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Um dos folios do Manuscrito Ellesmere, que mostra o Chaucer-peregrino, uma das personagens dos "Contos de Cantuária"

Um dos folios do Manuscrito Ellesmere, que mostra o Chaucer-peregrino, uma das personagens dos "Contos de Cantuária"

"Contos de Cantuária". Como Daniel Jonas traduziu "um guia para a humanidade" com 600 anos e 800 páginas

Durante cinco anos, Daniel Jonas trabalhou na tradução da obra-prima de Chaucer, o projeto mais ambicioso da sua carreira como tradutor. A sua publicação deixou uma espécie de vazio: "E agora?".

Cantuária, a sudeste de Londres, tornou-se o principal centro de peregrinação inglês durante a Idade Média. Todos os anos, a localidade era visitada por centenas de peregrinos de vários pontos do país, que viajavam até Cantuária para verem o túmulo do santo Thomas Becket (1118-1170), o arcebispo que foi assassinado na sua própria catedral, provavelmente a mando do rei. Geoffrey Chaucer (1340s-1400), que vivia a caminho do centro de peregrinação, costumava ver passar perto de sua casa grupos animados de crentes, que seguiam a pé ou a cavalo para Cantuária. Terá sido assim que o escritor inglês se terá lembrado de escrever uma história sobre uma trupe de fiéis que, para se entreterem durante a longa viagem, decidiram organizar um concurso de histórias. A melhor receberia um jantar faustoso no regresso a Southwark, na estalagem The Tabard.

Quando Chaucer, o mais importante autor inglês medieval, começou a escrever aquele que viria a ser o seu livro mais famoso e mais relevante, Contos de Cantuária, o seu plano era ambicioso: cada um dos 30 peregrinos devia contar quatro histórias (duas à ida e duas à volta), o que resultaria num conjunto de 120 contos. Chaucer, que trabalhou na obra nos últimos anos da sua vida, morreu antes de completar a tarefa, deixando 24 contos terminados, o que significa que as histórias de alguns dos participantes apresentados no prólogo ficaram por contar. Pode parecer pouco em comparação com o plano inicial, mas Contos de Cantuária, tal como chegou até nós, não é um livro pequeno: o original em inglês médio do século XIV tem 17 mil versos, o que equivale a algumas centenas de páginas nas edições modernas.

Contos de Cantuária é, aliás, em vários aspetos monumental. A mais importante obra do período medieval inglês, é considerado por muitos um dos textos mais importante da literatura inglesa e até mundial. A sua singularidade faz com que se distinga de tudo o que foi escrito antes e depois, mas também com que dificulte a tarefa da sua tradução. Daniel Jonas, responsável pela mais recente tradução portuguesa, a primeira completa desde 1992, passou cinco anos a trabalhar na obra, ao ponto de se questionar se teria tempo de vida útil para conseguir completar a tarefa, ou se, pelo contrário, deixaria o trabalho a meio, tal como aconteceu com o autor. “Mas tudo acabou mais ou menos em segurança, a aterragem foi segura”, admitiu o poeta e tradutor em entrevista ao Observador, durante a qual falou das dificuldades de tradução, das particularidades do inglês de Chaucer e da importância de uma obra que é um companheiro para toda a vida.

A tradução de Daniel Jonas dos "Contos de Cantuária", de Geoffrey Chaucer, foi publicada este mês de fevereiro, pela E-Primatur

O que são os Contos de Cantuária?
Em primeiro lugar, são uma obra-prima da literatura mundial. São um dos exemplares em inglês mais ou menos moderno de uma literatura canónica, que tenta ser uma espécie de concorrente ou de resposta inglesa a uma literatura semelhante da autoria de Boccaccio, o Decameron, que segue mais ou menos os mesmos modelos. A ideia foi juntar algo relativamente original, italiano, e trazê-lo para o inglês. A principal mudança foi o aproveitamento de uma peregrinação a um santo de devoção, chamado Thomas Becket, que levava naquela altura muitos peregrinos a Cantuária. Aparentemente o próprio Geoffrey Chaucer via-os passar ao pé de casa. Ele vivia ao pé do rio Tamisa e via uma trupe constante de peregrinos a passar. Estes peregrinos eram aparentemente muito barulhentos, muito festivos, ao contrário dos mais sorumbáticos ou silenciosos que temos no Caminho de Santiago, por exemplo. Bom, também era uma oportunidade para festejar. Naquele tempo, as pessoas tinham poucas hipóteses de festejar e as festas estavam associadas à ideia religiosa, às feiras, procissões, romarias. A peregrinação a Cantuária era uma ótima justificação para as pessoas se exprimirem e festejarem um bocado. A religião estava sempre associada a momentos muito deprimentes da vida das pessoas, mas também muito festivos. A ideia da obra tem que ver com aproveitar este tipo de viagem, que levaria uns cinco dias, e aquilo que acontece numa excursão quando as pessoas não têm rádio. Podem parar em várias estações de serviço, mas não podem tomar o cafézinho, e divertem-se umas com as outras a ouvir histórias. Durante muitos séculos, a história é o grande entretenimento desta altura. Há o aproveitamento literário desta ideia.

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Há um grupo de peregrinos, mais ou menos 30, que decide encetar esta viagem em conjunto. O grande entertainer desta comitiva, o estalajadeiro, tem a ideia magnífica de premiar a melhor história com um jantar faustoso à chegada. É esta a premissa dos Contos de Cantuária, que é uma obra inacabada, porque o autor tinha uma espécie de megalomania, que era dar a cada conviva quatro histórias. [Se Chaucer o tivesse feito] em vez das 800 páginas com que ficámos no caso português, seria um objeto com duas mil páginas.

O projeto inicial era muito ambicioso, sobretudo se tivermos em conta que os Contos foram escritos por Chaucer no final da vida.
Muito ambicioso. Ele não conseguiu acabar a obra muito em virtude do seu plano ambicioso. De facto, podia ter sido um bocadinho mais modesto nos seus intentos. Talvez conseguisse acabá-la. Isto também é um problema para o tradutor, porque uma pessoa não sabe se tem tempo de vida útil, e inútil também, para conseguir traduzir uma extensão dessas. Partilho um bocadinho o meu problema com ele.

“É uma obra inacabada, porque o autor tinha uma espécie de megalomania, que era dar a cada conviva quatro histórias. [Se Chaucer o tivesse feito] em vez das 800 páginas com que ficámos no caso português, seria um objeto com duas mil páginas.”
Daniel Jonas, poeta e tradutor

Estamos a falar de uma obra que foi escrita no século XIV, em inglês médio. Que inglês é esse?
É um inglês medieval, que se distingue do inglês atual por diversas razões. Aliás, tenho de estender o meu muito obrigado pelas aulas de Literatura Inglesa Média com o professor António Feijó na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Já agora, o meu abraço para ele! Esta linguagem do inglês médio faz-se através de uma leitura muito literal, em termos de vogais, por exemplo. Aquilo que está escrito deve ler-se de uma forma muito dramática.

Foi essa a abordagem que seguiu na tradução? Procurou fazer uma leitura o mais literal possível do texto original?
Sim. O inglês médio é interessante, porque, às vezes, é mais funcional do que o inglês contemporâneo, ou seja, é mais parecido com a nossa vertente latina. Por outro lado, para uma pessoa formada em anglofilias, o inglês médio provoca perturbações claras. É uma abordagem difícil. Temos de ler muitas vezes para conseguir ler as coisas. Socorri-me bastante de traduções contemporâneas, mas sem nunca descurar o texto original. Muitas vezes as soluções no inglês medieval eram muito interessantes para serem acolhidas pelo português.

Isso tem a ver com o facto de o inglês médio ter sido muito influenciado pelo francês?
Exatamente. Em princípio, uma obra literária com esta ambição ou era latina ou era francesa. Isso nota-se na própria comunicação das pessoas nesta altura. A língua francesa era a língua da corte. Em princípio, um pedestre falava inglês e uma pessoa mais elevada, uma cortesã, falava francês. Por exemplo, o nome de um animal vivo o termo era em inglês, mas quando o animal estava cozinhado e sem os seus cascos, o nome passava a ser francês [por exemplo, “cow”, “vaca”, tem origem inglesa e “beef”, “bife”, francesa]. Há uma distinção, uma educação e uma elevação cortesã que são ilustradas também pelo uso linguístico. Portanto, o uso do inglês [por Chaucer] é muito inopinado, inesperado, porque, em princípio, ninguém que quisesse elevar o seu discurso literário se ensaiava nesta loucura linguística que é usar uma língua de rua, mais pedestre.

O "Prólogo Geral", provavelmente a passagem mais famosa dos "Contos da Cantuária", tal como aparece no Manuscrito Ellesmere, datável do século XV

DR

Isso acontecia porque, com a conquista normanda, o inglês foi passado para segundo plano e o francês, que era a língua da corte, assumiu o lugar de prestígio.
Exatamente. E nesse sentido, podem consultar o texto da introdução, a cargo do Mário Bruno Pastor, que é bastante exaustivo e claro sobre isto.

O inglês médio está muito distante do português. Como é que conseguiu ultrapassar isso?
Esse é um problema com as traduções do inglês. Normalmente, quando tentamos igualar a métrica, temos um problema, que é passar uma língua muito frequentemente monossilábica para uma língua muito polissilábica, como é o português. Essa é sempre uma dificuldade. Não o é se abandonarmos a ideia do verso, da métrica, mas é uma dificuldade se quisermos mais ou menos competir do ponto de vista métrico com a língua original. Nesse caso, temos de tentar soluções muito diversas. Ao fazê-lo, não quero que essas soluções desertem o texto inicial. Ou seja, o texto inicial tem de manter a literalidade, tem de conservar todo o sentido e ser funcional do ponto de vista formal. Mas para responder à sua pergunta: claro, são línguas bem distintas, mas há muitos lugares comuns. No Paraíso Perdido de Milton, outra tradução que fiz, há uma sintaxe muito latina. Em certas alturas, é mais problemático para um inglês contemporâneo ler aquela sintaxe do que para um português. Já tive experiências de estar com pessoas falantes do inglês, nativos do inglês, que têm dificuldade em perceber certos passos de Shakespeare. E não estou a falar de pessoas com baixa instrução. Há uma grande décalage, mesmo de Shakespeare para a atualidade.

Isso é muito curioso.
Sim. Uma vez dei uma aula sobre tradução nos Estados Unidos e, a certa altura, escrevi um passo de Shakespeare e percebi pelo olhar das pessoas que não estavam a perceber bem o que estava escrito no quadro. Tive de tentar traduzir para inglês o próprio Shakespeare. E estou falar de uma universidade, Stanford, e penso que até eram alunos de doutoramento. Fiz a transferência para inglês contemporâneo e fiquei a pensar nisso. Muitos dos nossos pressupostos sobre as coisas não estão certos. Muitos ingleses têm de fazer uma tradução de Shakespeare ou têm de se dar aos mesmos esforços de desbravação linguísticas que nós.

“A minha intenção é sempre fazer alguma coisa suficientemente clara para que o leitor não precise de ir ao texto original para perceber a tradução, porque assim a tradução deixa de fazer qualquer tipo de sentido.”
Daniel Jonas, poeta e tradutor

Isso quer dizer que uma tradução pode não estar tão longe do original como julgamos?
Pode não estar. Há diferenças fonéticas, sonoras, de arrumação, há becos muitas vezes sem saída que às vezes se tornam mais claros, mais luminosos, se se tentar ler o original, mesmo as pessoas que não se sintam tão confortáveis com isso. Mas a ideia que me anima, e que é uma espécie de malabarismo, é que, primeiro, tenho de tentar ser literal, tenho de deixar o sentido vir cá para fora. Tenho de traduzir o sentido, o que lá está; tenho de tentar ser formal e trazer o sentido para uma formalidade interessante. A linguagem poética ou prosódica tem essa premissa: podemos falar de coisas do quotidiano através de uma atitude esteticamente mais interessante. Por outro lado, tenho de tentar dar a conhecer o texto com as mesmas arrumações formais do original. Ou seja, tenho de pôr o sentido da frase original na frase portuguesa sem fazer grandes reviengas, para usar um termo futebolístico e para usar o vosso Gabriel Alves. A ideia é tentar fazer essa correspondência, nem sempre feliz, obviamente. A minha intenção é sempre fazer alguma coisa suficientemente clara para que o leitor não precise de ir ao texto original para perceber a tradução, porque assim a tradução deixa de fazer qualquer tipo de sentido. Se conseguir o bónus, que é fazer do texto português um texto interessante e fazer um tipo de obra dentro da esfera da literatura portuguesa, é esplêndido. Isso é uma atitude também de mim enquanto autor, que é tentar agarrar a mesma ideia que está expressa sem perder a capacidade técnica; é fazer aquilo que estou a fazer e que tenho de fazer, que é traduzir uma obra, e ao mesmo tempo tentar transformar aquilo num objeto português que valha por si só e que não seja apenas um filho desamparado do objeto inglês primordial.

Daniel Jonas, responsável pela mais recente tradução portuguesa, a primeira completa desde 1992, passou cinco anos a trabalhar na obra, ao ponto de se questionar se teria tempo de vida útil para conseguir completar a tarefa

Há pouco falou no ritmo e na métrica. Os Contos de Cantuária estão escritos em pentâmetro jâmbico, um esquema rítmico muito usado na língua inglesa que terá sido inventado pelo próprio Chaucer. Como é que lidou com essa particularidade?
O inglês, sendo monossilábico, assenta em pés de tonalidade, de reforço. Temos palavras que podem ser eternas e que só se acentuam numa única sílaba. Isso é um problema para o português, que é muito silábico. O inglês é muito musical. Será que consigo transformar o português numa língua assim, com este tipo de sonoridade? Será que consigo transformar o português num pentâmetro jâmbico, que são cinco pés, por exemplo? Nem sempre se consegue, mas é essa a tentação, fazer com que o português esteja arrumado de maneira a ter essa sonoridade. A ideia que tinha era fazer com que o português aludisse a um tipo de passo a cavalo — um passo andante, um trote — e que isso fosse feito com muita naturalidade, ao ponto de as pessoas não perceberem que vão com esse embalo. Ou seja, que a leitura pudesse imitar de alguma maneira a viagem, esta peregrinação feita a cavalo. Isto pode ser também uma megalomania do tradutor, mas pelo menos a tentativa existiu.

Um escritor megalómano, um tradutor megalómano… Estamos portanto no domínio da megalomania.
Exato [risos]. Para maluco, maluco e meio, como se costuma dizer.

“Isso é uma atitude também de mim enquanto autor, que é tentar agarrar a mesma ideia que está expressa sem perder a capacidade técnica; é fazer aquilo que estou a fazer e que tenho de fazer, que é traduzir uma obra, e ao mesmo tempo tentar transformar aquilo num objeto português que valha por si só.”
Daniel Jonas, poeta e tradutor

Os Contos de Cantuária são um obra polifónica, com diferentes vozes, e cada uma delas com as suas características muito próprias. Isso dificultou o trabalho de tradução?
É uma pergunta muito pertinente e uma pergunta que tinha sempre na minha cabeça: “Será que isso pode também ser uma possibilidade, dar uma voz a cada um?”. Não tenho a certeza de ter conseguido isso, mas espero que sim. Mas era uma preocupação que me animava também, a ideia de que a Mulher de Bath, por exemplo, não podia falar exatamente da mesma maneira que o Moleiro; ou que o Moleiro não podia falar exatamente da mesma maneira que o Estudante de Oxford. Todas as pessoas têm mais ou menos a sua postura enunciativa, e por isso recorri ao que havia no português mais urbano ou no mais rural. Tentei adequar esse tipo de discurso. Também usei coisas familiares. O meu avô usava uma expressão que era “ficar mosca”, que é ficar chateado, irritado. Percebi que é uma expressão portuguesa, que está validada, e usei-a a propósito de uma personagem. Houve um tipo de expressões que achei que se adequava a determinadas vozes e não a outras.

Suponho que este seja um projeto que lhe tenha levado muito tempo…
Levei certamente ao desespero os editores, que julgavam que isto era fácil [risos]. Tive muitos momentos de frustração, porque tenho outras coisas para fazer na vida, e uma coisa destas é extraordinariamente custosa do ponto de vista do tempo e da disponibilidade das pessoas. Chegava a gastar muito tempo num par de versos, nalgumas coisas me punham problemas especiais e que só resolvia quando as resolvesse. Queria resolvê-las de forma aceitável e satisfatória. Não sei muito bem quantificar o que é que isto representou a nível de horas, mas uma vez fiz uma conta muito rápida e eram meses e meses consecutivos. Portanto, o meu investimento pessoal nisto também foi considerável [risos].

Quando é que começou a trabalhar na tradução?
Há cinco anos. Mas fiz outras coisas. Faço outras coisas também profissionalmente, não podia fazer só isto. Era absolutamente insensato e impossível. Em todo o caso, as horas que gastei nisto foram horas a mais [risos] para a sensatez de uma pessoa. E obviamente havia uma preocupação muito grande em tentar acabar isto. Do ponto de vista da resposta aos editores, coitados, que estavam há demasiado à espera. Mas deparei-me com muitos obstáculos, muitos problemas, que precisavam sempre de muito tempo de exame minucioso para as coisas acontecerem de uma forma satisfatória, como disse. Teve de ser um trabalho muito lento. Quando comecei a fazer [a tradução], comecei mais ou menos pela ordem de arrumação do texto. A proposta editorial que segui foi mais ou menos aquela que segui na ordem da tradução. Quando fiz o “Prólogo Geral” e me apercebi que as coisas eram possíveis, vi que tinha um problema: tinha de acabar aquilo. Depois entrou outro problema, uma espécie de obsessão em curso, que era quando é aquilo podia acabar. Podia ter tido um fim antes disto, como o próprio autor. Mas tudo acabou mais ou menos em segurança, a aterragem foi segura. Acabei primeiro a obra do que a obra me acabou a mim.

Outros dois fólios do Manuscrito Ellesmere, que mostram duas das personagens da obra de Chaucer. Este manuscrito é o mais famoso dos "Contos de Cantuária" e o mais ricamente decorado

DR

Houve momentos em que duvidou que fosse possível acabar a tradução?
Duvidei. Não poucas vezes, devo dizer.

E arrependeu-se de ter aceitado o desafio?
Em alguns momentos, sim. Aliás, era um projeto inicial também meu. Foi engraçado, porque foi um casamento de vontades. Era uma ideia que tinha há muito tempo e curiosamente coincidiu com alguém se lembrar de mim para a tradução. O problema é que temos pessoas a quem não podemos defraudar e já estamos a defraudar às vezes na prorrogação dos prazos. Se fosse um problema meu, do meu tempo, as coisas não me tinham dado tanto desassossego. Mas tinha de dar resposta às pessoas que estavam à espera. Era um assunto que me deixava um bocadinho mais desassossegado.

Porque é que tinha essa vontade de traduzir os Contos de Cantuária?
Primeiro, porque acho que é uma obra magistral, uma obra-prima. Acho que merecia estar em português. Houve algumas tentativas de tradução, mas não havia os Contos de Cantuária em verso e de acordo com um plano mais ou menos parecido. E em português traduz-se tanta coisa, tantos clássicos, tanta literatura estrangeira, que acho que era uma coisa que faltava nos nossos escaparates. E também  por causa dos desafios que me lançava. Milton foi extraordinariamente difícil, mas [o Paraíso Perdido] é uma obra escrita em verso branco, ou seja, não rima. Aqui tive de estar sempre a fazer música disto, a tentar soluções que pudessem rimar. É um grau adicional de loucura. Desse ponto de vista, é uma obra que, enquanto tradutor e autor também, me dava um desafio veemente e também interessante. Claro que a minha relação com isto agora é “ainda bem que acabei”. Pensei: “agora sim virá o fim; agora já posso morrer descansado”, preocupadíssimo com essa segunda opção, porque isto podia ser simbólico de uma coisa um bocadinho mais trágica. Mas fiquei um bocadinho deprimido do ponto de vista do meu ofício de tradução, e até literário. Depois de fazer uma coisa destas, há um alívio muito grande, mas há depois um certo desassossego, para voltar a usar a palavra.

“Uma coisa destas é extraordinariamente custosa do ponto de vista do tempo e da disponibilidade das pessoas. Chegava a gastar muito tempo num par de versos, nalgumas coisas me punham problemas especiais.”
Daniel Jonas, poeta e tradutor

Sentiu que não há nada que possa superar o facto de ter traduzido os Contos?
Sim. Temos a festa acabada… E agora? Vamos voltar à nossa vida.

Referiu as edições portuguesas, que são de facto muito poucas.
Sim, há duas, uma da Europa-América, em prosa, de Clarisse Tavares [1992], e uma da Amigos do Livro, de Mário Dias Correia, de 1977. Mas tive uma política de não ver as coisas, para não haver uma influência que achei que não era útil ou leal. Há sempre a hipótese de as pessoas, mediante boas soluções encontradas por outras pessoas, se agarrarem em demasia a essas soluções e queria evitar isso. Há duas traduções para português do Brasil e também não as consultei. consultei-as a seguir, mas muito esparsamente, até porque precisei de dar a mim próprio um tempo de distanciamento deste livro por uma questão de sanidade mental.

Porque é que acha que não tem havido pouco interesse por esta obra? Publica-se tanta literatura inglesa em Portugal…
Não compreendo. Por exemplo, também não havia do Milton. Essa tradução também foi publicada no Brasil e, ao que sei, apesar de estar traduzida no português de Portugal, é um livro que as pessoas compram, portanto é sinal que havia esse interesse. Não sei o que é que fez com que levasse tanto tempo a estar no mercado.

Existem outras obras clássicas da literatura inglesa que gostasse de traduzir?
Tenho ali um tomo muito grande chamado Faerie Queene [de Edmund Spenser], mas acho que não me vou atirar para ali… Dessas obras mais canónicas inglesas, não estou a pensar em mais nenhuma. A minha dificuldade com o ter tido um momento de deflação a seguir a uma inflação com esta tradução é o de que, a certa altura, dei por mim a pensar que agora não há mais nada que queira fazer. Do ponto de vista dos objetivos pessoais, isso pode criar alguma angústia. Se tivesse uma noção, responderia diretamente à sua pergunta, mas não tenho. Há sempre coisas interessantes para traduzir. Não que tenha pensado nisso [risos].

“Fiquei um bocadinho deprimido do ponto de vista do meu ofício de tradução, e até literário. Depois de fazer uma coisa destas, há um alívio muito grande, mas há depois um certo desassossego. (...) Temos a festa acabada… E agora? Vamos voltar à nossa vida.”
Daniel Jonas, poeta e tradutor

Disse no início da nossa conversa que os Contos de Cantuária são uma obra-prima da literatura mundial. Porquê?
Há bocadinho perguntou sobre a polifonia da obra e tem aí a sua resposta: a Chaucer conseguiu fazer um tipo de mapa sociológico da sociedade da altura, por várias vozes a falar e, mediante a sua produção linguística, preservar o seu estatuto social e fazer uma representação auto-representativa da sociedade inglesa da época. E a grande dimensão desta obra, dos Contos de Cantuária, é o picante. É o humor, é a ironia. A ironia é um fator pervasivo em toda a obra. Os autores mais ou menos reverenciais e reverenciados, como um Dante, têm uma elevação quase litúrgica na sua componente literária. São respeitados por causa de uma linguagem muito culta, muito erudita, acima de suspeita e do popular. Chaucer conseguiu fazer alta literatura numa linguagem muito popular, numa linguagem que as pessoas entendem e se riem com ela. E esse é um grande feito. Se calhar é por isso que Chaucer teve alguns detratores, porque não estamos habituados a que a linguagem literária, a linguagem francesa por oposição à linguagem média do campesinato, dê origem a literatura deste género. A ironia, a piada, o fator anedótico, o picante, o sarcástico e a linguagem brejeira que invade muitos destes contos foi urdida de uma forma muito interessante, que deu um alto efeito literário. Essa é uma grande razão que explica a qualidade desta obra.

Por outro lado, reconhecemos tipos que não mudaram muito em 600 anos. O nosso reconhecimento acidental e social não divergiu tanto ao ponto de não compreendermos que estamos a ler coisas sobre pessoas, e sobre pessoas que, apesar de não terem os meios de comunicação, entretenimento, locomoção, sanitários, etc., que temos hoje, são extremamente parecidas connosco. Estas personagens, que se tornaram absolutamente personalidades, são as personalidades de hoje em dia. Aquilo que lemos e que nos diverte tanto é um negócio de reconhecimento. Estamos a reconhecer-nos a nós próprios.

Os temas tratados também permanecem muito pertinentes atuais.
Sem dúvida. Variadíssimos temas dos nossos vícios e virtudes estão aqui espelhados. A relação das pessoas com o poder instituído, com a veneração ao estatuto social…

Terá sido por isso que os Contos nunca deixaram de ser lidos? Porque nunca perderam a atualidade e os leitores sempre puderam encontrar um bocadinho deles próprios na obra?
Temos contos para todos os gostos: os mais elevados, os mais religiosos; temos contos que ficaram pelo caminho, a que se cortou o pio, e outros que tratam de temas triviais, das lidas domésticas, das relações de homens com mulheres, tragédias, assassinatos, tentativas de jovens estudantes de molharem a sopa com mulheres casadas… Temos várias dimensões da vida de todos os dias. Depois, temos vários aprendizados históricos, geografias, incursões noutras grandes tragédias… É um tipo de guia para a humanidade, que pede uma leitura e leitores e leitoras bastante pacientes. É um companheiro para a vida.

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