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Extraordinárias? Sim. Solidárias? Talvez. Temporárias? Nem por isso. Já são cobradas cinco contribuições com natureza de impostos que atingem setores específicos da economia. Estas contribuições nasceram como extraordinárias e temporárias, mas têm-se eternizado no tempo. E podem vir aí mais três. Uma tem tido autorizações legislativas aprovadas em todos os orçamentos desde 2019, mas que por razões misteriosas nunca teve legislação produzida — a contribuição especial para a conservação dos recursos florestais volta a ter estar prevista na proposta orçamental para 2023.

Outra vem por imposição da Comissão Europeia — a taxa de 33% sobre os lucros inesperados do petróleo e do gás — e uma terceira por inspiração de António Costa que, numa resposta ao PCP no debate na generalidade da proposta de Orçamento do Estado, fez a revelação.

“A proposta de lei para tributação dos lucros não esperados vai abranger o conjunto de empresas que não são só do setor energético, mas são também do setor da distribuição que devem pagar aqueles lucros que estão a ser injustificadamente por via desta crise crise da inflação”.

Dois dias antes do anúncio de António Costa — do qual mais nada se sabe — o fiscalista Rogério Fernandes Ferreira (em cuja apresentação foi inspirada a fase inicial deste artigo) fazia um balanço sobre as contribuições extraordinárias criadas ao longo da última década. Numa conferência sobre o Orçamento do Estado, o sócio principal da Rogério Fernandes Ferreira recordou também as dúvidas jurídicas que estes “quase impostos” geram e o elevado grau de litigância que existe entre os cobrados e o cobrador, o Estado. Um cenário que, acredita, irá repetir-se com as contribuições anunciadas.

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Mas apesar de serem alvos de muitas contestações judiciais, a lentidão dos tribunais administrativos, por um lado, e os acórdãos do Tribunal Constitucional para ações da banca e da energia acabam por enfraquecer a posição das empresas chamadas a pagar.

O fiscalista levantou reservas sobre a constitucionalidade destes tributos considerando que há setores com argumentos para se queixarem de confisco em vez de tributação de lucros. Ainda para mais, num país onde as empresas que pagam impostos têm já das taxas de IRC nominal mais altas da Europa, agravadas pelas derramadas estadual e municipal. E aponta também para a falta de transparência, referindo que os orçamentos muitas vezes não identificam a receita prevista com cada uma destas contribuições. A proposta para 2023 indica apenas uma estimativa geral para algumas delas, incluindo o adicional ao IMI que é pago pelos proprietários, contabilizando-as num total de 526 milhões de euros.

A reforçar o conceito temporário está a circunstância de estas contribuições ditas extraordinárias terem a validade de apenas um ano, tendo de ser renovadas a cada Orçamento do Estado sob a pena de não produzirem efeitos. Na sequência do chumbo do OE para 2022 em outubro do ano passado, o Governo teve de aprovar legislação autónoma para evitar que estas contribuições caíssem. No ano passado, e de acordo com a conta geral do Estado, o encaixe foi de quase 400 milhões de euros, mas especialmente focado em dois setores.

Mas afinal quem paga estas contribuições (quando paga….), quanto vale cada uma e para que serve o seu produto.

A contribuição que nasceu para compensar os regastes de bancos

A banca foi o primeiro setor a ser chamado a contribuir em 2011 no rescaldo da crise financeira e das primeiras injeções públicas feitas para salvar bancos. A contribuição extraordinária sobre o setor bancário foi criada no segundo governo de José Sócrates com intuito de por os bancos a reembolsar o esforço financeiro do Estado. Hoje, a contribuição sobre a banca não é vista como temporária já que é a grande receita do Fundo de Resolução e o seu objetivo é permitir a esta instituição financiar os processos de resolução dos bancos e reembolsar os empréstimos concedidos pelo Estado para o mesmo fim.

Várias instituições bancárias foram para tribunal tentar impugnar a legalidade desta taxa que, argumentavam, era inconstitucional por ser retroativa. Mas uma decisão de 2017 do Tribunal Administrativo do Funchal retirou força a esta tese.

A contribuição incide sobre o valor nocional (que corresponde ao valor total de uma posição financeira) dos passivos e instrumentos financeiros derivados fora do balanço dos bancos com sede em Portugal e filiais e sucursais cá instaladas. A receita anual em 2021 foi de 187 milhões de euros.

A partir de 2020, a banca passou a pagar outra contribuição com objetivos solidários. O adicional de solidariedade sobre o setor bancário foi criado no Orçamento Suplementar de 2020, e a sua receita está destinada ao Fundo de Estabilização Financeira da Segurança Social. Incide igualmente sobre os passivos dos bancos. A sua receita rondou os 34 milhões de euros no ano passado.

A contribuição que substituiu o corte de rendas na energia

A seguir à banca, a energia é o setor mais atingido por estas contribuições. Mas aqui o racional nasceu de uma perceção que foi criada sobretudo com a vinda da troika de que este setor gozava de rendas excessivas que, por seu turno, contribuíam para preços mais caros. O facto de na eletricidade existir também uma dívida tarifária à EDP, que os consumidores pagam com juros no preço, também serviu de pretexto para a criação em 2014 da contribuição extraordinária sobre o setor energético (CESE).

Equacionada em 2011/2012 pelo então secretário de Estado Henrique Gomes com o intuito de cortar as rendas ditas excessivas da EDP, esta contribuição só avançou depois de concretizada a privatização da elétrica. E com o foco mais alargado, apanhando a Galp e a REN e outras empresas produtoras de eletricidade. Ainda que tivesse inscrito na lei que um terço desta cobrança iria para abater o défice tarifário, a contribuição foi lançada com intuitos orçamentais pelo executivo de Passos Coelho. Só em 2018 é que as contribuições cobradas às empresas começaram a ser regularmente usadas para abater o défice tarifário. Atualmente, toda a receita, que em 2021 foi de 131 milhões de euros, é transferida para o sistema elétrico.

Fisco manda inspetores. Galp e REN recusam pagar taxa que vale 60 milhões

A CESE foi a contribuição mais contestada nos tribunais portugueses. Desde o primeiro ano as empresas ameaçaram boicotar e o então secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, Paulo Núncio, mandou os inspetores da Autoridade Tributária (AT) às sedes da REN e da Galp para as executar. Muitas ações depois, apenas a REN viu algum desfecho, já que, ao recorrer à arbitragem administrativa, o caso depressa chegou ao Tribunal Constitucional, cujo acórdão declarou a CESE constitucional. Isso não impediu Galp e EDP de continuarem a contestar a cada ano a sua liquidação.

A EDP chegou a não pagar durante num ano, mas reconsiderou perante a promessa do Governo de que a taxa da CESE seria encolhida à medida que o défice tarifário fosse minguando — uma promessa que até agora não foi cumprida. A Galp nunca pagou e tem contestado anualmente todas as liquidações, acumulando um litígio de centenas de milhões de euros com o fisco para o qual não são conhecidas, para já, decisões de tribunais que tenham transitado em julgado.

Guerra fiscal entre Estado e Galp já ultrapassa 240 milhões

A CESE cobra uma taxa de 0,85% sobre os elementos do ativo das empresas de energia com sede ou estabelecimento em Portugal que sejam ativos fixos tangíveis, ativos intangíveis e financeiros. E, perante a pressão inicial para taxar os lucros caídos do céu do setor energético, serviu de argumento ao Governo para ir empatando uma eventual decisão sobre o tema — até que a Comissão Europeia aprovou uma taxa sobre lucros inesperados a aplicar em toda a UE este ano. Para Rogério Fernandes Ferreira, a conciliação entre a CESE e a nova taxa é ainda uma incógnita apesar de a primeira ser aplicada ao ativo e a segundo aos lucros, mas antecipa um novo fluxo de impugnações em tribunal.

As contribuições no setor da saúde. Indústrias farmacêutica e dispositivos médicos

Sem a mesma relevância financeira, o setor da saúde também tem sido um alvo preferencial das contribuições. A primeira foi criada em 2015 (ainda no Executivo de Passos Coelho) e aplicada à indústria farmacêutica. Esta contribuição extraordinária tem sido prorrogada anualmente nos orçamentos do Estado e aplica-se ao valor total das vendas de medicamentos para uso humano feitas em cada trimestre. As taxas oscilam entre os 2,5% e os 14,3% em função do tipo de medicamento e são pagas pela indústria produtora na primeira venda.

Em 2021 esta taxa rendeu 17 milhões de euros que são canalizados para o financiamento do Serviço Nacional de Saúde.

No orçamento de 2020 foi criada a contribuição extraordinária sobre os fornecedores de dispositivos médicos do SNS. As taxas variam entre 1,5% e os 4% e incidem sobre o montante da faturação trimestral dos fornecimentos de dispositivos médicos a entidades do Serviço Nacional de Saúde. O seu produto é consignado a um fundo de apoio à compra de tecnologias inovadoras por parte do SNS. No ano passado gerou 20 milhões de euros.

Esta semana a associação do setor, a APORMED, levou o seu protesto à comissão parlamentar de Orçamento onde pediu a revogação da medida que qualifica de “injusta, desnecessária, ilegal e muito nefasta para as empresas” e que não existe em qualquer outro país europeu. Será aliás uma situação que se repete em outros setores.

Especial e por legislar há quatro anos

Por ventura o caso mais estranho é o da contribuição especial para a conservação dos recursos florestais, também conhecida como a taxa sobre as celuloses, apontadas como as destinatárias desta taxa, dada a dimensão da sua faturação.

Prevista desde o Orçamento de 2019, não chegou a ser materializada por razões não totalmente claras e que já foram questionadas sobretudo à esquerda. Em 2020, o então ministro do Ambiente, Matos Fernandes, afirmava que o Governo estava disponível para avançar nesse ano depois de caducada a autorização legislativa de 2019. Reconhecia que o tema tinha “escapado” ao Executivo, mas não dava grandes justificações.

Uns dias depois percebeu-se que a taxa não era pacífica no próprio partido quando o deputado Ascenso Simões (que foi secretário de Estado das Florestas) veio a público dizer que votaria contra uma proposta socialista para esta contribuição com o argumento de que a indústria da pasta e papel já dedica recursos financeiros substanciais à conservação através da associação do setor, a CELPA (que mudou a sua designação para Biond, Forest Fibers from Portugal).

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A taxa deve incidir sobre o volume de negócios das empresas ou particulares que exerçam como atividade principal a incorporação ou transformação de forma intensiva de recursos florestais. O valor da taxa seria deduzido dos montantes investidos em recursos florestais, bem como das despesas para proteção e conservação de recursos naturais. A receita teria como destino o Fundo Florestal Permanente que já é financiado com uma percentagem do imposto petrolífero.

Os lucros inesperados

A caminho estão mais duas contribuições. Uma focada num setor e, provavelmente, numa única empresa ou grupo empresarial: a Galp. E outra dirigida a um dos setores mais fortes e lucrativos da economia portuguesa: a distribuição. As duas parecem estar incluídas no mesmo diploma, a apresentar até ao final do ano, mas têm origens muito distintas.

A contribuição sobre os lucros extraordinários das empresas de gás e petróleo faz parte de um regulamento comunitário aprovado no contexto da crise energética e que os estados têm de aplicar. Trata-se de uma contribuição única (neste aspeto distinta das que são aplicadas em Portugal) a cobrar sobre a fatia dos lucros deste ano que ultrapassem em 20% a média dos lucros dos três anos anteriores.

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A taxa de 33% é aplicada aos lucros que fiquem acima desse patamar dos 20%, o que poderá implicar que uma parte dos resultados da empresa sofram taxas de imposto superiores aos 50% (considerando um IRC com derramas de 31% para lucros acima dos 35 milhões de euros). O Governo tem manifestado uma expectativa baixa de cobrança, mas o impacto financeiro da mesma dependerá do desenho com que for aplicada. O regulamento estabelece que a receita será canalizada para financiar medidas de apoio aos consumidores mais vulneráveis.

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Sobre a contribuição a aplicar ao setor da distribuição, quase nada se sabe, para além do que foi dito por António Costa. Os fiscalistas ouvidos pelo Observador admitem que esta taxa visa sobretudo os grandes grupos de distribuição alimentar nacionais, a Sonae e a Jerónimo Martins, e destacam o caráter pioneiro de uma taxa desta natureza aplicada a este setor que será justificada pelos ganhos que as empresas estarão a conseguir com a inflação e a subida de preços. Uma visão que é fortemente contestada pelo setor.

A intenção do primeiro-ministro surge depois de ter sido noticiado pelo Observador que a grande distribuição chegou a discutir com o Governo uma redução no IVA da alimentação para 3%, ideia que o Executivo deixou cair com o argumento de que havia o risco da redução da carga fiscal ir parar aos bolsos dos acionistas das empresas e não aos consumidores.

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