Na pior crise de sempre no setor do gás, a Nigéria deu o sinal de alarme e invocou “força maior” para legitimar contratualmente falhas nas entregas aos seus fornecedores, onde se inclui a Galp. Além de ser o maior fornecedor de gás da empresa, os três contratos a longo prazo com a Nigéria são também as principais fontes de abastecimento de gás a Portugal.
Este ano, o GNL (sigla para gás natural liquefeito que é transportado por barco) nigeriano representou metade do gás comprado pelo país. De acordo com dados enviados ao Observador pela REN, entidade que gere o terminal de gás natural liquefeito, a grande porta de entrada deste produto em Portugal, este ano atracaram em Sines 57 metaneiros (navio-tanque). Mais de metade — 28 — vieram da Nigéria. Os três últimos navios desta origem chegaram nos dias 15 de setembro, 25 de setembro e 1 de outubro.
Portugal é apontado pelos analistas ouvidos pela agência Reuters como o país mais exposto ao risco de rutura deste fornecedor que representa 4% da oferta mundial de gás.
A NLGN, empresa na qual o governo nigeriano é o maior acionista mas que conta entre os seus participantes no capital a Shell, Total e a Eni, atribui a incapacidade de cumprir as entregas às inundações que têm vindo a afetar as suas instalações no delta do Níger e não adianta para já qualquer previsão sobre quando poderá retomar as operações. No aviso feito aos clientes disse que a situação irá afetar todos os fornecimentos, mas as repercussões vão depender muito do tempo que durar esta disrupção e da quantidade das entregas que será afetada.
A ativação da cláusula de força maior foi comunicada pela Galp Energia segunda-feira à noite e já esta terça-feira a empresa disse que “está a monitorizar os desenvolvimentos na Nigéria. Não é claro neste momento quando é que as operações locais serão restauradas ou se os impactos deste evento poderão resultar em ruturas adicionais de abastecimento para Galp.”
Horas antes, numa curta nota enviada após o primeiro comunicado da Galp, o Ministério do Ambiente e Ação Climática não confirmava “neste momento” a redução do gás vindo da Nigéria e desvalorizava o eventual efeito desse cenário, sublinhando que “não há escassez no mercado”, aproveitando ainda para avisar que “qualquer informação alarmista é desadequada, ainda mais em tempos de incerteza global”, sem se perceber quem seria o destinatário desta mensagem.
Relatório admite que falhas nas entregas de GNL podem afetar sistemas elétrico e de gás
Mas é o próprio relatório que a Direção-Geral de Energia e Geologia enviou à Comissão Europeia sobre o cumprimento por Portugal das metas de redução do gás que reconhece os impactos que um cenário de ruturas na entrega de GNL previstas para este inverno teriam no mercado do gás e que chegariam ao sistema elétrico.
“Apesar de o contexto atual do mercado internacional não permitir excluir a hipótese de o sistema de gás nacional e, consequentemente, do sistema elétrico nacional serem afetados em resultado dos preços elevados de gás natural liquefeito no mercado global e/ou devido a possíveis falhas nas entregas de GNL por navios-tanque (metaneiros)”.
Divulgado um dia antes do anúncio da Nigéria, o mesmo relatório considera que “as medidas que foram adotadas, que estão ou irão estar em marcha, permitem encarar o próximo inverno com confiança”. E indica que Portugal conseguiu uma redução de 13% no consumo total de gás em agosto e setembro, face à média do últimos três para anos para o mesmo período. Excluindo o setor elétrico, que tem uma situação de exceção, o consumo de gás caiu 21,7%.
O Governo tem argumentado que o abastecimento de gás a Portugal está seguro e que o país não corre riscos de fornecimento como os países que eram abastecidos pela Rússia. Mas as falhas que desde o ano passado têm ocorrido nas entregas de gás da Nigéria levaram já o secretário de Estado João Galamba ao país africano discutir com as autoridades o cumprimento do contrato.
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E ainda que existam alternativas de abastecimento, uma coisa é certa: o preço será bastante mais caro. Mesmo que as cotações até estejam em queda face aos recordes de meses anteriores, o preço é uma das razões, se não a principal, porque o contrato com a Nigéria é muito importante para os sistemas elétrico e de gás. Questionado pelo Observador sobre o impacto de eventuais falhas deste fornecedor no sistema elétrico e sobre fornecimentos alternativos, o Ministério do Ambiente e Ação Climática não respondeu.
Gás nigeriano deu ganho de 1.500 milhões que travou subida da eletricidade para empresas
A proposta de evolução das tarifas elétricas para 2023, apresentada pela Entidade Reguladora dos Serviços Energéticos (ERSE), inclui um sobreganho de 1.500 milhões de euros que resulta do preço de compra de energia à central da Tapada do Outeiro, muito abaixo do que custaria a mesma energia comprada em mercado. Esta unidade de ciclo combinado é a maior central a gás do sistema elétrico e a única que ainda tem um contrato de aquisição de energia (CAE) onde está estabelecida uma remuneração estável.
No passado, essa remuneração representou um sobrecusto para o sistema e para os consumidores que tinham de cobrir a diferença entre o preço previsto no contrato e o preço de mercado, mais baixo. O CAE da Turbogás, empresa que gere a central, era apontado como uma das rendas excessivas do setor que foram escrutinadas numa comissão parlamentar de inquérito que visou ainda os sobrecustos dos contratos da EDP (os CMEC eram sucessores dos CAE, mas já não produzem efeitos) e da produção em regime especial onde estavam as centrais eólicas.
Com a escalada do preço da eletricidade no mercado grossista, que começou no ano passado e atingiu valores nunca vistos este ano, estes contratos de rendas passaram de encargo a ganho porque estabelecem preços de compra de energia muito inferiores aos que se têm verificado no mercado. E no caso da Turbogás isso é possível porque a empresa é abastecida pela Galp, mas exclusivamente a partir do gás contratado à Nigéria que é muito mais barato do que o atual preço do mercado spot. Isto porque são contratos de longo prazo, terminam em 2030, e têm um preço mais estável e também substancialmente inferior ao mercado spot, mas também a contratos mas recentes e mais expostos a oscilações.
De acordo com fontes do mercado, o contrato de take or pay que garante o abastecimento de gás à Turbogás terá preços que podem ser um sexto abaixo dos mais de 200 euros que foram atingidos no mercado spot. E são esses preços que permitem à central vender energia ao sistema elétrico a 70 a 80 euros por MW/hora, muito abaixo do preço médio deste ano que rondou os 187 euros por MW hora (média móvel até setembro) e ainda mais da previsão para 2023 que é de 262 euros por MW hora.
É graças a esta diferença que a Turbogás representou um ganho de 1.500 mil milhões de euros — metade já materializado em 2022 e metade previsto para 2023 — que foi todo transferido para baixar as tarifas de acesso ao sistema das empresas que ficaram ainda mais negativas, permitindo aliviar o peso da energia na fatura dos consumidores de maior tensão. O facto de o contrato da Turbogás terminar em 2024 e o ativo fixo já estar praticamente amortizado, reduzindo a receita necessária para atingir a remuneração estabelecida, também fez subir a contribuição da central para o sistema.
Eletricidade no mercado regulado vai subir mais 1,1% em janeiro, face ao preço em vigor
O mesmo efeito, mas com uma dimensão ainda maior, foi gerado pelos produtores do regime especial, onde estão grande parte das centrais eólicas. Este ganho de 3,3 mil milhões de euros foi transferido para as tarifas de acesso dos clientes residenciais que passaram a negativas — permitindo à ERSE propor para 2023 uma suave subida do preço da eletricidade para clientes do mercado regulado (1,1%) — e dar margem aos comercializadores do mercado livre para continuarem em jogo.
Mas o que acontece se o gás nigeriano falhar?
A Turbogás, detida pela Trust Energy (holding que tem como a acionistas a francesa Engie e a japonesa Marubeni), tem o mais antigo e importante (em quantidade) contrato de compra de gás natural em Portugal. Esta central foi uma peça chave na implantação do mercado de gás natural no nosso país nos anos de 1990 do século passado, na medida em que foram as quantidades compradas que permitiram sustentar os contratos de longo prazo feitos por Portugal. Primeiro com a Argélia que foi substituída pela Nigéria quando o contrato com a Sonatrach acabou no ano passado.
A Galp ficou titular destes contratos (que foram originalmente celebrados pela Transgás) e tem a obrigação de fornecer gás à Turbogás, que absorve pelo menos um terço das quantidades compradas à Nigéria. Se ficar sem o gás barato da Nigéria, tem de procurar um fornecedor alternativo. Ou desvia gás dos seus outros contratos (com os Estados Unidos ou com a Argélia — este último está a abastecer clientes em Espanha) ou vai ao mercado spot comprar o que precisa.
Algumas fontes do setor admitem que a Galp pode ela própria também invocar causa maior para não cumprir as cláusulas do contrato com a Turbogás. E isso, a prazo, poderá ter impacto nos custos com a eletricidade fornecida por esta central e chegar aos preços finais. Pela informação recolhida pelo Observador esta terça-feira, a Galp não tinha invocado, para já, qualquer problema no cumprimento deste contrato. O Observador colocou estas questões à Galp e ao Ministério do Ambiente e Ação Climáticas, mas não obteve respostas.
A Turbogás tem um contrato que lhe garante a venda da eletricidade ao comercializador do último recurso com uma remuneração garantida que neste contexto é mais barata que o preço do mercado. Logo, dificilmente ficará sem a quantidade de gás necessária à produção contratualizada. Se esse gás for mais caro, resta saber quem vai suportar a diferença de preço: a Galp — a empresa já teve de suportar perdas de mais de 100 milhões de euros no primeiro semestre para fornecer ao preço contratado pelos seus clientes o gás que teve de comprar mais caro no mercado spot devido às falhas da Nigéria — ou, a prazo, os consumidores de eletricidade?
Para já, os investidores penalizam a Galp cujas ações caíram quase 5% em reação a este anúncio.
Gás mais barato da tarifa regulada também vem da Nigéria
Os contratos com a Nigéria são ainda os responsáveis pelo abastecimento ao mercado regulado de gás natural e graças a eles as tarifas estão a valores mais baixos do que os preços praticados pelos comercializadores do mercado livre. Sobretudo depois dos aumentos até 30 euros por mês anunciados pelas empresas a partir de outubro. A resposta do Governo para resolver esta estocada nas faturas de gás foi permitir durante um ano que famílias e pequenos negócios regressem à tarifa regulada, mais barata porque garantida pelos contratos de Nigéria.
E se este mercado tinha um peso quase irrelevante nas quantidades abastecidas por estes contratos, esse peso vai aumentar nos próximos meses, o que vai exigir a mobilização de mais quantidades de gás “barato”. Ainda que essa procura não ultrapasse os 7% do valor total destes contratos. É certo que este gás “barato” face às cotações do mercado irá também subir de preço, como aliás avisou o presidente executivo da Galp, Andy Brown quando comentou, de forma crítica, a decisão do Governo de reabrir o mercado regulado.
Galp avisa quem regressa ao mercado regulado que preços do gás também podem subir
Por outro lado, algumas das fontes do setor ouvidas pelo Observador admitem as cheias que estão a atingir a Nigéria possam estar a ser usadas como pretexto para forçar uma revisão das condições de contratos mais antigos como o da Galp, nomeadamente do preço. Ainda antes da guerra da Ucrânia, a Nigéria já falhou entregas aos seus clientes, com destaque para a Galp, devido a problemas operacionais relacionados com as condições de segurança na região onde estão instaladas as unidades de produção.