasconcelos Fernandes, o “Tribunal parece querer justificar que, no caso da CESE II, continuaria a existir legitimidade para a cobrança da CESE, atendendo ao facto de os contratos de take-or-pay estarem (supostamente) associados a desequilíbrios sistémicos no contexto do Sistema Nacional de Gás Natural (SNGN). Assim, pelo menos à luz deste Acórdão – e atendendo a que são casos totalmente distintos – concordo que a respetiva argumentação de base dificilmente pode ser transponível para o caso da CESE II, excetuando o caso de continuar a estar em causa (também aqui) o subsetor do gás, algo que eventualmente poderá relevar em análises futuras em torno da CESE II (que, acrescente-se, se encontra por escrutinar)”.
Da provisão constituída pela Galp para fazer face à fatura acumulada da CESE , a principal fatia de 247 milhões de euros é respeitante à CESE II. Por outro lado, dos 133 milhões de provisão relativos à CESE original, só a contestação dos montantes cobrados a partir de 2018 ganhou um trunfo jurídico com este acórdão.